Há 52 anos a democracia brasileira enfrenta um dos seus mais fortes desafios: como se relacionar com o Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão.
De forma constante, de segunda a sábado, o Brasil e o mundo são recortados e oferecidos ao público de acordo com os interesses dos controladores dessa empresa, invariavelmente discordantes das necessidades reais da maioria da população e da defesa da soberania nacional.
Não que isso seja novidade. Antes da TV, os jornais e as emissoras do conglomerado já desempenhavam esse papel.
A diferença é que, a partir de 1º de novembro de 1969, quando o Jornal Nacional foi ao ar pela primeira vez, os recortes ganharam movimento, luz, cores e vozes, numa sofisticada dramaturgia direcionada para a conquista de corações e mentes. Obtida com sucesso.
Mas o Jornal Nacional não fez isso sozinho. Estrategicamente exibido entre novelas, o produto de maior sucesso da emissora, delas valeu-se para a conquista da audiência, recebendo um público quase cativo, mais interessado no desdobramento diário das tramas românticas oferecidas ao público, antes e depois do jornal.
Ao se firmar como a principal rede nacional de televisão, praticamente hegemônica, a Globo formatou um ideário nacional, capaz de tornar comuns a todo o país as conversas sobre o conteúdo das novelas ou as peripécias dos jogos de futebol. Temas inscritos nas áreas da diversão e do entretenimento, nas quais não se impõe o compromisso com o factual.
A mesma abrangência de cobertura e consequente repercussão nacional, ocorre com o jornalismo, com a diferença significativa de que a ele se atribui um compromisso com o fato e espera-se dele uma interpretação que se aproxime, o mais possível, da veracidade.
No entanto, muitas vezes, as técnicas de produção do telejornalismo se assemelhem as da teledramaturgia. Resta a diferenciá-las apenas a aura da precisão jornalística encobrindo a semelhança existente entre a produção desses gêneros.
“Eu vi no Jornal Nacional”, é uma frase comum, ouvida como testemunho de credibilidade que exemplifica essa confiança, sem levar em conta as formas e os interesses envolvidos na produção da informação. Tem a sustentá-la apenas a aura que encobre a realidade, embalando o produto oferecido ao telespectador.
É essa aura que permite ao Jornal Nacional, assim como a outros veículos da mídia corporativa, usar a ideia da pretensa isenção jornalística como forma de encobrir seus reais interesses. E quando ela recebe críticas de setores diferentes da sociedade, até antagônicos, os utiliza como forma de propagandear um equilíbrio de fato inexistente.
O livro “Jornal Nacional, um projeto de poder”, ao se debruçar sobre o papel político do principal telejornal da Globo, de 2014 para cá, consegue com muita competência mostrar que o discurso de isenção não se sustenta.
Levanta o véu que cobre as aparências e revela as rotas seguidas pelo telejornal. Aparentemente cambiantes, elas na verdade mantêm um rumo preciso, balizado por um projeto de poder enraizado nas origens da empresa.
Projeto que se manifesta de forma aguda em momentos políticos mais críticos e, cotidianamente, de forma homeopática.
Não custa lembrar as manchetes do jornal O Globo saudando o golpe de 64 ou o condenando a instituição do 13º salário para os trabalhadores de todo país.
Ou ainda, em situação mais recente, a convocação pela TV Globo dos atos contra o governo da presidenta Dilma que levaram ao golpe de 2016, construindo um cenário onde grassava “uma corrupção nunca antes vista”, projetando “uma crise econômica sem precedentes”, como lembra o livro. Sem esquecer a pirotecnica em torno das operações denominadas Mensalão e Lava Jato.
Para fixá-las no imaginário da população, o recurso dramatúrgico dos dutos de petróleo enferrujados, despejando uma fartura de dinheiro na tela, teve uma força simbólica poderosa.
Não há necessidade de ouvir ou ler, basta passar à frente de um aparelho sintonizado no Jornal Nacional, num bar ou numa sala de espera, para saber que a corrupção grassa no país, num processo cotidiano de criminalização da política. Ação de propaganda camuflada de jornalismo, documentada e comentada com rigor no livro.
Se mostra, o Jornal Nacional também esconde ou minimiza o que não interessa à empresa.
