Em 1º. de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva assumirá o comando de um país dividido entre 41,3% que sabem que irão comer esta noite; e os 58,7% que oscilam entre saber se vão ou não comer e os sintomas da fome, propriamente dita. Mais da metade do país, 125,2 milhões de pessoas não têm acesso regular à alimentação, foram vítimas das sucessivas ondas de desemprego e carestia, de pandemia com desmonte do Estado, de desgovernos Temer e Bolsonaro.
A esse contingente, que aguarda na porta das farmácias, das padarias, dos supermercados, Lula garantiu, em seu primeiro discurso como presidente eleito, na avenida Paulista, no último dia 30:
Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer, ou que consumam menos calorias e proteínas do que o necessário. Se somos o terceiro maior produtor mundial de alimentos e o primeiro de proteína animal, se temos tecnologia e uma imensidão de terras agricultáveis, se somos capazes de exportar para o mundo inteiro, temos o dever de garantir que todo brasileiro possa tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Este será, novamente, o compromisso número 1 do nosso governo.
A urgência se justifica. Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II Vigisan), divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan)[i], em junho deste ano (acesse em https://olheparaafome.com.br/) revelam que desses 125,2 milhões em insegurança alimentar, 92 milhões oscilam entre a insegurança em relação ao acesso e o consumo em quantidade insuficiente de alimentos; enquanto 33 milhões efetivamente estão passando fome. A Grande São Paulo, que reúne a capital e mais 39 municípios, abriga 22 milhões de pessoas. 33 milhões é uma Grande São Paulo e meia de pessoas submetidas à fome.
Essa é a herança maldita do golpe
Oito anos atrás, a FAO divulgava o relatório The State of Fod Insecurity in the World (SOFI-2014) -- acesse aqui) --, anunciando que havíamos cumprido a meta e restringido a fome para 3,4 milhões de pessoas, o equivalente a 1,7% da população. Para as Nações Unidas, quando o percentual de afetados pela fome se encontra abaixo de 5%, o problema deixa de ser estrutural. E assim, nós saímos do Mapa da Fome em setembro de 2014, colhendo os frutos de onze anos de políticas sistemáticas de combate à fome, mas tendo de enfrentar a ira lava-jatista, disseminada desde março daquele ano eleitoral.
Resultado: “Em menos de uma década, o país traça uma curva rumo à superação da fome para, logo em seguida, interromper abruptamente um conjunto de fatores que determinaram esse progresso. Essa inflexão nos leva de volta a um quadro mais intenso de má nutrição e fome”, avalia a ex-ministra Tereza Campello (Cátedra Josué de Castro/ Faculdade de Saúde Pública-USP) que esteve à frente do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, entre 2010 e 2016, durante o governo Dilma.
Em dezembro do ano passado, a Cátedra Josué de Castro, onde ela leciona, realizou um seminário com pessoas que travam e pensam a luta contra a fome no Brasil, em vários âmbitos (cientistas, intelectuais, políticos, ativistas de várias áreas). O objetivo era debater os 75 anos do clássico A Geografia da Fome, e a partir dos ensinamentos de Josué de Castro, prospectar caminhos.
Do seminário, surgiu o livro Da Fome à Fome: diálogos com Josué de Castro (Elefante, 2022), organizado por Campello e pela pesquisadora Ana Paula Bertoletto (Cátedra Josué de Castro/ FSP-USP). Uma coletânea de artigos, com diferentes enfoques – socioeconômicos, sanitários, ambientais, nutricionais, históricos, éticos – sobre a fome, permitindo um mapeamento da questão em suas diversas geografias: a da insegurança alimentar, a das desigualdades socioeconômicas, a da produção de alimentos e a da crise socioambiental e alimentar.
A coletânea começa com a trajetória política e intelectual do autor de Geografia da Fome, seguido de análises que mostram o estado da insegurança alimentar no país, e sua cor. Na sequência, o debate se volta à questão da insegurança alimentar e as desigualdades socioeconômicas; e para o paradoxo do país ser um dos maiores exportadores de alimentos, mantendo mais da metade de sua população em situação de insegurança alimentar. Na quinta e última parte do livro, são debatidos os efeitos deletérios (fome, obesidade, mudanças climáticas) do atual modelo de produção e de consumo de alimentos.
Um contundente registro sobre a fome escrito por 27 autores, entre eles, autoridades, ativistas, cientistas, intelectuais, pesquisadores vinculados à luta e às ideias de Josué de Castro.
Fome, uma questão de decisão política
Médico, nutrólogo, geógrafo, intelectual, professor universitário, autor dos clássicos Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), além de tudo isso, Josué de Castro foi também um político e aguerrido defensor da reforma agrária, ativista do combate à fome, como nos conta José Graziano da Silva, ex-Diretor Geral da FAO (2012-2019) e ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome de Lula (2003-2004) do governo Lula. Neste artigo, ele traz os principais momentos da militância política do intelectual que transformaria nossa forma de entender a fome.
