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O fantasma da precarização ronda o mundo do trabalho. Atendendo pelo neologismo de “uberização” (surgido a partir do nome da plataforma digital Uber, criada nos EUA em 2009), o termo designa a relação de prestação de serviço para uma empresa-plataforma digital de trabalho sem a devida contratação formal. No caso dos jornalistas, as plataformas de trabalho não estão atuando diretamente sobre a mão de obra desta categoria profissional, ou seja, não estão arregimentando trabalhadores freelancer para produzir notícias. Entretanto, há outros tipos de plataformas que estão alterando completamente a forma de difusão e o consumo da notícia que, consequentemente, impactam o trabalho do jornalista. Google, Facebook, WhatsApp, que possibilitam a troca de mensagens instantâneas, se colocam como um dos principais meios pelo qual a população se informa sobre os acontecimentos diários, substituindo os veículos tradicionais de comunicação, como jornal e revista impressos, rádio e TV.
Além disso, o processo de digitalização do trabalho nessa categoria profissional já se inicia nos anos 1980. Em outubro de 1981 o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo realiza o seminário “Quem tem medo do computador?” pois, já naquela época, a informatização chegava aos jornais e a eliminação de etapas na cadeia produtiva tinha início. Em 1984, por exemplo, a Folha de S. Paulo extingue o trabalho de revisão (demitindo 70 jornalistas) e a correção do texto passa a ser feita pelo repórter no terminal de seu computador.
Nos anos seguintes as grandes redações fazem o mesmo e, na década de 1990, o processo de digitalização atinge a fotografia, a diagramação (paginação) com a introdução de softwares gráficos e, na TV, ocorre a substituição das câmeras de filmagens pela camcorder (inicialmente com a fita VHS). Mesmo que a eliminação de setores e funções tenha sido maior na gráfica do que na redação, toda a cadeia produtiva do jornalismo foi afetada [1].
Ainda nos anos 1980, teve início o processo de precarização do trabalho dos jornalistas, a partir da “pjotização”, quando o jornalista tem que abrir uma empresa em seu nome e passa a emitir uma nota fiscal como pessoa jurídica em vez de receber o salário, mesmo prestando serviço diário de maneira habitual e contínua numa mesma redação. Este pioneirismo – nada lisonjeiro – inicialmente restrito aos maiores vencimentos hoje se encontra presente em todas as faixas salariais.
Assim, ao chegar o Sec. XXI, a precarização já é comum ao jornalista que passa a sua jornada laboral utilizando a internet como ferramenta de trabalho, estando digitalizada a escrita, edição e publicação de notícias, o que torna o jornalismo uma das profissões mais “conectadas” do mercado. E a inovação tecnológica e organizacional não terminou, já que, a cada momento, novas mudanças estão acontecendo – o teletrabalho no jornalismo se encontra a todo vapor, turbinado pela pandemia. Há quem afirme que a função do redator será substituída por sistemas de Inteligência Artificial, que coletarão dados e escreverão textos, seguindo as experiências em curso no Washington Post (sistema Heliograf para notícias políticas e esportivas); no Los Angeles Times (Bot Quake que monitora os terremotos na região); na agência de notícias Associated Press (sistema Automated Insights para produzir histórias a partir de dados) e a lista não para de crescer [2].
A despeito da diversidade de áreas em que atuam as plataformas digitais, estas têm na posse e manipulação dos dados armazenados (os chamados big data) a lógica de seu funcionamento. A troca de informação entre pessoas faz parte do negócio: o objetivo é cativar a audiência, coletar dados, garantir os “cliques” pelos quais se mede o sucesso e “vender” o acesso ao usuário consumidor para outras empresas.
A imprensa tradicional, por sua vez, tem na oferta de notícias o centro do negócio, que se caracteriza pela produção e divulgação da informação e não pela tecnologia em si. Estas empresas necessitam investir em equipes profissionais, métodos de trabalho, estabelecimentos, máquinas e instalações adequadas, enquanto as plataformas basicamente se limitam ao equipamento do próprio usuário e à divulgação/repetição de conteúdos pessoais ou reproduzidos de terceiros, na maioria das vezes copiados de jornalistas que nada recebem por isso.