“Em setembro de 2014, o Brasil deixou o Mapa da Fome, de acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU). O Jornal Nacional não deu chamada de abertura e dedicou 38 segundos à matéria. Em dezembro de 2014, a taxa de desocupação da mão de obra foi de 4,8%, o menor nível da série histórica. A notícia recebeu 37 segundos, não foi a chamada principal e limitou-se a mostrar números, sem entrevistas e sem contextualização. O Boletim do Tempo teve mais de um minuto”, destaca o jornalista Luiz Nassif, no prefácio do livro.
Dados como esse, apresentados com rigor acadêmico, estão presentes ao longo de todo o livro.
A partir deles revela-se a conduta retilínea do jornal em busca dos interesses que defende, ancorados basicamente na “defesa de uma política neoliberal radicalizada em suas vertentes privatistas e mercantis”. Acompanhando o que os autores do livro definem como “neoliberalismo progressivista”, corrente dominante no Partido Democrata norte-americano, em contraposição ao “neoliberalismo regressivo”, dos republicanos de Trump.
Referências que remontam às origens da Rede Globo, impulsionada não apenas pelos recursos do Time-Life, mas também por ser, desde a sua fundação “a principal expressão, na cultura brasileira, de um ‘americanismo”, isto é, de uma visão de mundo que toma certos paradigmas idealizados dos EUA como, ao mesmo tempo, um sistema de valores, identidades e destinos”.
“Jornal Nacional, um projeto de poder”, é uma prova da importância da pesquisa acadêmica na revelação do real papel da mídia na sociedade brasileira, só possível num espaço livre de qualquer ingerência externa à produção do conhecimento.
A pesquisa, apresentada neste livro, foi produzida através de uma interdisciplinariedade que reuniu os instrumentos de coleta de dados e de análises da ciência política, da ciência da comunicação e da análise do discurso.
Essa combinação de liberdade para o exercício da crítica com a qualidade dos instrumentos de pesquisa utilizados, tornam este livro imprescindível para a compreensão do papel de um telejornal na vida sócio-política de um país.
De forma constante, de segunda a sábado, o Brasil e o mundo são recortados e oferecidos ao público de acordo com os interesses dos controladores dessa empresa, invariavelmente discordantes das necessidades reais da maioria da população e da defesa da soberania nacional.
Não que isso seja novidade. Antes da TV, os jornais e as emissoras do conglomerado já desempenhavam esse papel.
A diferença é que, a partir de 1º de novembro de 1969, quando o Jornal Nacional foi ao ar pela primeira vez, os recortes ganharam movimento, luz, cores e vozes, numa sofisticada dramaturgia direcionada para a conquista de corações e mentes. Obtida com sucesso.
Mas o Jornal Nacional não fez isso sozinho. Estrategicamente exibido entre novelas, o produto de maior sucesso da emissora, delas valeu-se para a conquista da audiência, recebendo um público quase cativo, mais interessado no desdobramento diário das tramas românticas oferecidas ao público, antes e depois do jornal.
Ao se firmar como a principal rede nacional de televisão, praticamente hegemônica, a Globo formatou um ideário nacional, capaz de tornar comuns a todo o país as conversas sobre o conteúdo das novelas ou as peripécias dos jogos de futebol. Temas inscritos nas áreas da diversão e do entretenimento, nas quais não se impõe o compromisso com o factual.
A mesma abrangência de cobertura e consequente repercussão nacional, ocorre com o jornalismo, com a diferença significativa de que a ele se atribui um compromisso com o fato e espera-se dele uma interpretação que se aproxime, o mais possível, da veracidade.
No entanto, muitas vezes, as técnicas de produção do telejornalismo se assemelhem as da teledramaturgia. Resta a diferenciá-las apenas a aura da precisão jornalística encobrindo a semelhança existente entre a produção desses gêneros.
“Eu vi no Jornal Nacional”, é uma frase comum, ouvida como testemunho de credibilidade que exemplifica essa confiança, sem levar em conta as formas e os interesses envolvidos na produção da informação. Tem a sustentá-la apenas a aura que encobre a realidade, embalando o produto oferecido ao telespectador.
É essa aura que permite ao Jornal Nacional, assim como a outros veículos da mídia corporativa, usar a ideia da pretensa isenção jornalística como forma de encobrir seus reais interesses. E quando ela recebe críticas de setores diferentes da sociedade, até antagônicos, os utiliza como forma de propagandear um equilíbrio de fato inexistente.
