segunda-feira, 2 de maio de 2022

2013 e a vacina contra o golpe anunciado

Charge: Aroeira
Por Luiz Eduardo Soares

Vocês me desculpem voltar a 2013, pela enésima vez, mas essa minha obsessão cumprirá o papel de nos conduzir ao tema inescapável: o golpe que Bolsonaro está montando - e anunciando -, peça a peça, passo a passo.

Qual a versão predominante nas esquerdas sobre 2013 (embora, felizmente, haja outras)?

As ruas foram tomadas por fascistas e despolitizados, liderados por interesses internacionais, que visavam a derrocada do governo Dilma e a estigmatização do PT.

Vocês sabem o que me impressiona nessa leitura simplificadora?

A rapidez com que uma interpretação se consagra quando confirma convicções anteriores e reforça os próprios valores. É muito difícil reconhecer contradições e lidar com a complexidade.

Dizer que 2013 revelaria suas verdadeiras intenções no golpe parlamentar do impeachment é mais ou menos como afirmar que a Igreja Católica medieval teria desvelado as intenções verdadeiras do cristianismo primitivo, ou que o stalinismo teria desnudado a verdadeira essência do marxismo, ou que a mercantilização das calças rasgadas e dos demais itens associados ao mundo hippie teriam demonstrado o caráter intrinsecamente (pequeno) burguês e capitalista do movimento libertário dos anos 1960, etc.

Essa visão teleológica da história é primária, mas serve muito bem para resolver problemas complicados e classificar os fenômenos, conjurando sua multidimensionalidade.

Essa perspectiva reducionista exclui do foco a política e a história, e oferece uma imagem de sabedoria e infalibilidade ao intérprete, do tipo: “Bem que eu avisei.”

O que houve em 2013, nas ruas brasileiras?

A entrada em cena de velhos e novos personagens, o ensaio geral de protagonismos originais, a ressurreição de espectros que saíram dos armários para assombrar a democracia, fascistas, manipulações midiáticas e transnacionais, a CIA e seus congêneres, interesses e vontades legítimas se expressando, interesses e vontades ilegítimas se infiltrando, agentes comprometidos com mudanças anticapitalistas se pronunciando, defensores de bandeiras neoliberais desfilando.

Enfim, Babel.

Estavam em cena, nas ruas e nas redes, as disputas de sempre, nossos atavismos imemoriais, e outros conflitos, surpreendentes, balbuciando, buscando suas dicções, se articulando, experimentando novas linguagens e, simultaneamente, tirando do baú figurinos arcaicos.

O caldeirão efervescente de uma sociedade em ebulição se derramou sobre ruas, praças e redes virtuais.

Como escrevi na época, a sociedade entrava em convulsão e combustão, os grupos se mobilizavam, porque o Brasil melhorara, a despeito de tantos limites.

Era hora de disputar avanços imediatos e rumos futuros. Energias se precipitaram, promovendo (de novo repito o que tantas vezes escrevi) o deslocamento de placas tectônicas.

Os governos do PT fizeram muito, apesar dos erros, mas justamente por conta do melhor que fez a vitalidade social, despertada, reanimada, queria mais, desejava ser ouvida, ansiava por participação.

A militância não cabia mais nos moldes tradicionais.

O modelo estava exaurido, o corpo crescia e rasgava o coração, a juventude era outra, a periferia se tornava central - graças em parte a políticas do governo (devemos muito a Gilberto Gil, por exemplo) -, suas paixões mudavam a chave da militância, o tesão migrava do aparelho para os coletivos auto-gestionários, o ativismo independente ocupava as arenas.

Já não era possível disfarçar: o vocabulário democrático-liberal envelhecera, até porque sua incompatibilidade com a experiência popular denunciava a hipocrisia que continha.

Os bons governos estão condenados à ingratidão.

Se forem bem sucedidos, despertarão contra si forças poderosas, e a história será sinônimo de saltos qualitativos na dialética dessas contradições. Seremos devorados por nossos filhos, se cumprirmos nosso dever. Está aí a beleza e a tragédia da luta política.

Entretanto, não idealizemos o passado. Ao lado da justa insatisfação e das nobres expectativas, em cada esquina, estavam à espreita o imperialismo, nossas oligarquias, as grandes corporações, as tramas perversas do agronegócio e o capital financeiro. E aí é que está o busilis.

Vejam bem, estavam todos lá, direta ou indiretamente. A história borbulhava no calor das chamas e dos brados, a desordem era fértil, grávida de felicidade e traição, prenhe de virtude e veneno. Deus e o diabo estavam soltos, no meio da rua.

