Temos que prestar atenção ao que está acontecendo nos EUA.
Os Estados Unidos, que já foram o símbolo da democracia moderna, são, hoje, o país onde a deterioração democrática está mais avançada.
Chegaram a um ponto que parece sem retorno.
A possível volta de Trump à Presidência, daqui a três anos, será o fim de tudo (ele lidera as primeiras pesquisas a respeito da eleição de 2024).
Estamos nesse caminho, em um lugar desconhecido. Perto ou ainda distantes?
O certo é que, se Bolsonaro fosse vencer a próxima eleição, estaríamos muito, muito perto dos americanos.
Mas a distância em relação a essa catástrofe pode não ser grande, caso a vitória de Lula venha com margem estreita.
Os próprios EUA mostram o que poderia acontecer caso o capitão conseguisse se apresentar como derrotado por “manipulações” na contagem de votos.
No final de 2020, um grupo de pesquisadores em sociologia, psicologia social, ciência politica e antropologia, reunidos sob os auspícios da Associação Americana para o Avanço da Ciência, AAAS (análoga à nossa Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a SBPC) publicou estudo procurando compreender e explicar o crescimento do sectarismo na politica americana.
Segundo o grupo, os EUA seriam hoje uma sociedade dividida de maneira irreconciliável em duas seitas politicas antagônicas.
No limite, cada uma vê a outra como a) constituída por gente essencialmente diferente, que sequer parece pertencer à mesma espécie; b) merecedora de aversão e desconfiança; c) cheia de pessoas mal-intencionadas e imorais.
Em função disso, as derrotas eleitorais de cada “lado” são percebidas por seus integrantes como perdas existenciais, cataclismos pessoais que precisam ser evitados, custe o que custar, mesmo através do uso da violência.
Não se disputam eleições, travam-se batalhas.
De acordo com os dados, as tendências à sectarização se aceleraram nos últimos anos, impulsionadas por um fenômeno concomitante: a crescente distinção socioeconômica e demográfica no eleitorado norte-americano.
As clivagens raciais, religiosas, educacionais e geográficas se aprofundaram.
Ser democrata ou republicano passou a significar, objetivamente, ser diferente do outro.
Quando essas diferenças objetivas se associam às diferenças subjetivas na ideologia e na politica, nascem “superidentidades”, que, por sua vez, passam a exigir níveis mais altos de coerência dos indivíduos: se sou republicano e sou diferente de um democrata, preciso me afastar do que “eles” são.
Classe, religião e orientação sexual tendem a ser redefinidas para se adequar à identidade politica.
O processo de sectarização avança, retroalimentado por essa dinâmica.
Nas palavras de Patrick Egan, outro pesquisador do tema, “os americanos mudam sua identidade para alinhá-la de acordo com a política”.
Por mais diferentes que sejam, cada lado superestima as diferenças que os separam.
Tendem a ver os partidários do outro lado como socialmente distintos, imaginando-os como radicais e intolerantes.
Para exemplificar: os que se identificam como republicanos supõem que um terço dos democratas é gay (o número é 6%) e os que se sentem democratas calculam que 40% dos republicanos ganham mais de 250 mil dólares ao ano (o número é 2%).
A partidarização endureceu as fronteiras entre as pessoas. À medida em que os grupos políticos se diferenciaram em campos polarizados e antagonistas, os eleitores flutuantes escassearam.
Os indivíduos passaram a buscar em sua filiação politico-ideológica a fonte de sua identidade coletiva e a ver o outro lado como inimigo.
Quem não se identifica com um tende a desistir de participar da vida politica.
Não se registra e não vai votar.
A maioria dos estudos americanos sugere que as clivagens programáticas no eleitorado nunca foram significativas e não cresceram.
As pessoas concordam, no fundamental, a respeito de temas econômicos e relativos ao governo, em um “centrismo” pouco elaborado.
Gostar ou não gostar do “outro lado” não deriva da concordância/discordância em matéria de politicas públicas. O que conta é que republicanos e democratas detestam-se cada vez mais.