O livro “Jornal Nacional, um projeto de poder”, ao se debruçar sobre o papel político do principal telejornal da Globo, de 2014 para cá, consegue com muita competência mostrar que o discurso de isenção não se sustenta.
Levanta o véu que cobre as aparências e revela as rotas seguidas pelo telejornal. Aparentemente cambiantes, elas na verdade mantêm um rumo preciso, balizado por um projeto de poder enraizado nas origens da empresa.
Projeto que se manifesta de forma aguda em momentos políticos mais críticos e, cotidianamente, de forma homeopática.
Não custa lembrar as manchetes do jornal O Globo saudando o golpe de 64 ou o condenando a instituição do 13º salário para os trabalhadores de todo país.
Ou ainda, em situação mais recente, a convocação pela TV Globo dos atos contra o governo da presidenta Dilma que levaram ao golpe de 2016, construindo um cenário onde grassava “uma corrupção nunca antes vista”, projetando “uma crise econômica sem precedentes”, como lembra o livro. Sem esquecer a pirotecnica em torno das operações denominadas Mensalão e Lava Jato.
Para fixá-las no imaginário da população, o recurso dramatúrgico dos dutos de petróleo enferrujados, despejando uma fartura de dinheiro na tela, teve uma força simbólica poderosa.
Não há necessidade de ouvir ou ler, basta passar à frente de um aparelho sintonizado no Jornal Nacional, num bar ou numa sala de espera, para saber que a corrupção grassa no país, num processo cotidiano de criminalização da política. Ação de propaganda camuflada de jornalismo, documentada e comentada com rigor no livro.
Se mostra, o Jornal Nacional também esconde ou minimiza o que não interessa à empresa.
“Em setembro de 2014, o Brasil deixou o Mapa da Fome, de acordo com levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU). O Jornal Nacional não deu chamada de abertura e dedicou 38 segundos à matéria. Em dezembro de 2014, a taxa de desocupação da mão de obra foi de 4,8%, o menor nível da série histórica. A notícia recebeu 37 segundos, não foi a chamada principal e limitou-se a mostrar números, sem entrevistas e sem contextualização. O Boletim do Tempo teve mais de um minuto”, destaca o jornalista Luiz Nassif, no prefácio do livro.
Dados como esse, apresentados com rigor acadêmico, estão presentes ao longo de todo o livro.
A partir deles revela-se a conduta retilínea do jornal em busca dos interesses que defende, ancorados basicamente na “defesa de uma política neoliberal radicalizada em suas vertentes privatistas e mercantis”. Acompanhando o que os autores do livro definem como “neoliberalismo progressivista”, corrente dominante no Partido Democrata norte-americano, em contraposição ao “neoliberalismo regressivo”, dos republicanos de Trump.
Referências que remontam às origens da Rede Globo, impulsionada não apenas pelos recursos do Time-Life, mas também por ser, desde a sua fundação “a principal expressão, na cultura brasileira, de um ‘americanismo”, isto é, de uma visão de mundo que toma certos paradigmas idealizados dos EUA como, ao mesmo tempo, um sistema de valores, identidades e destinos”.
“Jornal Nacional, um projeto de poder”, é uma prova da importância da pesquisa acadêmica na revelação do real papel da mídia na sociedade brasileira, só possível num espaço livre de qualquer ingerência externa à produção do conhecimento.
A pesquisa, apresentada neste livro, foi produzida através de uma interdisciplinariedade que reuniu os instrumentos de coleta de dados e de análises da ciência política, da ciência da comunicação e da análise do discurso.
Essa combinação de liberdade para o exercício da crítica com a qualidade dos instrumentos de pesquisa utilizados, tornam este livro imprescindível para a compreensão do papel de um telejornal na vida sócio-política de um país.
Fato, ao que tudo indica, único em todo o mundo.
* Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da USP. Integra o Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a diretoria do Centro de Estudos Barão de Itararé. Tem quatro livros publicados, entre os quais “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão”.
* Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista, professor da USP. Integra o Conselho Deliberativo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a diretoria do Centro de Estudos Barão de Itararé. Tem quatro livros publicados, entre os quais “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão”.
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