Aos 20 anos, Josué se formou em Medicina, e travando contato com pacientes afetados pela desnutrição e outros males decorrente da situação de miséria, abraçou a Nutrição e a luta do combate à fome. Filiado ao antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ele assumiu a vice-presidência da Comissão Nacional de Política Agrária durante o segundo governo Vargas, onde apresentou seus dez pontos para vencer a fome. Em 1951, Josué foi eleito presidente do Conselho Geral da FAO, a organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Foi deputado federal por dois mandatos (1954 a 1962) e, durante o governo Jango, assumiu o cargo de embaixador-chefe da delegação do Brasil nas Nações Unidas, em Genebra.
Em seu discurso de posse, observa Graziano, “ele estava otimista de que poderia contribuir com a missão de erradicar a fome no mundo”. No fim do mandato, em discurso de novembro de 1953, ele “queixou-se amargamente de que a falta de recursos recebidos pela organização não lhe permitiu nem mesmo manter o plano de trabalho aprovado anteriormente”. Em 1955, ele presidiria o Congresso Camponês de Pernambuco, de onde surgiriam as Ligas Camponesas, lideradas por seu amigo, o advogado Francisco Julião. Naquele ano, Josué desistiria de se candidatar à reeleição na FAO.
“Sua luta contra a fome, principalmente nos países subdesenvolvidos, assim como o combate ao latifúndio e a defesa da reforma agrária, faria dele uma figura incomoda não apenas para os setores ligados à agro exportação no Brasil, mas também para as grandes potências que controlavam a ONU e suas agências” (p.66), observa. Sobre os desafios internacionais, Graziano destaca entre as ideias de Josué, “uma que parece muito atual nos nossos dias: a necessidade crescente de um governo mundial para implementar as decisões dos organismos internacionais no enfrentamento de grandes questões, como a paz e a fome, o desenvolvimento e a desigualdade – para não falar das mudanças climáticas, que, felizmente, ainda não faziam parte das preocupações de sua época (p.72).
Com apenas dez dias de Golpe, em abril de 1964, Josué tinha seus direitos políticos cassados e figurava na lista dos 102 desafetos da Ditadura. Encabeçavam a lista: Luiz Carlos Prestes, o presidente João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro (confira a lista). Nove anos depois, com 65 anos, ele morreria em Paris, no exílio.
A esse contingente, que aguarda na porta das farmácias, das padarias, dos supermercados, Lula garantiu, em seu primeiro discurso como presidente eleito, na avenida Paulista, no último dia 30:
Nosso compromisso mais urgente é acabar outra vez com a fome. Não podemos aceitar como normal que milhões de homens, mulheres e crianças neste país não tenham o que comer, ou que consumam menos calorias e proteínas do que o necessário. Se somos o terceiro maior produtor mundial de alimentos e o primeiro de proteína animal, se temos tecnologia e uma imensidão de terras agricultáveis, se somos capazes de exportar para o mundo inteiro, temos o dever de garantir que todo brasileiro possa tomar café da manhã, almoçar e jantar todos os dias. Este será, novamente, o compromisso número 1 do nosso governo.
A urgência se justifica. Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 (II Vigisan), divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan)[i], em junho deste ano (acesse em https://olheparaafome.com.br/) revelam que desses 125,2 milhões em insegurança alimentar, 92 milhões oscilam entre a insegurança em relação ao acesso e o consumo em quantidade insuficiente de alimentos; enquanto 33 milhões efetivamente estão passando fome. A Grande São Paulo, que reúne a capital e mais 39 municípios, abriga 22 milhões de pessoas. 33 milhões é uma Grande São Paulo e meia de pessoas submetidas à fome.
Essa é a herança maldita do golpe
Oito anos atrás, a FAO divulgava o relatório The State of Fod Insecurity in the World (SOFI-2014) -- acesse aqui) --, anunciando que havíamos cumprido a meta e restringido a fome para 3,4 milhões de pessoas, o equivalente a 1,7% da população. Para as Nações Unidas, quando o percentual de afetados pela fome se encontra abaixo de 5%, o problema deixa de ser estrutural. E assim, nós saímos do Mapa da Fome em setembro de 2014, colhendo os frutos de onze anos de políticas sistemáticas de combate à fome, mas tendo de enfrentar a ira lava-jatista, disseminada desde março daquele ano eleitoral.
Resultado: “Em menos de uma década, o país traça uma curva rumo à superação da fome para, logo em seguida, interromper abruptamente um conjunto de fatores que determinaram esse progresso. Essa inflexão nos leva de volta a um quadro mais intenso de má nutrição e fome”, avalia a ex-ministra Tereza Campello (Cátedra Josué de Castro/ Faculdade de Saúde Pública-USP) que esteve à frente do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, entre 2010 e 2016, durante o governo Dilma.
Em dezembro do ano passado, a Cátedra Josué de Castro, onde ela leciona, realizou um seminário com pessoas que travam e pensam a luta contra a fome no Brasil, em vários âmbitos (cientistas, intelectuais, políticos, ativistas de várias áreas). O objetivo era debater os 75 anos do clássico A Geografia da Fome, e a partir dos ensinamentos de Josué de Castro, prospectar caminhos.
