domingo, 9 de janeiro de 2022

A batalha de 2022: com que programa?

Charge: Amarildo
Por Pedro Tierra, no site Carta Maior:


A história dos últimos seis anos da disputa de classes no Brasil se encarregou de recuperar a imagem do Partido dos Trabalhadores diante da sociedade brasileira. No momento em que foi desfechado o golpe de estado contra a Presidente eleita Dilma Rousseff, em 2016, o PT era o partido da preferência de 9% dos eleitores (Ibope).

Em fins de dezembro último, quando nos aproximamos da disputa eleitoral de 2022, de acordo com dados publicados pelos institutos de pesquisa, o Partido alcança 28% (Datafolha), considerando a margem de erro, algo próximo a um terço dos eleitores, como em seus melhores momentos.

Desmoralizada a Lava-Jato, desmoralizados os procuradores de Curitiba e seu power point, declarado suspeito e parcial o ex-juiz e agora candidato que confessou publicamente ter-se utilizado do judiciário para combater o PT, desmoralizada a mídia corporativa e seus editoriais comprometidos com a campanha contra o Partido, a legenda reocupa o espaço que lhe cabe na cena política do país como a principal alternativa ao governo neofascista de Jair Bolsonaro.

Depois de uma sequência impressionante de vitórias judiciais – 21 processos anulados ou encerrados por falta de materialidade que lhes dessem sustentação – ao longo de 2021, Lula recuperou seus direitos políticos esbulhados pela lava-jato e Sérgio Moro para impedi-lo de disputar as eleições de 2018 e se reafirmou como a mais sólida liderança popular do país.

Não há registro na história jurídica do país de um Judiciário que, num tempo histórico tão breve, tenha sido obrigado a rever e anular número semelhante de processos contra uma liderança política.

A preferência dos eleitores por um determinado Partido no Brasil, um país cuja cultura política confere mais relevo às pessoas do que às instituições, tem incidência relativa nos resultados eleitorais.

No caso do PT, entretanto, além de infundir ânimo no coração de uma militância que demonstra uma inegável capacidade de resistência, nos remete a um aspecto pouco considerado em relação a outras siglas partidárias: o programa. Ao lado da declaração de preferência, o Partido é sempre identificado pelos cidadãos eleitores como o que mais defende os interesses dos assalariados.

Ninguém que acompanhe de perto o cenário político do país deve menosprezar sua complexidade. A aliança da direita convencional, ancorada pela plutocracia e articulada com interesses internacionais foi responsável direta pelo golpe de estado de 2016. Não importa que seu subproduto – o bolsonarismo – tenha atropelado suas próprias pretensões eleitorais em 2018, para conduzir o país à barbárie em que nos encontramos. Ela não apenas soube digeri-lo, como conviveu confortável e lucrativamente com ele ao longo desses três anos de mandato.

O projeto neoliberal fracassou no Brasil, seis anos depois do golpe de estado. Na economia, na política, nas relações internacionais. Não há como esconder os fatos, como pretende a mídia corporativa. O país que foi a sexta economia do mundo, alcançou o pleno emprego durante os governos democrático-populares liderados pelo PT, se encontra na 13a posição, estagnado às voltas com a inflação e o desemprego em massa. As relações políticas são pautadas pelo mais raso patrimonialismo e clientelismo. O Brasil que projetou ao longo de décadas uma diplomacia marcada pela competência e profissionalismo, perdeu o respeito que construiu diante do mundo. Foi reduzido à condição de pária.

Diante desse quadro de terra arrasada que resultou do atropelo da Carta de 1988, nunca integralmente aceita pela plutocracia, engana-se quem supõe que, no pleito de 2022, voltaremos à disputa rotineira da gerência econômica do capitalismo, como ocorria antes de 2016. Trata-se de uma disputa de poder político real. De imposição de projeto. De uma polarização – necessária! – entre a consolidação e aprofundamento do projeto neoliberal que se serviu do neofascismo para executá-lo contra o projeto democrático popular interrompido pelo golpe.

Uma exigência básica para as forças democráticas e populares empenhadas em derrotar o neofascismo no Brasil é, portanto, cumprir seu papel de educação política das classes trabalhadoras, demonstrar que o assalto aos seus direitos não era inevitável, não foi obra do acaso, nem desígnio da providência divina, foi um objetivo político traçado pelos setores privilegiados da sociedade.

E responsabilizar a plutocracia: o capital financeiro especulativo, o agronegócio, a mídia corporativa pela demolição econômica, social, sanitária, cultural e da soberania nacional que ocorreram no pós-golpe. E, por outro lado, deixar claro o caráter anti-neoliberal e antifascista do seu programa para o país.

O que significa um programa antifascista e anti-neoliberal no Brasil de 2022?

Além de resgatar o regime democrático desfigurado pelo golpe de estado de 2016 significa, sem subterfúgios, recuperar o papel do Estado como indutor do desenvolvimento do país. E recuperar a capacidade de investimento que os privatistas não se mostraram dispostos ou não foram capazes de realizar.

