Charge: Latuff |
Julian Paul Assange parece um enigma para esses tempos. Desde a revelação dos documentos sigilosos do governo dos EUA, em 2010, aparece assim para o mundo. A formulação liberal sobre as liberdades, de modo especial a chamada liberdade de expressão, não se aplica no caso dele. Vai sendo pouco a pouco crucificado. Vão apertando a coroa de espinhos em torno de sua cabeça, sem compaixão.
Poucas, muito poucas, as vozes dispostas a defendê-lo. A mídia tradicional, parte dela com imensa dívida com ele, repercute timidamente a crucificação. Não pode deixar de noticiar, mas o faz, torcendo o nariz, e sem o destaque merecido. Qual o crime de Assange? Quais os crimes?
Antes de tentar responder, vou ousar dizer uma coisa: Assange, ao fundar o WikiLeaks em 2006, iniciar a jornada do site, explodiu com a normalidade jornalística.
O jornalismo, na formulação original, defendeu a necessidade de revelar os segredos de Estado. Iluminar as zonas de sombra do poder. Não se creia, porque ilusório, seja postulação cumprida pelos meios de comunicação, e podemos pensar em tais meios, em fase nascida ali pelos finais do século 19, quando se pode começar a falar numa imprensa com parâmetros fundados nos fatos, com a proposta do lead, eliminando-se o famoso nariz de cera.
Proposta interessante, elevada por alguns autores a uma nova e consistente forma de conhecimento. De que desconfio, a não ser pensada a partir da depuração permanente, até porque os fatos, ou chamados fatos, sofrem a inevitável interferência da ideologia, aqui no sentido de falseamento da realidade, sempre de acordo com os interesses dominantes. E jornalismo é sempre seleção, ou exclusão se quiserem – alguns assuntos elevados à condição de notícia, outros, segregados, guardados a sete chaves. A mercadoria-notícia é colocada no mercado de acordo com interesses – disso não se foge.
Creio não estar exagerando. Dissesse, no entanto, não tivesse o jornalismo, aqui, acolá, revelado segredos de Estado, seria falso. Muitas vezes, algum acesso disruptivo permitiu a emergência de segredos, à custa de muito esforço de jornalistas investigativos, e de empresas excepcionalmente dispostas a revelar coisas proibidas, atentatórias às classes dominantes.
Mas não era essa a rotina das empresas jornalísticas, dos negócios jornalísticos, submetidos à lógica do capital, à notícia transformada em mercadoria. Não era, não é. Além de tudo, uma rotina de produção marcada por uma relação entre jornalista e fonte sem muitos abalos – melhor sujeitar-se à fonte para mantê-la. Fontes credenciadas, oferecidas pelas próprias classes dominantes, salvo uma ou outra exceção. E a vida seguia.
Mais ainda, sob um mundo mergulhado em novos aparatos tecnológicos, novas tecnologias da informação, com uma capacidade enorme de armazenar segredos, capacidade dita indevassável. E o jornalismo, diante disso, se quedava conformado, satisfeito com um, outro escândalo, normalmente oferecido de mão beijada, pouco importando fosse verdadeiro ou não. A Lava Jato, no caso brasileiro, é o exemplo mais obsceno de tal comportamento. Curiosamente, foi uma ousadia semelhante ao do WikiLeaks a desmascará-la.
Necessário, e ele sempre aparece, o surgimento de um deus ex machina. Capaz de colocar tudo em xeque, de perguntar sobre a natureza da ordem. Perguntar atuando. Assim, Assange veio para explodir a noção do jornalismo bem-comportado, dócil ao Estado e às classes dominantes, vivendo à custa de tal doçura. É conhecida a história: ele oferece todo o material aos jornais, a alguns, os poucos a topar a empreitada. Como se dissesse: - “Sei, vocês não têm capacidade de fazer isso, eu tenho, então venham comigo”.
Era 2010, tem pouco tempo, né?
