terça-feira, 20 de setembro de 2022

O ódio contra os pobres justifica tudo

Charge: Lute
Por Jair de Souza


O dia 2 de outubro está se aproximando. Está chegando a hora em que os brasileiros teremos de tomar a decisão mais significativa em toda nossa história republicana. Nesse dia, vamos votar e determinar qual vai ser o destino de nosso país, o nosso próprio e o das gerações futuras.

Em condições de normalidade, não haveria nenhuma dúvida de que a esmagadora maioria de nossa gente daria seu voto para extirpar para sempre do comando da nação o governante que mais desgraças nos trouxe ao longo de nossa existência como país soberano.

Desde o fatídico golpe contra Dilma Rousseff em 2016, a maioria do povo brasileiro vem passando por sofrimentos e penúrias nunca antes vivenciados. E o que tinha se tornado terrível com a usurpação da presidência por Michel Temer ficou ainda pior a partir da posse do miliciano Jair Bolsonaro.

Por isso, seria de esperar que a esmagadora maioria de nossa gente estivesse resolutamente determinada a dar um basta ao atual governante e tudo o que ele representa. O simples retorno do Brasil ao mapa mundial da fome e a difusão da miséria absoluta pelas ruas de nossas cidades deveriam servir para consubstanciar uma consciência da necessidade de uma mudança radical nos rumos a seguir.

No entanto, ainda nos deparamos com pessoas que se dispõem a apoiar a continuidade do atual estado de coisas e se mostram propensas a votar naquele que vem encabeçando o processo político em curso.

Se tudo se limitasse aos grupos de maior poder econômico, não nos seria tão difícil explicar o fenômeno. Como Bolsonaro defende e pratica um governo que favorece os interesses dos mais ricos e abastados, é compreensível que seja apoiado e defendido por aqueles que são diretamente beneficiados por sua atuação. Portanto, nada a estranhar quando constatamos que boa parte dos latifundiários do agronegócio e expoentes do capital financeiro atuam como sustentáculos da gestão bolsonarista.

Contudo, os dados das recentes sondagens de opinião nos revelam que o bolsonarismo continua recebendo expressivo apoio entre outras parcelas da população que, nem de longe, podem ser incluídas entre os ricos e abastados. Assim que, entre esses, há, inclusive, um bom número de pessoas com escolaridade superior.

Como entender que um ser tão tosco, tão bruto, tão ignorante, tão troglodita e tão preconceituoso venha a ser relativamente bem aceito entre aqueles cidadãos não pertencentes às classes dominantes que gozam de elevados níveis de escolarização, ou seja, entre aqueles que formalmente compõem a nossa elite cultural? Não seria isto um indicativo de uma gigantesca contradição?

Até bem pouco tempo atrás, a justificativa padrão que costumávamos receber era a de que, a despeito de todas essas qualidades negativas, Bolsonaro era um símbolo da luta contra a corrupção. É claro que esta argumentação só servia para convencer quem era absolutamente ignorante da vida política do Brasil, e do Rio de Janeiro em particular, ou, por outro lado, gente com conhecimento da situação, mas profundamente dotada de cinismo e caradurismo. Isto devido a que, por mais de 28 anos, Bolsonaro fez parte do baixo clero parlamentar e sempre esteve vinculado àqueles partidos tidos e sabidos como sendo integrantes do que de mais corrupto havia em nossas atividades políticas.

Basta recordar os nove (9) partidos pelos quais Bolsonaro já passou para comprovar que todos eles sempre estiveram entre aqueles que compõem o tão famigerado CENTRÃO. E, como é mais do que sabido: CENTRÃO é sinônimo de CORRUPÇÃO. Não por acaso, o general Mourão foi flagrado cantando: “Se gritar pega CENTRÃO, não fica um, meu irmão”. Quem não se lembra desse episódio?

Mas, além disso, o envolvimento de Bolsonaro e seus filhos com atividades e grupos para nada afeitos à moralidade e honestidade também não tinha como não ser de conhecimento de ninguém com um mínimo de contato com o mundo político e criminal do país. As famosas rachadinhas, sua vinculação com milicianos do crime organizado, a mais de uma centena de imóveis adquiridos (boa parte em dinheiro vivo), os cheques do miliciano Queiroz depositados na conta bancária de sua esposa, nada disto era desconhecido de ninguém do meio político ou da comunicação.

Em vista do anterior, o mais lógico seria que Bolsonaro não inspirasse nenhuma confiança em ninguém que cultive de fato sentimentos de condenação à prática da corrupção. Porém, apesar disso, não foram muitos os cidadãos de classe média e com elevada escolaridade que externaram sua fúria e sua indignação contra ele de modo análogo ao que tinha ocorrido contra o ex-presidente Lula.

Para que possamos mensurar e comparar os efeitos, vamos recordar que, mesmo sem que houvesse uma prova sequer de que fossem de sua propriedade, o tão citado tríplex do Guarujá e o sítio de Atibaia serviram para atiçar e mobilizar a ira e a virulência de tanta gente “de bem” em sua “cruzada pela moralidade”.

Na verdade, ainda que Lula fosse de verdade o proprietário de tais imóveis, isso só provaria o quão pouco ambicioso ele seria, visto que seus valores de mercado eram irrisórios quando comparados aos bens adquiridos por Bolsonaro, seus filhos e seus outros familiares. A condenação a Lula neste caso deveria, então, ter sido por sua injustificável moderação. Se fosse para roubar estando no cargo de presidente da nação, por que se limitar a duas merrecas que ninguém consideraria como dignas de ostentação? Se fossem pelo menos equivalentes aos imóveis possuídos pela família Bolsonaro, tudo bem, poderiam ser motivo de gritaria. Mas, não era nada disso.

