quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Adeus às ilusões: o partido-mídia e a fome

Charge: Gary Zamchick
Por Emiliano José, na revista Teoria e Debate:


Pensando nesses turbulentos dias.

Conjuntura já mudou, e muito.

Nada será como antes, sempre.

Muita água vai correr pra debaixo da ponte até a posse de Lula.

Parece, parece mesmo, já estarmos sob novo presidente.

Por tudo.

O anterior, resta a um canto, calado. Um general disse: ele voltará a falar já, já. Torcemos pelo silêncio.

Quando falei de mudança de conjuntura, pretendia, e pretendo, dizer um pouco de nossa mídia empresarial.

Não estou tratando das redes sociais.

Nesse caso, falar das redes de televisão, de modo especial da Globo, e de nossos grandes jornais, portais deles, das grandes emissoras de rádio, muitas delas vinculadas a impérios midiáticos, dos portais vinculados a elas.

Desse complexo.

Creio somos dados a navegar em ilusões.

Às vezes, é bom.

Para apascentar os espíritos.

Parte da esquerda gosta disso.

Bom e perigoso.

Fui à estante em busca de velhas lições. Úteis, sempre, para compreender o presente, para entender o andar da carruagem, a velha carruagem da história.

Há moços, cheios de intelecto, a desprezar tais lições.

Quem sabe, tenham razão.

Eu, quem sabe por velho, não as desprezo.

Na estante, o volume I da Editorial Estampa, de Lisboa, ano de 1974, Obras Escolhidas de Gramsci, capítulo “O partido político”.

O capítulo merece ser todo lido. Eu me atenho apenas a uma reflexão.

Dela, creio podemos recolher muitas e atuais lições.

A quem quiser aprender.

Quem não, vida que segue.

Gramsci, à página 285, pergunta:

- Será a ação política (em sentido estrito) necessária, para que se possa falar de “partido político”?

Então, ele diz:

“Pode observar-se como no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidades de luta ou por outras causas se fracionaram, assumindo cada uma das fracções o nome de partido e mesmo de partido independente”.

E aí, na sequência, ele chega ao ponto a nos interessar, e profundamente: o papel de nossa mídia.

Surpreende os menos avisados:

“Muitas vezes, por isso, o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma de tais fracções, mas atua como se fosse uma força diretriz em si, superior aos partidos e por vezes mesmo julgada como tal pelo público.”

E surpreende mais ainda:

“Esta função [a de partido político] pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas), são também ‘partidos’ ou ‘fracções de partido’ ou ‘função de determinado partido’. Pense-se na função do Times em Inglaterra, na que teve o Corriere dela Sera em Itália, e também, nafunção da chamada ‘imprensa de informação’, que se dizia ‘apolítica’ e mesmo na imprensa desportiva e na imprensa técnica.”

Voltemos ao Brasil, pensando em Gramsci.

Mutatis mutandis, poderíamos escrever, antes de seguir adiante, pense-se na função do Estadão, da Folha de S. Paulo e do UOL, na Rede Globo, em O Globo, na Rede Record, nas tantas outras.

Guardam diferenças entre si, mas não no essencial, e é por aí a nossa conversa.

São ou não são um partido?

Tem razão ou não nosso Gramsci?

Para não dizer que não falei de flores, não ser injusto, vou tratar do positivo.

Uma parte da nossa mídia, durante a pandemia, ocupou um papel essencial ao combater o negacionismo do presidente.

Eu dizia: trata-se de saudar tal atitude.

Como saudar a filiação de parte dela às pautas identitárias, Rede Globo em especial.

Sempre ressaltei, no entanto: tal mídia nunca deixou de estar ao lado do senhor Paulo Guedes, cuja política econômica correspondia aos interesses do grande capital especulativo e naturalmente ao lado dela, parte integrante do capital oligopolista.

Não houve gritos quanto ao furo sequenciado do teto de gastos – em quatro anos de governo tal furo teria chegado a R$ 795 bilhões em quatro anos.

Ao menos não houve com o furor das últimas horas, quando nada aconteceu ainda, quando o presidente eleito ainda nem assumiu.

Ouço Gramsci: a mídia tradicional ocupa o papel de partido político.

Né, não?

É a vanguarda do capital especulativo, porta-voz avançada do neoliberalismo.

Lula teve a sabedoria, e o PT e as forças de esquerda da mesma maneira, de propor e dar consequência à proposta de uma ampla frente para enfrentar os desafios do país, quase destruído por um governo absolutamente irresponsável e ao mesmo tempo fiel às diretrizes neoliberais, como insisto.