As circunstâncias das eleições (se ocorrem, até mesmo, em meio a guerras, recessão ou pandemias), as propostas e as campanhas estão se tornando desimportantes.
Como assinala um estudo da Brookings Institution, os eleitores parecem cada vez menos ver os candidatos como um agregado de atributos de personalidade e ideias de governo e mais como porta-estandartes de tribos partidárias.
Nas reeleições, ao invés de avaliar o desempenho dos governantes, torcem por seu “time” e reafirmam escolhas anteriores.
As viradas de uma eleição para outra são a cada dia mais raras: quem votou em um “lado” dificilmente passa para o outro.
Três processos são as causas imediatas da sectarização.
O primeiro e mais antigo é a polarização da elite politica, com a tendência de os políticos republicanos se moverem cada vez mais em direção à direita, mesmo sem que o oposto tenha ocorrido no Partido Democrata.
Esse movimento começou nos anos 1980, com a eleição de Reagan, que devolveu aos republicanos, depois da vergonha de Nixon, uma identidade que podiam exibir.
Reagan reabilitou o conservadorismo e levou o país para a direita, se contrapondo à liberalização que marcara o final dos anos 1960 e a década de 1970, que viram a ascensão do feminismo, a luta pela igualdade racial e a afirmação de identidades alternativas.
Nos últimos anos, os políticos republicanos aprofundaram o conservadorismo e encontraram novas formas de comunicação com suas bases, usando as técnicas do chamado “disciplinamento de mensagens”: dizer poucas coisas, muitas vezes, para as mesmas pessoas.
Esse logo se tornou o padrão da comunicação entre políticos e eleitores dos dois partidos, seja através da imprensa, da comunicação dirigida ou das redes sociais.
A consequência foi a exacerbação das diferenças de conteúdo entre os partidos, que passaram a parecer maiores do que são, por exemplo, na convivência parlamentar.
Políticos dos dois partidos costumam concordar mais do que os eleitores imaginam.
O segundo elemento que ajuda a explicar a sectarização são as mudanças na estrutura dos meios de comunicação de massa, intensificadas a partir do governo Reagan, que revogou a legislação que exigia imparcialidade no noticiário e nos comentários na televisão e no rádio.
Desde então, a mídia americana foi se tornando, em alguns casos, furiosamente partidária, aprofundando o fosso entre as pessoas: quem pensava de um modo encontrava logo os veículos que repetiam o que queria ouvir e acentuavam sua radicalização.
A terceira causa é a principal responsável pela velocidade que a radicalização adquiriu agora: os mecanismos de direcionamento de conteúdos nas principais plataformas das redes sociais.
Sua tecnologia se utiliza de algoritmos baseados em popularidade, capazes de selecionar mensagens que maximizem o engajamento dos usuários.
Como mostrou um estudo de um grupo de psicólogos da Universidade de Nova Iorque, são os conteúdos e o emprego de linguagem moral-emocional que aumentam de forma substancial a difusão dentro (e, em grau menor, entre) grupos ideológicos nas redes sociais.
Sem cessar alimentados com uma mistura de fatos, fantasias e mentiras (coloridas com as tintas do medo e da indignação moral), os usuários vivem sua vida on-line em “câmaras de eco”, ambientes onde as pessoas só encontram informações ou opiniões que refletem ou reforçam as que já têm.
Os americanos chegaram aonde estão em uma trajetória marcada por fenômenos que conhecemos no Brasil.
A mesma degradação do ambiente democrático foi promovida por nossas elites conservadoras, que jogaram lenha na fogueira da animosidade e do ódio, culpando e criminalizando adversários.
Nossa grande imprensa se comportou como partido na luta contra a esquerda, atacando-a e procurando desmoralizar suas lideranças e simpatizantes.
Como lá, tudo se agravou aqui depois que as redes sociais cresceram como terra sem lei, à disposição de qualquer aventureiro, como vimos na eleição de 2018.
