quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Orçamento secreto no governo Bolsonaro

Charge: Zé Dassilva
Por Antônio Augusto de Queiroz, na revista Teoria e Debate:


O orçamento público é o instrumento que os governos usam para planejar e estabelecer as prioridades de gastos do Estado. Um pressuposto da legitimidade do orçamento público, além de sua destinação, está na clareza e na transparência, que são duas condições indispensáveis para que haja controle social e a sociedade seja ao mesmo tempo a protagonista e a beneficiária efetiva dos recursos arrecadados compulsoriamente de todos. O segredo na arrecadação de receitas, na efetivação de despesas e na destinação de recursos financeiros é incompatível com a forma republicana e o regime democrático de governo. Assim, nem a elaboração do orçamento público nem a execução podem ser secretas.

As peças orçamentárias – Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Lei Orçamentária Anual – são elaboradas pelo Poder Executivo e enviadas para debate e deliberação do Poder Legislativo, que possui a prerrogativa de propor mudanças, mediante emendas dos parlamentares, sujeitas às regras da própria Constituição (art. 166 e 166-A). Nas democracias, os parlamentares podem alocar recursos no orçamento público, em conformidade com suas prerrogativas e prioridades, havendo países, como o Brasil, que, além disso, reservam valores (espécie de cotas) que os parlamentares podem indicar sua destinação.

Nessa perspectiva, historicamente, existiam três tipos de emendas ao orçamento público federal brasileiro: as emendas individuais, as emendas de bancadas estaduais e as emendas de comissões temáticas da Câmara e do Senado, estas últimas também conhecidas como emendas coletivas. A execução dessas emendas se dá de forma transparente, com a divulgação em portal público tanto de sua destinação quanto de seus autores. A margem para fazer uso político delas é baixa, pois os governos não podem utilizá-las como forma de “comprar” apoio político.

A Emenda Constitucional nº 86, de 2015, introduziu a obrigatoriedade da execução das emendas individuais no montante de 1,2% da receita corrente líquida, e a Emenda Constitucional nº 100, de 2019, assegurou também essa obrigatoriedade para as emendas de iniciativa de bancada de parlamentares de Estado ou do Distrito Federal, no montante de até 1% da receita corrente líquida. Essas modificações objetivaram reduzir o uso da liberação de emendas como forma de coagir o parlamentar a adotar posições a favor do governo, até ali o senhor e dono da execução do orçamento.

Entretanto, a partir de 2020, na gestão Bolsonaro, logo após o ingresso do Centrão na base do governo, surgiu uma nova modalidade de emenda: a emenda de relator, sem qualquer transparência nem controle social. Segundo o PSol, autor da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 854, os recursos alocados pelas emendas de relator têm finalidade específica: servir de moeda de troca por voto de parlamentares da base do governo, tanto para aprovar proposições legislativas de interesse do governo quanto para eleger aliados governamentais em postos-chave da estrutura da Câmara e do Senado. De acordo com o partido, o relator-geral utilizaria seus poderes regimentais para introduzir a previsão de despesas públicas na Lei Orçamentária Anual (LOA) mediante emendas parlamentares (emendas do relator). Essa programação orçamentária seria utilizada, em momento posterior, para negociar apoio político de parlamentares, que seriam contemplados com uma “quota orçamentária” (fração das despesas alocadas no orçamento por emendas do relator).

Ainda segundo o partido, os valores bilionários das emendas de relator são destinados aos ministérios responsáveis pela execução, especialmente o Ministério do Desenvolvimento Regional. Consta que o governo utilizou largamente os recursos das emendas de relator para aprovar sua agenda no Congresso e para favorecer deputados e senadores que votaram em seus candidatos às presidências das Casas em 2021.

O esquema para liberação dos recursos das emendas de relator funciona do seguinte modo: o Poder Executivo federal, por intermédio da Secretaria de Governo, define as proposições prioritárias e estabelece uma política de barganha com os partidos da base, segundo a qual os parlamentares que apoiarem os pleitos governamentais serão “premiados” com a liberação de emendas de relator. O relator geral do Orçamento passa a ser uma espécie de gestor desses recursos, cabendo a ele informar ao ministério responsável pela liberação dos recursos o nome do parlamentar que irá indicar a destinação da verba; geralmente prefeituras, entidades públicas ou órgãos beneficiários de sua base eleitoral, porém, sem registro público do padrinho ou patrocinador da verba. A partir da eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, ele passou a ter controle sobre o processo, coordenando os contatos com o relator-geral, com a Secretaria de Governo e com o ministério responsável pela liberação dos recursos.

