O processo de derretimento do governo Jair Bolsonaro ganhou capítulos emblemáticos nos últimos dias, a ponto de culminar, nesta quarta-feira (11), com a notícia de que a CPI da Covid-19 vai sugerir o indiciamento do presidente por “charlatanismo”, “curandeirismo” e “propaganda enganosa”. Embora possa parecer o desfecho natural para um governante eleito no rastro de uma campanha de fake news e desinformação, a decisão da Comissão Parlamentar de Inquérito deve fragilizar ainda mais um governo já em crise crônica.
Bolsonaro pode ser denunciado e punido por crimes comuns, com base nos artigos 283 e 284 do Código Penal. Mas os senadores devem propor que o presidente seja indiciado também por crimes de responsabilidade, como prevaricação.
A apresentação do relatório final, sob responsabilidade do senador Renan Calheiros (MDB-AL), está prevista para 5 de novembro, mas já está claro, desde já, que o bolsonarismo perdeu as principais batalhas narrativas em torno da pandemia do novo coronavírus. É mais um revés para Bolsonaro numa semana já particularmente deletéria para sua gestão.
Ao promover, na terça-feira (10), uma canhestra parada militar na Praça dos Três Poderes, em Brasília, com direito a desfile de veículos blindados da Marinha, o presidente procurou demonstrar força, mas, na prática, acelerou seu isolamento. A imprensa – seja a nacional, seja a estrangeira – não hesitou em classificar o ato como um ataque do Executivo ao Judiciário e, sobretudo, ao Legislativo. Em outras palavras, um ataque à democracia – aparentemente respaldado pelo ministro da Defesa, general Braga Netto.
Só que a estranha fumaceira lançada no ar por carros de combate do Corpo de Fuzileiros Navais se converteu na imagem-símbolo de um governo com motor fundido. Em vez de intimidação, o ataque gerou sobretudo memes nas redes sociais.
Cabe notar que o desfile militar ocorreu no dia em que os deputados federais decidiriam o destino da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Voto Impresso. Antes de ir ao plenário da Câmara, por decisão do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), essa bandeira da luta golpista do bolsonarismo fora derrotada, na semana passada, em uma comissão especial.
Na nova votação, nova derrota de Bolsonaro. A PEC precisava do apoio de 308 parlamentares para ser aprovada, mas recebeu o voto de apenas 229. A expectativa do governo era contar com a adesão maciça dos parlamentares do Centrão, haja vista a recente chegada do grupo ao núcleo duro do Planalto, com a posse do senador Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil. No entanto, as defecções em favor da urna eletrônica e da democracia prevaleceram, inclusive no Progressistas – o partido de Nogueira e Lira –, que tem 41 deputados e entregou apenas 13 votos pró-voto impresso.
Ao fim de uma terça-feira sombria, as ações de Bolsonaro não redundaram em votos e vitórias para o governo – mas, sim, em um histórico constrangimento para as Forças Armadas e em mais desgaste para a imagem do Brasil. O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo da gestão bolsonarista, classificou o desfile como “uma infantilidade” e “uma vergonha internacional”.
Sem contar o vexame do próprio presidente, conforme enfatizou o senador Omar Aziz (PSD-AM), na abertura dos trabalhos do dia na CPI da Covid: “Todo homem público, além de cumprir suas funções constitucionais, deveria ter medo do ridículo. Mas Bolsonaro não liga para nenhum desses limites, como fica claro nessa cena patética de hoje, que mostra apenas uma ameaça de um fraco que sabe que perdeu”.
O fato é que a aposta do bolsonarismo em aventuras autoritárias e golpistas sofreu uma nova e contundente reação da frente ampla e democrática, que voltou a sobressair. As ameaças do presidente de agir “fora da Constituição” já haviam enfrentado respostas à altura do Judiciário, por meio de medidas duras do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e do STF (Supremo Tribunal Federal) contra Bolsonaro. Agora, foi o Legislativo que se posicionou sem medo nessa indispensável e inadiável resistência democrática.
A derrota, porém, não fez Bolsonaro mudar o discurso. Desrespeitando até o compromisso assumido com Arthur Lira, o presidente segue afrontando o STF e o TSE, atacando o sistema eleitoral eletrônico e até mesmo pondo em dúvida a votação da PEC na Câmara. Isso demonstra quão necessária é a unidade de amplos segmentos para aumentar o isolamento de Bolsonaro e preservar o Estado Democrático de Direito.
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