Volto: uma parte da mídia, Rede Globo incluída, preferiu Lula ao atual presidente.

Até para os interesses midiáticos, o cidadão estava se tornando incômodo.

Foi Lula assumir, e começar a falar no combate à fome para o capital eriçar-se.

Ficar à beira de um ataque de nervos.

Pretender colocar mordaça nas falas do presidente eleito.

Tentar condicioná-lo ao discurso neoliberal: primeiro o dólar e a bolsa.

Se forem bem tratados, então, se pensa no resto.

Quando der, e se der, as questões sociais e a fome.

Como os partidos de centro encontram-se em dificuldades, e lamenta-se isso, a mídia ocupa-se rapidamente em ocupar o lugar deles, às vezes contrariando pensamento de alguns dos dirigentes daqueles partidos.

Bom contar com serenidade de um Geraldo Alckmin para colocar as coisas no lugar.

A demonstrar a seriedade de Lula com o equilíbrio das contas públicas.

As manchetes passaram a evidenciar um país em crise – e em crise por conta das falas de Lula a favor do combate à fome, deixando de subordinar esse combate ao dólar e à bolsa – desculpem a insistência, necessária nesse caso.

Queriam, pretendiam um estelionato eleitoral por parte do presidente eleito.

Dissesse ele, assim o objetivo manifesto, dito em manifesto, o quanto era importante o dólar e a bolsa, o quanto era essencial a lucratividade do capital, especulativo ou não, e então estaríamos no melhor dos mundos – no mundo do dólar e da bolsa.

Fome?

Bem isso se vê quando deus der bom tempo.

Se der.

Ainda bem: Lula é madeira que cupim não rói.

Está acostumado com isso.

Não soubesse, e os quase 600 dias de prisão permitiram leituras, o bastante para saber: o tal mercado esbravejou quando da abolição da escravidão, em 1888.

Caiu a cotação das apólices da dívida pública, caíram as ações do Banco do Brasil.

Desconfiança geral do mercado.

Capital se retraindo.

Espírito das empresas, abatido.

Dizia-se isso, então.

Mercado queria os negros no pelourinho.

Livres, incomodavam o mercado.

E essa cantilena jamais parou.

Esqueçam lua de mel a partir de Lula insistir no combate à fome.

Desculpem lembrar outra coisa antiga: a luta de classes não acabou.

Ela se manifesta, sempre.

Aparece de todo jeito, de um lado e do outro.

Será um governo de frente, sabemos.

Agora, nada de ilusões.

Se alguém achava ter a mídia ao lado de propostas progressistas minimamente estruturais, e coloco o combate à fome nesse rol tal a gravidade de tal problema, dê adeus às ilusões.

Está furiosa, e fala como se dona do novo governo, bem à direita dos elementos de centro a participar do projeto.

E dá destaque, tal e qual a índole dela, tal e qual a condição de partido político, a vozes do passado, como se elas, agora, fossem o norte da nova situação, os governantes do país.

Alguns respeitados intelectuais, artífices do neoliberalismo do período Fernando Henrique Cardoso, acreditaram-se no direito de dar puxão de orelhas no presidente, como se isso fosse perturbá-lo, fazê-lo recuar do combate à fome.

Não, nada de desconhecer ser o próximo governo uma composição de muitas forças.

Foi uma opção para enfrentar o descalabro de um país à beira da destruição.

Agora, pretender colocar Lula e o governo de joelhos diante do capital especulativo, do dólar e da bolsa, é demais, né?

Claro, sabemos: tais forças contam com o partido-mídia para ecoar as propostas delas

Sempre contaram.

E as forças de esquerda e verdadeiramente democráticas, de centro inclusive, sabem de prioridades: como não combater a fome e as profundas desigualdades do país?

Não fosse pra isso, pra quê, então?

Dizer-nos, como se inocentes fôssemos, dos interesses do capital em combater desigualdades, é abusar da inteligência alheia.

O capital, no caso brasileiro, jamais pretendeu isso.

Querer dar lições a quem organizou as contas públicas quando passou pelo governo, é demais.

Querer falar em responsabilidade fiscal a quem deixou reservas monumentais quando saiu do governo, brincadeira.

A mídia assopra.

Mas sobretudo morde.

Janja, a socióloga, a militante, e mulher do presidente, talvez tenha compreendido isso.

Foi brilhar um pouco, por méritos dela, e uma jornalista, consagrada porta-voz neoliberal, danou-se a atacá-la – fosse ocupar o lugar de boa primeira-dama, nada de protagonismo.