Ainda somos, no entanto, diferentes do EUA. Não estamos, portanto, condenados a repetir sua decadência. Mas o risco existe e não é pequeno.
A terceira causa é a principal responsável pela velocidade que a radicalização adquiriu agora: os mecanismos de direcionamento de conteúdos nas principais plataformas das redes sociais.
Sua tecnologia se utiliza de algoritmos baseados em popularidade, capazes de selecionar mensagens que maximizem o engajamento dos usuários.
Como mostrou um estudo de um grupo de psicólogos da Universidade de Nova Iorque, são os conteúdos e o emprego de linguagem moral-emocional que aumentam de forma substancial a difusão dentro (e, em grau menor, entre) grupos ideológicos nas redes sociais.
Sem cessar alimentados com uma mistura de fatos, fantasias e mentiras (coloridas com as tintas do medo e da indignação moral), os usuários vivem sua vida on-line em “câmaras de eco”, ambientes onde as pessoas só encontram informações ou opiniões que refletem ou reforçam as que já têm.
Os americanos chegaram aonde estão em uma trajetória marcada por fenômenos que conhecemos no Brasil.
A mesma degradação do ambiente democrático foi promovida por nossas elites conservadoras, que jogaram lenha na fogueira da animosidade e do ódio, culpando e criminalizando adversários.
Nossa grande imprensa se comportou como partido na luta contra a esquerda, atacando-a e procurando desmoralizar suas lideranças e simpatizantes.
Como lá, tudo se agravou aqui depois que as redes sociais cresceram como terra sem lei, à disposição de qualquer aventureiro, como vimos na eleição de 2018.
Ainda somos, no entanto, diferentes do EUA. Não estamos, portanto, condenados a repetir sua decadência. Mas o risco existe e não é pequeno.
Análises de Marcos Coimbra não me decepcionam a expectativa de pouco proveito. Depois de lê-las, considero a minha cota de analistas liberais e verifico que está cheia. Melhor teria sido usar o tempo para rever Stálin, procurando inspiração para minhas próprias reflexões. Alerto, entretanto, às pitonisas petistas, que faço também projeções, porém de forma gratuita, que sou amador e não quero ser processado pela entidade de classe dos profissionais: Lula disputará o 2° turno com Ciro Gomes! Isso já será, por si só, uma margem de vantagem sobre Bolsonaro nada pequena, apesar de ser uma margem de erro de previsão dos analistas lulistas bem grande. Em relação aos EUA, o analista liberal exagerou a confiança em sua bola de cristal, falando de eleições a serem realizadas daqui a 3 anos. Me parece também exagero atribuir às redes sociais a fascistização dos EUA. A decadência dos EUA a explicaria na ausência delas. A referência a "lideranças" é algo frequente nas análises dos liberais, que falam também da "democracia", que há muito tempo não existe nos EUA, tendo em mente, entretanto, à democracia liberal burguesa, ao Fla x Flu candidato democrata x candidato republicano. Aos EUA, como ao Brasil, faltam autênticos partidos de classe reconhecidos pelo proletariado. Se os tivessem, não estaríamos a falar dos fascistas Trump, Bolsonaro, nem do socialdemocrata (para alguns, no máximo, social liberal) Luis Inácio Lula da Silva. No Brasil como nos EUA, faltam partidos revolucionários capazes de opor aos fascistas a força dos trabalhadores e do povo mobilizados e organizados para travar lutas em defesa de seus interesses de classe. A agonia da democracia liberal burguesa deveria ser comemorada, pois que anuncia os novos tempos de uma democracia popular que nunca nos EUA e no Brasil existiu. Somente os liberais temem que as alternativas sejam democracia liberal burguesa ou fascismo. Por isso, reduzem as coisas a fulanos bondosos versus ciclanos malvados, aos quais o homem comum sempre corresponde passivamente, como adoradores agradecidos ou enganados.
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