Por Cynara Menezes, na revista Fórum:
Foi por ódio de classe a Lula, lá atrás, que a mídia comercial passou a dar espaço a críticos das lutas das minorias.
No início com algum pudor e logo sem nenhum, termos rasos e desrespeitosos como “vitimismo” começaram a aparecer, aqui e ali, nas páginas dos jornais, referindo-se sobretudo ao movimento negro, não por acaso em ascensão, beneficiado pela política de cotas dos governos petistas que coloriram universidades até então majoritariamente brancas.
“Mimimi” foi outro termo popularizado para atingir minorias de forma geral, algumas vezes combinadas: “mimimi vitimista” é como a extrema direita define as queixas de discriminação e intolerância feitas por mulheres, pobres, nordestinos, negros e LGBTQIA+.
A propagação deste discurso foi aos píncaros no governo da primeira mulher a se tornar presidenta – este termo, aliás, embora dicionarizado, foi amplamente rejeitado pela mídia comercial –, arrancada do poder por um golpe antes de tudo misógino.
Os nhonhôs têm lugar garantido nas páginas da mídia corporativa. Eles expressam a voz do dono, do status quo, dos patrões. Pluralidade é uma balela tão grande quanto imparcialidade.
O que existe no Brasil é o jornalismo nhonhô, do qual Leandro Narloch parece se orgulhar de ser um dos mais legítimos representantes
Como se tratava de repetir concepções rasas, de senso comum, para atacar minorias, é claro que o nível dos colunistas caiu vertiginosamente.
Gente que não sabia nem escrever, mas tinha no currículo o ódio ao PT e à esquerda (como Kim Kataguiri e Rodrigo Constantino), foi convocada a ser colunista de revistas e jornalões.
No mercado editorial, a impostura intelectual travestida de “história” teve seu auge com o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch.
Sob a desculpa de “desfazer mitos” (mas sempre recontando os acontecimentos históricos em favor dos donos do poder e em detrimento das camadas mais baixas da sociedade), Narloch edificou o guia do que viria a ser bolsonarismo: pesquisa histórica pífia e enviesada para sustentar teses que servem a um projeto de poder.
Ao longo de sua carreira, o jornalista foi muitas vezes rebatido por desvirtuar e manipular fatos ou simplesmente mentir descaradamente, como quando defendeu que o nazismo e o comunismo são “gêmeos”.
Um dos principais alvos do Guia eram os povos indígenas, pintados por Narloch como bêbados, destruidores da natureza e “maus”.
O jornalista buscava edulcorar a imagem dos sanguinários bandeirantes, ao mesmo tempo que detonava heróis da libertação negra como Zumbi dos Palmares, retratado por ele como escravista e sequestrador de mulheres.
Isso não é jornalismo nem História: é uma estratégia de dominação muito bem desenhada e que serviu a seus propósitos.
Não há sombra de dúvida que os que falavam em “vitimismo” e em “mimimi” ao se referir às lutas das minorias estão no poder desde que Dilma Rousseff foi golpeada.
Choca ver as imagens predominantemente de homens brancos nos primeiros escalões dos governos Temer e Bolsonaro – o mesmo aconteceu nos Estados Unidos de Donald Trump, mostrando que a tendência é mundial na extrema direita. As raras mulheres e negros ocupam posição subalterna, subserviente ou cúmplice.
Como os nhonhôs do passado, interessa a estes homens brancos silenciar as minorias que ameaçam seu domínio, e precisam de apoio interno para o trabalho sujo.
Como os nhonhôs do passado, interessa a estes homens brancos silenciar as minorias que ameaçam seu domínio, e precisam de apoio interno para o trabalho sujo.
Daí o presidente da Fundação Palmares, negro, negar a existência do racismo, chamar o movimento negro de “escória maldita” e Zumbi de “filho da puta que escravizava negros” e a ministra das Mulheres afirmar que não é feminista, “mas feminina”. Seguiram à risca o guia de Narloch, que agora se dedica a “ensinar” como o movimento negro deve fazer sua luta.
Demitido da CNN em julho passado por fazer comentários homofóbicos, o nhonhô do politicamente incorreto encontrou guarida na Folha, onde defendeu que os negros se espelhem não na maioria escravizada que sofria com estupros, castigos e trabalho forçado, mas com a ínfima quantidade de “sinhás pretas”, raras mulheres negras ricas que viveram entre os séculos 17 e 19 retratadas pelo escritor Antonio Risério no recém-lançado livro As Sinhás Pretas da Bahia: Suas Escravas, Suas Joias.