Além do mais, as empresas de tecnologia que mantém as plataformas digitais não se enquadram no setor de comunicação social, publicidade e tampouco de telecomunicação, apesar de, na prática, atuarem nesse campo. Devido à falta de legislação e normas tributárias específicas, as plataformas puderam crescer livremente e estabelecer um modelo próprio de negócio, enquanto a comunicação e a telecomunicação seguem reguladas e acompanhadas pelo Estado.
Como as plataformas digitais mantêm um vasto rol de atividades e uma base de usuários muito mais ampla do que a dos jornais, sua popularidade cresceu exponencialmente e o impacto sobre os veículos jornalísticos tradicionais foi grande, principalmente sobre sua fonte de renda; a publicidade. Primeiramente em função da publicidade dirigida, por meio da qual as plataformas encaminham as mensagens segundo o interesse hipotético do leitor/consumidor (o que é possível em função da própria coleta de dados dos usuários, do uso do big data, dos algoritmos e da Inteligência Artificial). Segundo, no caso dos jornais e revistas, o volume do investimento em publicidade aumenta em quantidade muito menor do que cresce a oferta de espaço, dado que a publicidade nestes meios está atrelada ao número de páginas do veículo, enquanto o da internet chega a ser virtualmente infinito. O setor de Rádio e TV, por sua vez, sofre não só a concorrência da internet como também das emissoras por assinatura.
Jânio de Freitas (2020:09) – jornalista cuja carreira começou nos anos de 1950 – em uma análise sobre o aparecimento da internet nas redações, assinala o que, a seu ver, foi uma “completa ausência de pensamento crítico” pois quando a internet começa a divulgar notícias, os jornalistas cometem um erro crucial: “Criam a oferta gratuita de noticiário (…) e páginas na internet antecipando o que sairia no dia seguinte” [3] e, assim, contribuem para destruir o próprio negócio.
O que aconteceu é que as empresas jornalísticas enxergaram na internet apenas um espaço para divulgar o noticiário que produziam. Míopes pela ilusão de um marketing gratuito, não se deram conta que as redes sociais estavam alterando o padrão de intermediação vertical do jornalismo (uma rede de profissionais e uma cadeia de produção que envolve coleta, seleção, organização, edição e divulgação) por um modelo horizontal de transmissão direta entre autor da informação e leitor. Surgia uma nova dinâmica entre receptores e consumidores de informação.
Nesse movimento, a busca pela notícia exclusiva, a apuração objetiva, o texto criterioso, a pluralidade de fontes, o aprofundamento no tema, o “furo”, enfim, tudo o que se caracteriza como bom jornalismo perde a centralidade em nome da velocidade na divulgação de conteúdos de apelo popular mais “clicáveis”. A cobertura se torna superficial e padronizada, o noticiário se faz alicerçado sobretudo em informações oficiais, e dados públicos e o interesse do leitor no jornal impresso diminui, afinal, pode-se ver a mesma notícia na internet. Assim, o modelo de negócio da imprensa escrita entra em crise. O resultado foi a queda na qualidade da informação e perda de autonomia da redação frente ao departamento comercial, que passa a ser o centro controlador das empresas de comunicação, além do aprofundamento da precarização do trabalho.
Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2010 havia 54.713 jornalistas registrados com carteira de trabalho, contra 49.391 em 2019. Em 2012, a Associação Nacional dos Jornais (ANJ) contava com 154 jornais associados, número que foi reduzido para 91 em 2020 sendo que a entidade, em seu relatório de atividades de 2020, coloca a questão nos seguintes termos: “não há qualquer viabilidade de um jornal se manter competitivo e continuar a produzir conteúdo de qualidade sem a visibilidade que o Google proporciona, efeito este que tem sido denominado de too big to boycott” (que pode ser traduzido como; grande demais para ser boicotado) [4].
Em se tratando da publicidade, em 2003 o setor de jornalismo impresso ficava com 27,53% do total dos valores investidos em anúncios, caindo para 15,66% em 2013, segundo pesquisa do jornal Meio&Mensagem. Atualmente o investimento publicitário é calculado pela CEMP-Meios (Conselho Executivo de Normas Padrão) e indica que, em 2019, enquanto jornais e revistas ficaram com apenas 2,70% da publicidade, a internet subiu de 1,49 % (2003) para 21,24% em 2019.