Pouco mais de uma década. Assange e seu WikiLeaks tinham à mão o ataque aéreo a Bagdá de 12 de julho de 2007, registros das guerras do Afeganistão e do Iraque. Depois, entre tantos absurdos, viriam revelações sobre a prisão de Guantánamo, torturas a prisioneiros praticadas pelos EUA na masmorra controlada pelos EUA em território cubano desde 1903.
Quer coisas mais necessárias, observados aqueles princípios iniciais do jornalismo? Divulgar atrocidades do Império, qualquer império? Revelar guerras, sobretudo guerras montadas sob mentiras, invenções? Sangue derramado? Crimes de uma potência a se considerar sempre impune e com o direito de punir quem quer que seja mundo afora.
História conhecida, e aí, depois de tais revelações, iniciou-se feroz perseguição a Assange por parte do Império, e um impressionante acovardamento de toda a mídia mundial, nem sei se a palavra cabe. Na verdade, os grandes meios de comunicação preferiram o silêncio, ou uma atitude complacente diante das crueldades dos EUA, movidos por interesses, como sempre.
A Suécia também entrou no jogo contra Assange, acusando-o de estupro, emitindo mandado de prisão – mais tarde a Justiça sueca o inocentou. Foi para o Reino Unido, idas e vindas, perseguições, e ele resolve aceitar a concessão de asilo na embaixada do Equador em Londres, em agosto de 2012, Rafael Correa presidente.
Com a vitória de Lenin Moreno e a adoção de rigorosas políticas neoliberais, a perseguição recrudesceu. Moreno inicia conversas com autoridades britânicas para remover o direito de asilo do jornalista. Removido tal direito em 11 de abril de 2019, não podendo mais permanecer na embaixada do Equador, é preso.
De lá para cá, o inferno.
Os EUA acabam de conseguir ordem de extradição e a condenação a esperá-lo nos EUA alcança 175 anos de prisão – vá lá se entender Justiça com essas dosimetrias. Melhor dizer prisão perpétua.
Em outubro de 2021, Assange teve um acidente vascular cerebral – informação dada por Stella Morris, mãe de dois filhos com ele, insistente em denunciar a feroz perseguição. Teve perda de memória, sinais de danos neurológicos e a queda de sua pálpebra direita. Desde então, submetido a medicamentos.
Judiciário britânico disposto a levá-lo à morte, ao admitir a extradição. O Reino Unido o trata como um animal, e animal perigoso. Na última audiência, no dia marcado para o julgamento, foi revistado nu, e depois transportado acorrentado até o tribunal, onde aparecia para o público dentro de uma caixa de vidro, sem acesso direto aos advogados. Quando necessitasse, escrevia notas, e ajoelhava de modo a poder passá-las aos defensores por uma fenda no chão. Após a audiência, reconduzido à prisão de Belmarsh, alcunhada de Guantánamo britânica.
No intenso processo de perseguição, a Suprema Corte do Reino Unido reverteu a negação de instância inferior, cuja decisão era contrária à extradição dele para os EUA. A decisão da extradição ocorreu apesar de revelações recentes de conspiração da CIA para sequestrá-lo e assassiná-lo, conforme explosiva reportagem do Yahoo!, na qual se revela a atuação de altos funcionários da CIA e do governo norte-americano buscando esquemas, caminhos para assassinar Assange.
Quanto à perseguição, governo Biden segue a mesma trilha de Trump no caso, ninguém se iluda. Ao Império, pouco importam as condições de saúde de Assange. Houve testemunho do professor emérito de neuropsiquiatria do King’s College London, Michael Kopelman, dando conta de que ele sofre “de um transtorno depressivo recorrente, às vezes acompanhado de características psicóticas, muitas vezes com ideias suicidas ruminativas”. Além disso, o diagnóstico de Asperger nele, já consolidado, significa alto risco de suicídio se extraditado para os EUA.
