domingo, 28 de agosto de 2022

Sem medo das casernas na Colômbia

Foto: Reprodução do Facebook
Por Gilberto Maringoni

“Debatemos muito o tema da segurança pública durante a campanha eleitoral. Seu conceito tem de mudar”.

Manhã ensolarada da sexta, 19 de agosto. Gustavo Petro pontuava um improviso de meia hora com um lápis na mão, que fazia as vezes da batuta de um regente. Estava num púlpito ladeado pela cúpula militar, por vários ministros, além de centenas de membros das forças de segurança, em frente à imensa área ao ar livre da Escola de Cadetes General Santander, o mais importante centro de formação policial da Colômbia, em Bogotá. O objetivo era dar posse à nova cúpula da Polícia Nacional.

Consolidava-se ali a mais ousada mudança no comando das Forças Armadas já feita no país. “Até aqui medimos a eficiência da segurança pelo número de mortes ou de presos em cada ação policial. Os indicadores não melhoraram, ao contrário”, sublinhou, opondo-se às violentas orientações das últimas décadas.

Uma rápida recapitulação.

A cerimônia representou um passo decisivo numa articulação iniciada antes da posse e oficializada exatamente uma semana antes, em 12 de agosto.

Naquele dia, o presidente anunciou a passagem compulsória para a reserva de nada menos que 52 generais, abrindo 24 postos de comando na Polícia Nacional, 16 no Exército, 6 na Marinha e mais 6 na Força Aérea.

Sem sutileza, o presidente avançou sobre instituições tidas como intocáveis na América Latina, ao mesmo tempo em que buscou tirar da frente potenciais ameaças ao futuro de sua administração.

Durante a campanha, o então candidato fora duramente criticado pelo general Eduardo Zapatero, comandante e representante da ala mais dura do Exército, que o chamara de “politiqueiro”, por denunciar constantes ameaças armadas.

O então ministro da Defesa, Diogo Molano, engrossou o coro, acusando o dirigente da coalizão Pacto Histórico de mentiroso.

Em 27 de junho, uma semana após a vitória, ao ser perguntado sobre as Forças Armadas, em entrevista ao El país, Petro afirmou que sua “cúpula foi muito impulsionada pela linha política do governo que chega ao fim” e emendou:

“Esse caminho é insustentável. (…) Existem correntes de extrema direita que devem ser eliminadas. Algumas estão proclamando golpes e coisas assim”. No dia seguinte, Zapatero solicitou sua passagem para a reserva.

Assim, as mudanças eram pedra cantada. O que surpreendeu foi sua extensão.

“Nunca antes na história deste país se viu uma varrida tão grande como a que acabam de fazer o presidente e seu ministro da Defesa, Iván Velásquez”, ironizou El Colombiano, centenário diário de Medellin, no último dia 13.

Velásquez, um advogado e diplomata de 67 anos, é um experiente defensor dos direitos humanos e entre 2013-16, chefiou a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala.

Notório opositor de Álvaro Uribe, sua nomeação embute uma mensagem clara, destaca o portal La silla vacia:

“A prioridade oficial será uma reforma radical nas Forças Armadas, ao invés de se estender uma bandeira branca para setores civis e militares contrariados com a virada à esquerda na presidência”.

Some-se a tais iniciativas o anúncio de uma reforma tributária progressiva, destinada a taxar lucros e dividendos do topo da pirâmide social.

Gustavo Petro parece colocar em prática dois ensinamentos clássicos da vida política.

O primeiro é a frase de Maquiavel: “O mal bem empregado (…) é aquele que se faz de uma só vez, por necessidade de segurança”.

Trazida para os dias de hoje e esvaziada de seus aspectos morais, sua ideia central implica não vacilar em desafiar interesses consolidados.

A segunda é a métrica dos cem dias, estabelecida por Franklin Delano Roosevelt, logo após a posse, em março de 1933, quando os Estados Unidos viviam o auge da grande depressão.

Em curtíssimo período, aproveitando a legitimidade recém-conferida pelas urnas, o presidente enviou ao Congresso mais de uma centena de projetos de investimento, criação de empresas, fundos de investimento e ações visando minorar de imediato o drama social vivido pela população. Começava ali o New Deal.

As raízes das mudanças na área militar também devem ser buscadas no acordo de paz estabelecido entre o governo de Juan Manuel Santos (2010-18) e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), em novembro de 2016.

Do entendimento surgiram três organismos destinados a institucionalizar o processo: 1. A Comissão da Verdade, responsável pelo esclarecimento de crimes contra os direitos humanos cometidos ao longo de mais de seis décadas de conflito armado; 2. A Unidade de Busca de Pessoas Desaparecidas (UBPD), que tem o prazo de 20 anos para tentar encontrar e identificar o destino de cerca de 120 mil pessoas no período, e 3. A Jurisdição Especial para a Paz (JEP), a quem caber resolver intrincadas controvérsias no âmbito dos direitos humanos. São processos ainda em curso.

A isso, somam-se dois fatores políticos: o desgaste da repressão brutal dos governos de de Álvaro Uribe e Iván Duque (2018-22).

As iniciativas se desdobraram em carta branca para que setores paramilitares ligados ao exército promovessem execuções sumárias em movimentos sociais e em feroz repressão aos maciços protestos de rua de 2021, por parte do Esquadrão Móvel Antidistúrbios (Esmad).

Trata-se de uma espécie de tropa de choque da Polícia Nacional, criada em 1999 para conter manifestações populares.

A impopularidade do uribismo contaminou os órgãos repressivos do Estado. A intervenção realizada pelo governo recém empossado sofre pouca resistência social até aqui, além de contar com divisões no interior das próprias forças.

As eleições presidenciais mostraram um país dividido. A vitória de Petro sobre Rodolfo Hernández, da direita, foi 50,44% a 47,31% dos votos.

Ao invés de buscar algum tipo de composição programática com o adversário de véspera, o presidente reafirma sua disposição de enfrentar tabus atávicos na sociedade, sem cair em aventuras inconsequentes.

* Com informações de Pietro Alarcon.

* Gilberto Maringoni de Oliveira é um jornalista, cartunista e professor universitário brasileiro. É professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, tendo lecionado também na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade Federal de São Paulo.

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