Por sua vez, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso é reconhecidamente dono de luxuosos apartamentos no Brasil e na França, além de várias fazendas. Porém, FHC não é, e nunca foi, alvo do repúdio dessa gente, que mal consegue se segurar para não explodir de raiva ao falar de Lula. Todas as contas de Lula e as de seus familiares aqui e pelo mundo afora foram vasculhadas. Nunca conseguiram detectar nenhum dinheiro mal havido nas mesmas. Apesar disto, ele continua sendo constantemente vinculado à imagem de ladrão. Tanto assim que “Lulaladrão” é o mote irrefreável que seus odiadores nos disparam à mera menção de algo positivo que façamos sobre ele.

Outrossim, mesmo havendo dados das autoridades suíças que incriminariam José Serra como possuidor de contas com mais de 23 milhões de dólares supostamente mal havidos, isto nunca se tornou motivo forte o suficiente para despertar o rancor desses sujeitos de classe média escolarizada que consideram Lula o maior ladrão do mundo.

Também não se constatou nenhum movimento de indignação e repulsa contra Aécio Neves quando ele apareceu em vídeos negociando o recebimento de malas de dinheiro da JBS, e tampouco com a revelação de seu enorme patrimônio de origem obscura (tudo centenas ou milhares de vezes superior em valor monetário ao que se atribuía a Lula). O máximo que se podia notar era um semblante algo envergonhado em algumas pessoas de nossas classes médias ilustradas quando se viam confrontadas com o fato de terem sido apoiadoras entusiastas de Aécio em sua disputa presidencial contra Dilma Rousseff e, logo após sua derrota eleitoral, no processo de golpe que a destituiu. Uma certa vergonha, nada além de vergonha!

Entretanto, contra Lula vale tudo, contra Lula tudo se justifica. A bem da verdade, o enorme prestígio ostentado por longo tempo por Sérgio Moro, Deltan Dallagnol e outros expoentes da Lava-Jato se deve exatamente a sua determinação de não se sentirem para nada limitados pelas barreiras legais que se antepunham a seus planos de liquidar com Lula e seu partido (PT). Nessa tão “nobre” tarefa, não seriam as leis e a Constituição que iriam impedir que esses “sagrados” objetivos fossem alcançados. Por isso, Moro, Dallagnol e os demais lavajatistas foram transformados pela mídia corporativa em “heróis nacionais” e “símbolos de orgulho” para essa classe média embabacada.

Reescrevendo a coisa com outras palavras, o que está na base de tudo é o enorme ódio de classe que os setores privilegiados de nossa sociedade nutrem contra os mais pobres. É a continuidade de um sentimento hoje cultivado pelos herdeiros da escravidão, a qual esteve vigente em nossa terra e foi a característica mais marcante por aqui por quase quatro séculos.

O ódio contra os pobres é o ódio de classe em sua mais pura essência. É algo que é capaz de induzir a certas pessoas auto-intituladas democratas a não dar a mínima importância ao respeito das garantias legais e constitucionais, sempre e quando esse desrespeito esteja servindo para manter os pobres em seu “devido lugar”. No aflorar da luta de classes, na hora do combate contra os pobres, as elites econômicas e seus escudeiros na classe média escolarizada deixam de lado todo e qualquer prurido e partem para a jugular de seus desafetos, para usar a metáfora cunhada pelo lavajatista Deltan Dallagnol.

Como Lula é nitidamente visto e sentido pelas classes dominantes como o símbolo maior dos pobres, sua transformação em alvo preferencial de seus ataques demolidores é uma consequência quase que lógica. Por isso, não devemos contar com demonstrações sinceras de equilíbrio e ponderação moral de parte daqueles que dependem da exploração das maiorias populares para manter seus privilégios.

Quase ninguém de nossas camadas médias teria motivação econômica real para se sentir prejudicado com a melhoria do nível de vida das maiorias populares. Muito pelo contrário, a classe média em seu conjunto só teria a ganhar com isso. Quando a qualidade de vida do povo se eleva, as camadas médias vão ser invariavelmente beneficiadas, uma vez que virão de suas hostes os profissionais que ocuparão os cargos necessários para atender as crescentes demandas populares. Ou seja, o maior número de profissionais médicos, professores, arquitetos, engenheiros, etc., requeridos para atender as exigências surgidas vai ser preenchido principalmente por elementos oriundos das classes médias. Consequentemente, seus rendimentos salariais ou por honorários tendem a subir significativamente.

Lamentavelmente, as camadas médias tendem a sucumbir à forte influência ideológica das classes dominantes, e muitos de seus quadros acabam por aderir a seus pontos de vista. Por isso, uma das maneiras de que certos sujeitos de classe média se sintam e busquem ser vistos como parte da elite dominadora é desfechando seu ódio contra aqueles que estão no piso de baixo de modo até mais virulento do que os integrantes das próprias classes dominantes costumam fazer.

Em resumo, é o ódio contra os mais pobres o que dá vazão a todo esse comportamento que, muitas vezes, induz a deixar de lado os próprios interesses daqueles que o estão destilando.

* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.

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