Biden deu garantias de que Assange não estaria sujeito a medidas administrativas especiais onerosas que o mantivessem em extremo isolamento, ou monitorassem comunicações confidenciais com advogados. Garantiu, ainda, não ser alojado na notória prisão de segurança máxima no Colorado. Receberia tratamento psicológico e clínico e poderia cumprir qualquer pena de prisão na Austrália.
Acreditar em tais promessas, como?
Os próprios EUA abriram uma lacuna: tais garantias não se aplicariam caso Assange cometesse um ato futuro a justificar medidas administrativas especiais. Ora, ora, acredite quem quiser. Chegando aos EUA – se –, ele será inevitavelmente colocado em condições carcerárias precárias, e inteiramente isolado. Lá, tudo é tolerância zero, ainda mais com um prisioneiro político como ele.
A Anistia Internacional foi clara:
“Se extraditado para os EUA, Julian Assange poderá não apenas enfrentar um julgamento por acusações sob a lei de Espionagem, mas também um risco real de graves violações de direitos humanos devido às condições de detenção que poderiam equivaler à tortura ou outros maus-tratos”.
Sem qualquer dúvida, Assange é um prisioneiro político. Talvez o mais notório do mundo nos dias atuais pelo papel desempenhado por ele em relação aos poderes dominantes, especialmente quanto aos EUA, senhores da guerra, como todos sabemos.
A derrota do Império no Afeganistão, humilhante, deveria servir de argumento para a libertação dele. Afinal, revelou-se o quanto foi sangrenta e inócua aquela guerra. Assange desnudou a natureza da mortífera máquina de guerra dos EUA. Mas, não: prossegue a perseguição implacável. Caso se conclua a extradição, sabe-se: Assange está sendo condenado à morte. As precárias condições de saúde dele não suportarão o regime prisional dos EUA.
O presidente Andrés Manuel López Obrador, do México, reiterou, nos últimos dias, a disposição de garantir asilo a Assange. O governo dos EUA devia atuar “com humanismo”, propõe Obrador. Completou: “Assange está doente e esta seria uma demonstração de solidariedade, fraternidade”. Abriu-se essa porta, espera-se seja aproveitada, embora seja pouco provável.
Quem tiver compromissos com a liberdade de expressão, os jornalistas de todo o mundo, os comprometidos com a verdade ao menos, os intelectuais, as lideranças políticas progressistas defensoras da liberdade de expressão, têm o dever de levantar-se vigorosamente e exigir a libertação de Assange.
Querem puni-lo exemplarmente de modo a preservar os segredos de Estado, os crimes contra a humanidade, as agressões permanentes contra os direitos humanos, preservar sobretudo um modo de produção, o capitalismo, a colocar a humanidade numa rota suicida. Unem-se, nessa agressão criminosa, os EUA, o Reino Unido, outros países europeus, num óbvio exercício de lawfare. Querem silenciar uma voz da liberdade.
Referências
COHN, Marjorie. Corte britânica confia nos EUA para proteger Assange, embora a CIA planejasse matá-lo.Carta Maior, Porto Alegre, 16 dez.2021. Acesso em: 22 dez. 2021
DE MIGUEL, Rafa. Justiça britânica abre as portas à extradição de Assange para os EUA. El País, Brasil Internacional, 10 dez.2021. Acesso em 20 dez. 2021.
JULIAN Assange. Wikipédia. Acesso em: 21 dez.2021.
MARQUES, Luiz. Capitalismo vs liberdade de expressão. Focus Brasil, São Paulo, 16 dez.2021. Acesso em: 21 dez. 2021.
OS SEGREDOS que soubemos graças ao Wikileaks. Outras Palavras, São Paulo, 11 abr. 2019. Acesso em: 20 dez.2021.
PRONER, Carol. Sobre a extradição de Julian Assange. A Terra é Redonda, 20 dez.2021. Acesso em: 21 dez. 2021.
* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), O Cão Morde a Noite, entre outros.
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