Foto: Ricardo Stuckert |
A socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), sinaliza os obstáculos que dificultam a reconexão do eleitor evangélico com Lula e as brechas abertas para comunicar-se eleitoralmente com esse público. Sua pesquisa antecipou o clima de pânico moral que tomaria a campanha eleitoral, para Bolsonaro recuperar o “evangélico oscilante”.
Esther esteve na mesa de abertura do 3º Simpósio Direitas Brasileiras, evento que ocorreu na Unicamp, esta semana. A partir de suas rodadas de entrevistas, ocorridas desde abril, ela vinha notando uma oscilação dos evangélicos em relação ao bolsonarismo. Uma parcela deles estaria arrependida de ter votado em Bolsonaro.
“Em 2018 observávamos uma coesão, unicidade eleitoral, muito grande dos evangélicos em torno do projeto bolsonarista. Todos estavam juntos. Agora já falam que há divergência e gente dentro da igreja que vai com Lula”, diz ela, salientando, no entanto, que depois de maio, os púlpitos começaram a ser turbinados pela campanha bolsonarista.
Para ela, Bolsonaro tem construído uma narrativa sólida em direção aos evangélicos, enquanto a esquerda não dialoga com os medos concretos desse público. “Essas pessoas não são bolsonaristas por natureza, como revelam as votações em Lula e Dilma. Mas não estamos conseguindo dialogar com essas pautas e sensibilidades”, afirma.
A socióloga lamenta que as campanhas restrinjam os anseios desse público conservador a uma “pauta moral”, como algo secundário. “Estamos falando de um público conservador, não apenas evangélico, para quem a questão da coesão familiar é muito importante. Esse público defende essa pauta como vital, com um medo nevrálgico de perder a única coisa que importa e que resta numa crise, que é a família”, explica.
De acordo com Esther, Bolsonaro oferece em termos simbólicos esse lugar de pertencimento, de integridade da família que tem seu lugar no mundo. “Mesmo sem ofertas eleitorais em outros campos, essa promessa é vista como uma âncora existencial do eleitor”, diz ela.
A narrativa messiânica
Na análise da socióloga, o fio condutor da campanha de Bolsonaro é que o Brasil está doente espiritualmente. Como disse sua esposa Michelle Bolsonaro, ele precisa ganhar para limpar espiritualmente o Brasil. No Maracanãzinho, Bolsonaro disse que foi salvo da facada, pois é o escolhido.
Essa narrativa, na opinião de Esther, é perigosa, porque não é apenas retórica eleitoral contra Lula, mas também contra o sistema eleitoral. “O TSE seria o obstáculo contra essa cura espiritual”, explica. “Bolsonaro prepara uma narrativa messiânica para o caso de perder, que tende a persistir no longo prazo”, acrescentou ela.
Outro elemento que ganha força nesta batalha é a esposa Michelle Bolsonaro. Esther cita pesquisa em que ela detinha uma imagem positiva para 80% do público evangélico. “Michelle é vista como legitimamente religiosa, natural ao falar com o léxico evangélico”, descreve.
Outra observação da pesquisadora em algumas igrejas eram os cursos do Ministério da Família, coordenados pela ministra Damares Alves, com o objetivo de politizar as mulheres nas igrejas. “Uma preocupação com o empoderamento de mulheres, que é o calcanhar de Aquiles de Bolsonaro. Algo que promove uma politização bolsonarista mais difusa que, simplesmente, a do pastor no púlpito”.
O problema não é Lula
Agora, os evangélicos sabem que ninguém pode governar sem eles. “Saíram do armário e não querem voltar mais. Querem ser escutados e conversar com o PT”, disse ela.
Esther relata o que ouve nas entrevistas, sobre a expectativa criada pelo bolsonarismo em torno de temas como aborto, maconha e segurança pública, que Lula já deu sinais controversos na pré-campanha.
Bolsonaro conta com pastores influenciadores do seu lado, que reúnem 50 milhões de seguidores. “Uma militância pentecostal organizada brutal, com a qual não temos contato”, informa.
Muitas perguntas ainda estão no ar, enquanto Bolsonaro participa de macrocultos todo final de semana: Se o Lula é bom para os evangélicos, cadê o pastor do lado dele? Onde estão as promessas de Lula para cuidar da família?
Esther observa uma demonização intensa do PT. Este público entende Lula como conservador, um homem de fé, que não representa ameaça. A ameaça seria o campo que orbita em torno de um governo de Lula, formado pelo movimento feminista, LGBT+, e suas demandas de gênero e sexualidade.
Nesta campanha, um elemento muito explorado nas igrejas é o fato da esposa de Lula, a Janja, ter vários vídeos em que interage com religiões de matriz africana. “O ecossistema pentecostal já começa a turbinar esse tipo de informação, descrevendo Janja como uma representante desse ‘mundo diabólico’”, diz a pesquisadora.
Esther defende que é preciso pensar o papel do campo progressista para recolocar esse debate com o público pentecostal e popular, “para que esse campo conservador não se cristalize ao ponto de deixar de ser oscilante”.
O bolsonarista oscilante
Em suas entrevistas, Esther observou que, em abril, estes evangélicos estavam divididos pela metade, movidos pelo desespero econômico e um incômodo existencial por Bolsonaro ter debochado dos mortos pela covid e se regozijado desse sofrimento.
Para Esther, há um erro de diagnóstico do campo progressista em desagregar as duas pautas: a resposta material, da resposta existencial. “Não adianta só apresentar soluções para os problemas econômicos”, alertou.
O evangélico não considera a hipótese de criticar Bolsonaro como falso cristão, como fazem opositores, pois esta é uma questão privada. Mas criticam suas atitudes. O discurso cristão está muito vinculado a noção de cuidado e acolhimento, que faltou ao presidente durante a crise da pandemia. Mas também à noção de respeito pelo lugar que o cristão ocupa na sociedade, o comprometimento com as leis de Deus e dos homens. Neste sentido, Bolsonaro falha em atacar os ritos da democracia e da Presidência da República.
A reconexão com Lula é movida pelo desespero material, que ativou uma memória afetiva de um governo que garantiu comida na mesa e dignidade econômica. “Lula cuidava da gente, se preocupava com a gente, com o trabalhador”, cita ela.
O diálogo possível
Esther foi direta sobre as possibilidades de diálogo no curto prazo. “O que tem que ser feito é tirar foto orando, ir ao culto, colocar o pastor do lado, negar o aborto e a maconha. Se não for assim, alguns candidatos perdem antes de começar. A 40 dias da eleição não dá pra fazer muito, porque o Bolsonaro já está fazendo isso 24 horas por dia, há anos”, afirmou.
No longo prazo da política, a socióloga avalia que o bolsonarismo posicionou a política numa outra dimensão do material, do simbólico, do moral e do espiritual. “Vai ser impossível legislar sobre aborto no Brasil de cima pra baixo. Tem que dialogar sobre as questões dos direitos sexuais e reprodutivos devagar, por baixo, por consenso, aos poucos”, exemplifica.
Outra pista que Esther dá, é que essas pessoas se incomodam mais com a arrogância e imposição das esquerdas, do que com suas pautas. Ela citou o caso das questões de gênero e sexualidade que jovens evangélicos estão dispostos a respeitar, desde que as minorias em questão tenham paciência para explicar e compreender os limites.
Ela também exemplifica que há pautas de segurança pública que podem ser tratadas. “Não dá pra falar em abolicionismo penal, mas dá pra falar em controle de armas. Diminuir o número de armas nas ruas é entendido como uma forma de proteger a família”.
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