O futuro foi sendo definido pelo que se fez com aquela precipitação extraordinária de energias.

Não foi a irrupção de 2013 que moldou os anos seguintes; o que determinou as veredas futuras foi o que se fez com 2013, para onde e como se canalizaram aquelas energias - e o descaso com que se tratou seu potencial transformador positivo.

Dilma deu sinais interessantes e parecia disposta a entrar na disputa pelos sentidos que estavam em jogo e pela canalização do desejo de participação.

Michel Temer, então presidente da Câmara, interveio, imediatamente, sem cartas, sutilezas e mesóclises.

Basicamente, ele mimetizou as ações policiais que barbarizaram nas ruas: “Mãos na parede, fique onde está, não se mexa”. Ou seja, o establishment não daria ouvido aos “baderneiros”.

Aos “vândalos”, bala, porrada e bomba. Aquilo - eis as palavras do poder - não passava de provocação à autoridade do Estado. Dilma se imobilizou, e imobilizada se manteria, dois anos depois, ante o avanço golpista da Lava-Jato.

Os verdadeiros vândalos - ora, ora, que novidade! - vestiam terno e gravata, e evocaram a sagrada família quando encenaram a farsa do impeachment. Não foi 2013 que deu o golpe, o golpe foi dado por quem negara 2013 e pressionara o governo a endossar a repressão.

Tanto é verdade que Temer concluiu seu mandato nas cordas com 5% de apoio. Seu governo era impopular e antipopular. A opinião pública estava farta dos minuetos da Corte.

E quem o sucedeu foi quem se ligou às ruas, mesmo que exclusivamente ao lado sombrio das ruas, ao que havia nelas de regressivo e brutal.

Mas se ligou às ruas, apostou no aquecimento da mobilização, embora defendesse e praticasse a repressão de seus adversários, tratados como inimigos.

Bolsonaro foi o único ator político sintonizado com o fato (que ele leu pelo avesso) de que as energias precipitadas em 2013 haviam sido produzidas pelo dinamismo conflagrado e agonístico da sociedade brasileira, quando confrontada com a expansão da cidadania, a elevação de expectativas e a concretização de algo próximo ao que se denominava democracia.

As ruas, como vimos, haviam sido medo, ressentimento e também esperança e gregarismo não necessariamente agnóstico.

Ele sabia que 2013 fora um fenômeno decisivo, um divisor de águas, e que o futuro se decidiria na disputa pelo direcionamento daquelas energias disruptivas e refratárias ao confinamento anterior.

Sua candidatura nasceu como uma proposta de metabolização pela direita, pela ultra-direita fascista, das energias precipitadas no deslocamento de placas tectônicas.

Piero Leirner, em seus escritos, mostra que o Exército decidiu apostar em Bolsonaro antes de 2014. As antenas dos militares já diagnosticavam a exaustão, nos meios populares, do pacto de 1988.

A democracia reduzira-se a rituais vazios, as instituições estavam ocas, as liturgias do poder simulavam uma coreografia farsesca: era esta, em suma, a percepção predominante nos meios populares.

Os conflitos sociais de uma sociedade tão brutalmente racista e patriarcal, e tão despudoradamente desigual, não cabiam nos arranjos malajambrados que salvaram o país das garras da ditadura, contudo, não serviam a uma sociedade ávida por mudanças de verdade.

Os fascistas esfregavam as mãos com o fracasso da democracia.

Não vou me deter no exame do conservadorismo brasileiro, em que se combinam alguns elementos explosivos, porque nos levaria muito longe e já escrevi bastante a respeito.

Aqui, o propósito é focalizar apenas a importância da interpretação de 2013 para nosso futuro imediato.

A Lava-Jato foi um empreendimento gestado fora do Brasil e por elites nativas, visando a liquidação das esquerdas para a implantação de um projeto neoliberal extremado.

Ela acendeu a fogueira na qual arderam os últimos vestígios de credibilidade daquilo que, até 2013, entronizava-se como “representação política” ou “política democrática”.

Ora, se a democracia está em ruínas, concluíram os fascistas, este é o momento de dar-lhe o tranco fatal, antes que outros o façam, até porque os ventos sopram a nosso favor (os ventos sopravam as cinzas de muita dor acumulada em nossa história sangrenta).

Aqui o roteiro sofre uma reviravolta: a direita que usa garfo e faca fez o cálculo pela metade.