O tema ganhou grande repercussão após a entrevista do deputado Delegado Waldir (PSL-GO), ex-aliado do governo Bolsonaro, ao portal The Intercept Brasil, e também após a decisão da ministra Rosa Weber, do STF, na ADPF 854, ratificada pelo plenário, que suspendeu a execução dessa modalidade de emenda, além de exigir que fossem divulgados os nomes de todos os beneficiários dos anos de 2020 e 2021. Em seu voto, a ministra Rosa Weber afirmou que “os atos que compõem o ciclo orçamentário, desde a elaboração e planejamento à realização das despesas públicas, hão de ser praticados com atenção e fidelidade aos postulados republicanos e à transparência necessária à garantia de acesso de todos às informações de interesse público”.

A ministra afirma que, enquanto o regime de execução das emendas parlamentares (individuais, de comissões e de bancadas estaduais) vincula o autor da emenda ao beneficiário, tornando claras e verificáveis a origem e a destinação do dinheiro gasto, as emendas de relator operam com base na lógica da ocultação dos efetivos requerentes da despesa, por meio da utilização de rubrica orçamentária única (RP 9), na qual todas as despesas previstas são atribuídas indiscriminadamente à pessoa do relator-geral do orçamento, que atua como figura interposta entre parlamentares e o orçamento público federal.

Ela esclarece, ainda, que enquanto a disciplina normativa da execução das emendas individuais e de bancada (RP 6 e RP 7) orienta-se pelos postulados da transparência e da impessoalidade, o regramento pertinente às emendas do relator (RP 9) distancia-se desses ideais republicanos, tornando impossível a identificação dos parlamentares que patrocinam ou apadrinham o gasto.

De fato, essa modalidade de emenda apresenta vários problemas e sua execução é condenável ética e moralmente. Em primeiro lugar, não é transparente, ou seja, ninguém sabe o nome dos parlamentares que indicam a liberação de recurso para suas bases eleitorais. Em segundo, os recursos podem ser liberados apenas para os aliados do governo, não havendo obrigatoriedade de isonomia na liberação dos recursos. E, em terceiro, porque interfere no resultado eleitoral, favorecendo os aliados do governo com verbas públicas, mas de forma pouco republicana, posto que não há qualquer transparência na decisão sobre o que – ou quem – será beneficiado.

Para impedir essa prática, o STF, determinou: (a) quanto ao orçamento dos exercícios de 2020 e de 2021, ampla publicização aos documentos embasadores da distribuição de recursos das emendas de relator-geral (RP-9); (b) quanto à execução das despesas indicadas pelo classificador RP 9 (despesas decorrentes de emendas do relator do projeto de lei orçamentária anual), implementação de medidas para que todas as demandas de parlamentares voltadas à distribuição de emendas de relator-geral, independentemente da modalidade de aplicação, sejam registradas em plataforma eletrônica centralizada, em conformidade com os princípios da publicidade e transparência (CF, arts. 37, caput, e 163-A); e (c) quanto ao orçamento do exercício de 2021, a suspensão integral e imediata da execução dos recursos orçamentários oriundos do identificador de resultado primário nº 9 (RP 9).

O Congresso Nacional aprovou a Resolução nº 2, de 2021-CN para dar transparência à liberação de recursos da emenda de relator, comprometendo-se a informar, doravante, o nome do parlamentar que patrocinar a liberação de recursos, porém não liberou os nomes de quem foi beneficiado por emenda de relator nos anos de 2020 e 2021. E mesmo no que se refere à execução futura das emendas, ela não impede que, por meio de artifícios, seja ocultado o nome do verdadeiro interessado, pois bastará ao parlamentar beneficiado pela emenda valer-se de um prefeito, deputado estadual, vereador ou mesmo entidade privada para solicitar ao Relator a indicação de sua execução pelo Executivo.

A expectativa é que o Poder Judiciário renove sua decisão e vede definitivamente o uso político do orçamento para “comprar” votos, e exija a imediata divulgação dos patrocinadores e beneficiários das emendas de relatores nos anos anteriores, além de determinar transparência total à execução orçamentária, pondo fim a essa prática anti-republicana do governo e do Parlamento.

* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, analista e consultor político em Brasília. Mestrando em Políticas Públicas e Governo pela FGV-DF, foi diretor de Documentação do Diap.

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