Mesma época em que o poeta Gregorio de Matos bradava: Triste Bahia, /Oh Quão Dessemelhante. Até hoje a Bahia é o Estado mais desigual do país e a pobreza é maior entre pretos e pardos.
“Ativistas do movimento negro não deveriam desprezar as lindas histórias de vida das sinhás pretas. É muito mais estimulante, para negros de hoje, imaginar que seus antepassados foram em alguma medida protagonistas de seu destino”, “ensina” Narloch. Detalhe importante: o jornalista é branco, branquíssimo, de cabelos e olhos claros. Só no Brasil dos nhonhôs um homem branco se mete a dar lições ao movimento negro.
O artigo causou indignação entre aqueles com lugar de fala sobre o tema: os próprios negros. No jornal Plural, Rogério Galindo chamou Narloch de “coach do movimento negro”. “Narloch chicoteia o escravo morto, do século 19, mas com a declarada intenção de fustigar o negro de hoje”, escreveu.
“Zombar da escravidão é parte da origem da riqueza de Leandro. Ele gosta de achar exemplos de negros que venderam negros; de negros que compraram negros; e Deus nos proteja para que ele não ache um indício, ainda que falso, de um negro que manteve um branco como escravo. A ideia é pegar a exceção, o bizarro, ou aquilo que é passível de distorção, para mostrar que o mundo não foi tão cruel assim.”
Na mesma Folha, o advogado Thiago Amparo, professor de Direito Internacional na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e membro do Conselho Editorial do jornal, escreveu : “Ao terminar de ler o texto, eu senti ânsia de vômito, literalmente; um misto de repugnância e desânimo. Folha, por que ainda precisamos nos masturbar coletivamente com a relativização da dor preta?”
“É peculiar da branquitude discutir o horror tomando chá: imagino as horas que serão gastas para se debater, com calma, se a linha editorial da barbárie foi ou não cruzada”, continuou. “O que está em jogo é se a pluralidade que este jornal preza inclui racismo.”
Pluralidade: este é um ponto fundamental. A mesma mídia que dinamitou junto à opinião pública, apenas para atacar o PT, a política de cotas, hoje dá espaço a negros, indígenas e LGBTs como uma espécie de cota a lhe angariar prestígio, ao mesmo tempo que, em nome de um falso pluralismo, continua a empoderar os nhonhôs anti-minorias, mesmo que não tenham o estofo dos primeiros. Coloca, no mesmo patamar, intelectuais bem formados como Thiago Amparo ou Ailton Krenak e impostores intelectuais como Narloch.
“Zombar da escravidão é parte da origem da riqueza de Leandro. Ele gosta de achar exemplos de negros que venderam negros; de negros que compraram negros; e Deus nos proteja para que ele não ache um indício, ainda que falso, de um negro que manteve um branco como escravo”, protestou Rogério Galindo
Foi este tipo de “pluralidade” que tornou possível ver na televisão “debates” entre coxinhas despreparados como Caio Coppola e gente estudada, inteligente, como Gabriela Prioli e Augusto Botelho.
Ou negacionistas da pandemia e da vacina e propagandistas da cloroquina como Alexandre Garcia e Leda Nagle. Se fosse hoje em dia, certamente colocariam Galileu Galilei para “debater” com algum terraplanista.
Não importa quantos negros, LGBTs, indígenas ou mulheres forem colocados para opinar na mídia comercial: não existe “pluralidade” nela porque é a imprensa que tem de ser plural, e não um veículo.
Uma imprensa plural pressupõe a existência de veículos que abranjam todo o espectro ideológico, o que acabou no Brasil com a ditadura militar e jamais voltou.
Só há meios de comunicação de direita e extrema direita na chamada “grande imprensa”.
Não é à toa que os nhonhôs têm lugar garantido nas páginas da mídia corporativa. Eles expressam a voz do dono, do status quo, dos patrões.
Pluralidade é uma balela tão grande quanto imparcialidade. O que existe no Brasil é o jornalismo nhonhô, do qual Leandro Narloch parece se orgulhar de ser um dos mais legítimos representantes.
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