Assim, no contexto atual, nos deparamos com outros dois movimentos simultâneos que impactam a profissão de jornalista. Por um lado, no contexto da digitalização da informação a profissão de jornalista corre o risco de se banalizar em meio a várias outras profissões ligadas à produção da informação, transformando todos em “produtores de conteúdo”, o que deixa no mesmo patamar notícias, entretenimento e a simples divulgação de acontecimentos, fenômeno chamado nos EUA de “media-worker” (Neveu, 2006) [5]. No Brasil eles ficaram conhecidos por “comunicadores”, pessoas das mais variadas formações que estão nas redes sociais divulgando informações, inclusive inverídicas. São Youtubers, influenciadores, gerentes de mídia digital que formam uma miríade de “produtores de conteúdo” e criam tensão com o jornalista que, por sua vez, procura reafirmar sua especificidade e seu espaço no mundo da informação.
Por outro, está posta a questão da sustentabilidade econômica do setor e de um novo modelo de financiamento, dada a diminuição da venda de publicidade aos veículos tradicionais de comunicação. Nesse sentido, despontam iniciativas na esfera legislativa (Projetos de Lei – PL´s) que tratam diretamente da questão do trabalho jornalístico nas redes sociais e que procuram cobrar direitos autorais das plataformas (PL 4255/2020, PL 2630/2021 e PL 2950/202) como forma de remunerar jornalistas e empresas. Além disso, a Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ) lançou uma campanha internacional para a criação da “Plataforma Mundial para o Jornalismo de Qualidade”, que visa, a partir da cobrança de uma taxa sobre a receita das plataformas, criar um fundo próprio para financiar o trabalho dos jornalistas [6].
A conclusão, em que pese a conjuntura dinâmica em que as plataformas se movem, é que as próximas alterações sobre a profissão do jornalista advindas do processo de digitalização da economia e do fenômeno da plataformização ultrapassem a questão da precarização laboral e alterem, radicalmente, o campo institucional sobre o qual se baseia o próprio exercício profissional, ou seja, a forma como a notícia é produzida, divulgada e consumida.
Notas
1- RIBEIRO, José Hamilton. Jornalistas 1937 a 1997. Imprensa Oficial do Estado: São Paulo. 1998.
2- O leitor pode ter um panorama da situação consultando: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/591076-a-inteligencia-artificial-tambem-muda-o-jornalismo e https://laboratoriodeperiodismo.org/inteligencia-artificial-para-que-puede-usarse-en-periodismo-y-que-estan-haciendo-los-medios/. Acesso em: 20.01.2022.
3- Jornal Unidade nº 403, março-abril de 2020, órgão do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Disponível em https://www.sjsp.org.br/publicacoes/jornal-unidade-403-marco-e-abril-2020-325c. Acesso em 25.01.2022.
4- Os dados sobre o mercado de trabalho segundo o Dieese, número de jornais e investimento publicitário foram obtidos no ebbok: CAMARGO, José Augusto (org). O impacto das plataformas digitais no jornalismo. Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), 2021. Disponível em: https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2021/05/EBOOK-PLATAFORMAS-Atualizado2.pdf. Acesso: 25.01.2022.
5- NEUVEU, Erik. Sociologia do Jornalismo, Edições Loyola, 2006.
6- Texto de lançamento https://ifj.org/fileadmin/user_upload/Plataforma_ES.pdf e manifesto de adesão brasileiro pela Fenaj em https://fenaj.org.br/wp-content/uploads/2020/10/MANIFESTO-PELA-TAXA%C3%87%C3%83O-DAS-GRANDES-PLATAFORMAS-DIGITAIS.pdf. Acesso em: 20.01.2022.
* José Augusto Camargo é jornalista e bacharel em Sociologia e Política. Foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo.
* Este artigo integra as discussões sobre o espraiamento do processo de digitalização da economia, sobretudo no que se refere às empresas-plataformas de trabalho, no Brasil. São publicadas semanalmente em Outras Palavras e que fazem parte de duas edições da Revista da Faculdade do Dieese de Ciências do Trabalho. A publicação é fruto de parceria com a da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (REMIR) e a Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET). Leia outros texto desta série sobre as várias faces da precarização do trabalho.
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