E como fazê-lo com a autoridade monetária – o Banco Central – submetido aos interesses dos bancos, articuladores diretos ou indiretos de todo o suporte institucional construído para sustentar as reformas neoliberais?

Não há como fazê-lo sem devolver o Banco Central ao devido controle público. Voltado não apenas para a defesa da moeda, mas comprometido com a atividade produtiva, portanto, com as taxas de emprego, na perspectiva de um projeto de desenvolvimento de longo prazo para o Brasil e não apenas com as oscilações da Bolsa e do Câmbio para responder aos interesses especulativos necessariamente imediatistas do capital financeiro.

Negociar os termos de uma Reforma Tributária que inclua o imposto sobre grandes fortunas como forma de devolver à sociedade o que foi abusivamente retirado do erário por meio desonerações, isenções, anistias ou simplesmente sonegação sistemática de impostos. Rever as políticas fiscais que resultaram na concentração da renda no topo da pirâmide social e no empobrecimento e na miséria de milhões na base assalariada, empurrada para a informalidade ou para o desemprego.

Abolir essa excrescência do “teto de gastos” enxertada na Constituição pelos golpistas de 2016 para recolocar o povo no orçamento por meio das políticas públicas de combate à fome (com segurança alimentar, reforma agrária e desenvolvimento socioambiental sustentável), saúde, educação, moradia, transporte, cultura e lazer dignos para todos.

Revogar privatizações de empresas estratégicas para garantir fundos necessários a um projeto de reconstrução nacional e desenvolvimento de longo prazo, inclusivo, ambientalmente sustentável, com forte e continuado investimento em educação, ciência, tecnologia e inovação.

A revogação da Reforma Trabalhista neoliberal que assaltou os direitos dos assalariados e não gerou emprego, ao contrário, precarizou e lançou no desemprego milhões de brasileiros não pode ser vista com espanto. Trata-se apenas de reafirmar o compromisso histórico do PT com a classe trabalhadora, sua base social de sustentação.

A reconstrução da Previdência Pública, demolida pela Reforma pinochetista de Guedes/Bolsonaro que entregou os aposentados à própria sorte, virá para a pauta, como ocorreu no Chile que constrói neste momento as alternativas ao legado nefasto da ditadura.

Para que esses objetivos se materializem, a campanha de 2022 deve ancorar-se na militância e nutrir-se da mobilização popular como demonstração inequívoca das maiorias sociais de romper com a armadura institucional do neoliberalismo que nos conduziu ao governo neofascista.

Na hora da onça beber água, a mídia corporativa não falta e não tergiversa em defender a obra de Temer e Bolsonaro, como faz o jornal “O Globo” em editorial na sexta-feira 7 de janeiro. Órfã de uma “Terceira Via” que aparentemente nasceu morta, não tem pudor em falsificar ou apagar informações sobre o desempenho da política econômica dos governos democrático-populares.

A extensão da calamidade que se abateu sobre o país com a covid-19, tem a ver com Bolsonaro e sua política deliberada de boicote às medidas sanitárias recomendadas pela OMS e ao bloqueio dos recursos destinados ao SUS. Mas tem igualmente a ver com a conversão da saúde pública em mercadoria. E com a medicina empresarial que resultou na privatização dos serviços de saúde que não se detém nem diante do crime, como vimos no caso da Prevent-Sênior, revelado pela CPI do Senado. Temos aqui um exemplo, haverá outros, que desnuda a hipocrisia dos defensores de um bolsonarismo sem Bolsonaro.

Por essa razão, em 2022, os setores democráticos e populares deverão combater não apenas o bolsonarismo – expressão mais radical, neofascista do modelo de acumulação capitalista vigente – mas as concepções econômicas que lhe dão fundamento: o modelo privatista, neoliberal de acumulação capitalista.

Com que alianças? Com aquelas forças políticas que estiverem dispostas a compor um campo comprometido com o combate à fome, ao desemprego, às consequências duradouras e sequelas resultantes da pandemia, à afirmação da soberania nacional e da integração latino-americana. Com essa aliança e a mobilização social necessária avançaremos na perspectiva da construção de uma sociedade realmente democrática, com ampla participação popular nas decisões, para demolir o cerco ideológico privatista que sufoca o país.

No bicentenário da Independência, em 2022, a sociedade brasileira terá a oportunidade de escolher entre a vocação colonial e escravocrata das elites que nos governam e a possibilidade de nos reconstruirmos como nação justa e soberana diante do mundo. E entenderá que não resistimos esses seis anos de calamidades econômicas, sociais e sanitárias produzidas pelo fracasso do projeto neoliberal para, na hipótese de vencer as eleições, por em prática o programa que mergulhou o Brasil na barbárie em que se encontra.

* Pedro Tierra é poeta. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.

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