A primeira metade: seria preciso destruir Lula e acuar as esquerdas. A outra metade: gerar uma alternativa crível e capaz de dialogar com a sensibilidade popular.

Não basta destruir o adversário. Com sua proverbial autossuficiência, os chamados liberais não atentaram para o pangaré que disparava na baia à sua direita. Então, para garantir a agenda neoliberal, renderam-se ao capitão, a quem interessava a aliança, mais por oportunismo eleitoreiro do que por convicção, evidentemente.

O resto da trama nos traz à data de hoje. O governo devotado à destruição tem sido, efetivamente, um desastre completo. Com isso, e por colar-se ao poder, embora adote atitudes que agridam o decoro, dia após dia, houve um desgaste.

O capitão tem de fazer das tripas coração para provar que continua sendo a grande liderança antissistema, sem abdicar do programa neoliberal - durma-se com um ruído desse tamanho.

Além disso, Lula está de volta, e há a fome, o desemprego, a carestia, o desalento, e houve a pandemia, a devastação da Amazônia e tudo o mais.

Sem realizações a exibir e insistindo em mascarar-se como outsider, o presidente não cessa de ameaçar as combalidas instituições, atravessadas por disputas internas ferozes.

Ameaça, seguidamente, as eleições e garante que as Forças Armadas estão e estarão a seu lado. As oposições e a oposição representada nas instituições revelam-se frágeis, a despeito de exceções admiráveis.

O que o chefe do Executivo nos promete é luta, não sucessão ou continuidade, é golpe. Enquanto isso, entre as elites, reina a pusilanimidade, quando não o mais desavergonhado adesismo.

Por que 2013 é ainda tão relevante? Por que sua interpretação ainda é decisiva?

Porque Bolsonaro construiu sua trajetória ao poder, canalizando energias que nunca chegaram a ser institucionalmente processadas.

Ele buscou canalizá-las, dotando-as de significados específicos, excluindo outros sentidos e outros afetos que também fluíram nas ruas.

A vontade de mudança foi metabolizada e incorporada como ódio, e o contexto nacional mais do que nunca suscita repulsa, tornando o ódio o afeto regente.

Bolsonaro mira os inimigos: Lula e os democratas de todos os matizes.

Há, no ar, a crença - talvez, a ilusão - de que o bom senso prevalecerá, os interesses das grandes maiorias prevalecerão, a razão triunfará, desde que a campanha jogue luz sobre os problemas concretos do povo, enquanto, por cima, o candidato busca articular apoios amplos e se mostrar palatável ao establishment.

Não discordo, por suposto.

De fato, não há outro caminho.

Entretanto, e aqui concluo, introduzindo uma pitada de pimenta no bom senso predominante entre os que defendemos a candidatura de Lula: entretanto, há energias que se manifestam sob a forma de emoções coletivas contagiantes.

Com 30% de votos, setores policiais e milicianos armados e dispostos, a eleição pode ser alvejada, um dia antes, um dia depois, em modalidades distintas, segundo os mais diversos estratagemas (não falta imaginação, nem faltarão juristas para racionalizar o golpe).

A sentença pode ser: “Não quero cancelar as eleições, pelo contrário, quero eleições justas, por isso, vamos adiá-las e mudar as condições de sua realização, em defesa do que manda a Constituição, blá, blá, blá.”

E tome fogo nas ruas.

O que sustentará o que nos resta de democracia não serão as instituições (se pudéssemos contar com elas, o presidente já teria perdido o cargo no primeiro crime de responsabilidade cometido).

A blindagem da democracia serão emoções tomando as ruas para dizer não ao golpe, eletrizando o país, comovendo o país.

Se as lideranças não trabalharem a conexão com as ruas, temo que os prognósticos não poderão ser balizados apenas por pesquisas de intenção de voto, infelizmente.

Não se vence uma guerra com luvas de pelica.

E para que os afetos nas ruas retomadas não sejam meros espelhos do ódio bolsonarista, é preciso apontar para um horizonte de transformações profundas de uma sociedade que se dirige para a auto-destruição, seja pela crise climática, seja pelo modo de vida que criamos para nós mesmos.

Lula não falará do pós-capitalismo, é óbvio, mas dialogará com a ânsia profunda e utópica por mudança, mudança em todas as dimensões.

O que está no ar pode ser inconsciente, mas nem por isso menos real e sentido.

É preciso expor o nervo da utopia à eletricidade do mundo e às capacidades individuais e coletivas de reimaginá-lo.

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