Em 1976, por sugestão do jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, uma candidatura de resistência à ditadura militar (1964-1985) adotou o slogan “Sem direitos, sem feijão / Somos oposição”. Mesmo com palavras suavizadas, o recado estava dado. A ideia de “direitos” representava, acima de tudo, a luta pela democracia – a mãe de todas as batalhas sob a ditadura. Já o “sem feijão” remetia à descontrolada inflação dos alimentos, que encarecia o custo de vida e esvaziava as panelas. O governo autoritário dos generais-presidentes esfomeava a população.
Hoje, 45 anos depois, um presidente de origem igualmente militar – e abertamente saudoso da ditadura – acredita que, em vez de feijão, a ideia fixa dos brasileiros deve ser um fuzil. Num país que bate recordes de desemprego, sofre com a inflação crescente e volta ao mapa da fome, Jair Bolsonaro receita não uma política de segurança alimentar ou combate à pobreza – mas, sim, a saída armamentista.
Foi o que ele declarou na sexta-feira (27), no “cercadinho” em frente ao Palácio da Alvorada, ao dialogar com apoiadores: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado”, tergiversou o presidente. “Eu sei que custa caro. Tem um idiota (que diz): ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar.”
Era inevitável que tamanha insensibilidade, ainda que calculada, desencadeasse uma onda de protestos. “Quem você acha que disse isso, um miliciano ou o presidente da República?”, tuitou, por exemplo, o deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ).
O também deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) lembrou que, no mesmo dia, o ministro da Economia, Paulo Guedes, minimizou o impacto da alta do preço dos combustíveis para a população. Segundo Orlando, os depoimentos mostram que Guedes e Bolsonaro “vivem na bolha do cercadinho e dos bajuladores. Fiquem tranquilos, não tem fuzil que livre vocês da surra nas urnas. Aí, Bolsonaro, é Haia!”.
A obsessão bolsonarista em tentar tirar o foco do crescente drama das famílias brasileiras não parou por aí. “Não teve aumento de nada no meu governo”, arriscou-se a dizer Bolsonaro, na mesma data, diante de persistentes indagações sobre o descontrole inflacionário no Brasil. “A economia deu uma balançada, mas estamos consertando”, desconversou.
Os números desmentem Bolsonaro. Neste mês de agosto, um órgão ligado ao próprio governo federal – o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – informou que, em julho, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA, a inflação oficial do País) teve alta de 0,96%. Em 12 meses, o índice acumulado é de 8,99%.
A razão pela qual chegamos a esse estágio beira a tragédia. Numa hora, são os chamados “gêneros de primeira necessidade” que puxam a inflação. Desde o início da pandemia de Covid-19, os preços de diversos alimentos básicos tiveram alta de mais de 40%. Foi o caso do leite, do óleo de soja, da carne “de segunda”, do arroz e do feijão – ou melhor, dos feijões (tanto o fradinho quanto o carioca como o preto). Com a desvalorização do real frente ao dólar, o agronegócio não hesita em priorizar as exportações, em detrimento do armazenamento de alimentos e do mercado interno.
Há também os combustíveis. Sem controle de preços pela Petrobras, nem medidas de proteção ao consumidor pelo governo Bolsonaro, a gasolina ficou 28% mais cara apenas em 2021, após nove aumentos. O valor médio nominal da gasolina hoje, estimado pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) em R$ 5,90, é o maior em 20 anos. Além disso, ao longo de 2021, o preço do etanol anidro disparou 56,5%, enquanto o etanol hidratado ficou 37% mais caro.
Agora, de acordo com o IBGE, a vilã da vez é a conta de luz. Guedes, o ministro fanfarrão e desacreditado, afirmou que “não adianta ficar chorando” – mas o preço da energia elétrica para o consumidor cresceu, de janeiro a gosto, três vezes mais do que a inflação geral. Em 12 meses, a alta acumulada na conta de luz foi de 20,86% – e o pior do “apagão de Bolsonaro” ainda está distante. Nos três casos – alimentos, combustíveis e energia –, a população pobre é que sente mais no bolso o peso da inflação.
Quem dera que o disparate de sexta-feira fosse o bastante para Bolsonaro! No sábado (28), a indiferença mórbida do presidente teve sequência. Questionado em sua página no Facebook sobre a esdrúxula declaração do dia anterior, Bolsonaro voltou a relativizar o avanço da carestia no Brasil. “Fique em casa que a economia a gente vê depois. Dessa forma, quem vai plantar feijão para você comer?”, ironizou. Em outro post, mais desinformação: “Garante a sua liberdade para você trabalhar e se alimentar. Sem ela você poderá depender das migalhas do Estado.”
Talvez o filósofo existencialista Søren Kierkegaard (1813-1855) tenha pensado em pessoas da estirpe de Bolsonaro ao sugerir que quem inventou a língua pode não ter sido Deus, mas, sim, o Diabo. Os discursos presidenciais se limitam, cada vez mais, a testar a democracia, desafiar as instituições e insinuar golpes de viés fascistas.
Para seu azar, a língua afiada e desaforada só lhe tem garantido mais rejeição. Conforme a última pesquisa XP/Ipespe, divulgada em 17 de agosto, a desaprovação ao governo bolsonarista saltou de 31% em outubro de 2020 para 54% neste mês de agosto. Sem direitos, sem feijão, a maioria do povo brasileiro, hoje, é oposição!
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