A Globo a colocou no Fantástico, é verdade, não dá pra negar.

Dois dias depois, o jornal O Globo, da mesma rede, publica uma raivosa opinião contra Janja, mandando-a, como se pudesse mandar, colocar-se no lugar dela, fosse ser recatada e do lar, um primor de machismo, de raciocínio da Casa-Grande, indisfarçável ideologia do partido-mídia.

É assim, esse partido.

A tal partido, não se pode negar um mérito: quando alguém está esquecendo, lembra a existência da velha luta de classes.

Em meio a tal luta, o novo governo há de se mexer.

Amplo, como deve ser.

Quando registro tudo isso, o faço com a certeza da necessidade da amplitude, da importância do arco de alianças construído para enfrentar a dramaticidade da situação brasileira.

Mas sem nunca esquecer o prometido em campanha: a prioridade será o combate à fome e à desigualdade.

E isso, por obviedade, não é uma proposta anticapitalista – e aqui não está em jogo minha visão sobre o capitalismo e suas mazelas.

É uma proposta de linha de mínima da social-democracia.

Simples assim.

E vamos combinar uma coisa?

A pretensão de domesticar Lula sempre será ineficaz.

Não esperem radicalismos infantis dele.

Nunca ocorreram.

Mas também não queiram uma atitude de traição.

Não pretendam o abandono do povo mais pobre por parte dele.

Aí é demais também.

Vamos combinar outra coisa?

Temos uma das mídias mais partidarizadas do mundo, incapaz inclusive de mínimas coberturas.

Incapaz, por antolhos colocados por ela própria, devido a preconceitos e valores de classe.

Para se dar valor à presença de Lula na COP 27, dependeu-se da mídia mundial, exclusive a brasileira.

O The New York Times classificou o discurso dele na Conferência do Clima como “exuberante”, só para dar um exemplo.

A mídia mundial o saudou como espetacular presença na reunião.

No Brasil, a mídia e seu udenismo tradicional passou a discutir a viagem no jatinho.

Sorte existirem ainda alguns articulistas a recuperar tal presença e destaco a análise cuidadosa de Reinaldo Azevedo sobre o discurso do presidente no encontro, evidenciando como Lula e o Brasil voltaram a ocupar as atenções do mundo.

Por justiça.

Porque Lula teve antes e tem hoje o que dizer à humanidade.

Diante da mídia mundial, a cobertura da mídia brasileira da COP 27 foi vergonhosa.

Enquanto o mundo saudava a atitude do presidente Lula de combate à fome, à desigualdade, saudava a defesa enfática da Amazônia, do meio ambiente, a mídia local ficou refém da discussão imposta pelo capital, enfatizando antes de tudo os interesses do mundo especulativo.

Se alguém entre os progressistas tinha ilusões com o partido-mídia, bom colocá-las de lado.

Agora, Lula vai governar.

Ele e o seu amplo entorno definirão prioridades.

O partido-mídia vai gritar, ecoar vozes do passado, inclusive aquelas das entusiásticas preferências por Paulo Guedes.

Guedes, aliás, nas últimas horas fez coro às críticas da mídia à PEC da transição – juntos, outra vez.

Lula sabe das dificuldades a enfrentar.

Inclusive conhece o barulho midiático.

Saberá enfrentar o partido-mídia, com tranquilidade e com a firmeza dos objetivos, voltados às necessidades da maioria do nosso povo, tão maltratado nesses últimos quatro anos.

Ele e o novo governo, fruto de uma campanha tão bonita, vigorosa, ampla, são maiores do que a pequenez da bolsa e do dólar.

Saberão, ele e o novo governo, administrar os inevitáveis conflitos.

Sabem não existir governo sem embates, ainda mais num país tão cheio de problemas não resolvidos, e submetido nesses últimos quatro anos a uma administração cujo principal objetivo era o de destruir.

Nosso objetivo é unir o Brasil, dialogar com toda a Nação com perseverança e paciência, valer-se das forças da cultura em sentido amplo para tal diálogo, evitar intolerância, garantir o respeito a todas as crenças e pensamentos fundados na democracia, e caminhar para enfrentar a tragédia da desigualdade e da fome – nunca é demais repetir.

Nossos adversários estão na extrema-direita.

No interior do governo, os embates serão próprios de uma situação democrática.

Para isso tudo, novo governo.

Lula voltou.

O Brasil voltou.

Foi o grito do mundo na COP 27.

A mídia brasileira não quis ouvir.

Tem ou não razão, nosso Gramsci?

* Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes), entre outros.

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