Do seminário, surgiu o livro Da Fome à Fome: diálogos com Josué de Castro (Elefante, 2022), organizado por Campello e pela pesquisadora Ana Paula Bertoletto (Cátedra Josué de Castro/ FSP-USP). Uma coletânea de artigos, com diferentes enfoques – socioeconômicos, sanitários, ambientais, nutricionais, históricos, éticos – sobre a fome, permitindo um mapeamento da questão em suas diversas geografias: a da insegurança alimentar, a das desigualdades socioeconômicas, a da produção de alimentos e a da crise socioambiental e alimentar.
A coletânea começa com a trajetória política e intelectual do autor de Geografia da Fome, seguido de análises que mostram o estado da insegurança alimentar no país, e sua cor. Na sequência, o debate se volta à questão da insegurança alimentar e as desigualdades socioeconômicas; e para o paradoxo do país ser um dos maiores exportadores de alimentos, mantendo mais da metade de sua população em situação de insegurança alimentar. Na quinta e última parte do livro, são debatidos os efeitos deletérios (fome, obesidade, mudanças climáticas) do atual modelo de produção e de consumo de alimentos.
Um contundente registro sobre a fome escrito por 27 autores, entre eles, autoridades, ativistas, cientistas, intelectuais, pesquisadores vinculados à luta e às ideias de Josué de Castro.
Fome, uma questão de decisão política
Médico, nutrólogo, geógrafo, intelectual, professor universitário, autor dos clássicos Geografia da Fome (1946) e Geopolítica da Fome (1951), além de tudo isso, Josué de Castro foi também um político e aguerrido defensor da reforma agrária, ativista do combate à fome, como nos conta José Graziano da Silva, ex-Diretor Geral da FAO (2012-2019) e ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome de Lula (2003-2004) do governo Lula. Neste artigo, ele traz os principais momentos da militância política do intelectual que transformaria nossa forma de entender a fome.
Aos 20 anos, Josué se formou em Medicina, e travando contato com pacientes afetados pela desnutrição e outros males decorrente da situação de miséria, abraçou a Nutrição e a luta do combate à fome. Filiado ao antigo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), ele assumiu a vice-presidência da Comissão Nacional de Política Agrária durante o segundo governo Vargas, onde apresentou seus dez pontos para vencer a fome. Em 1951, Josué foi eleito presidente do Conselho Geral da FAO, a organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Foi deputado federal por dois mandatos (1954 a 1962) e, durante o governo Jango, assumiu o cargo de embaixador-chefe da delegação do Brasil nas Nações Unidas, em Genebra.
Em seu discurso de posse, observa Graziano, “ele estava otimista de que poderia contribuir com a missão de erradicar a fome no mundo”. No fim do mandato, em discurso de novembro de 1953, ele “queixou-se amargamente de que a falta de recursos recebidos pela organização não lhe permitiu nem mesmo manter o plano de trabalho aprovado anteriormente”. Em 1955, ele presidiria o Congresso Camponês de Pernambuco, de onde surgiriam as Ligas Camponesas, lideradas por seu amigo, o advogado Francisco Julião. Naquele ano, Josué desistiria de se candidatar à reeleição na FAO.
“Sua luta contra a fome, principalmente nos países subdesenvolvidos, assim como o combate ao latifúndio e a defesa da reforma agrária, faria dele uma figura incomoda não apenas para os setores ligados à agro exportação no Brasil, mas também para as grandes potências que controlavam a ONU e suas agências” (p.66), observa. Sobre os desafios internacionais, Graziano destaca entre as ideias de Josué, “uma que parece muito atual nos nossos dias: a necessidade crescente de um governo mundial para implementar as decisões dos organismos internacionais no enfrentamento de grandes questões, como a paz e a fome, o desenvolvimento e a desigualdade – para não falar das mudanças climáticas, que, felizmente, ainda não faziam parte das preocupações de sua época (p.72).
Com apenas dez dias de Golpe, em abril de 1964, Josué tinha seus direitos políticos cassados e figurava na lista dos 102 desafetos da Ditadura. Encabeçavam a lista: Luiz Carlos Prestes, o presidente João Goulart, Jânio Quadros, Miguel Arraes, Darcy Ribeiro (confira a lista). Nove anos depois, com 65 anos, ele morreria em Paris, no exílio.
Sua obra, aponta Renato Maluf (Ciências Sociais – UFRRJ), coordenador da Rede Penssan*, inaugura a “politização da fome” no debate nacional, ao dar ênfase aos “determinantes socioeconômicos e políticos da fome que, assim entendida se torna resultado da ação humana”. Ele “inaugurou essa perspectiva em suas primeiras pesquisas, e a manteve durante sua ascensão como personagem público, lançando as bases do campo político da soberania e da segurança alimentar e nutricional (SSAN) e do direito humano à alimentação adequada (DHAA), que surgiria no Brasil na segunda metade da década de1980, e que ganharia força a partir do início dos anos 1990” (p.175), observa.
Nessa perspectiva, Maluf destaca do “pacote de ações” integradas de combate à fome dos governos petistas, a “geração de emprego formal, valorização do salário-mínimo com todos os seus desdobramentos em outras rendas, o instrumento da transferência de renda que foi o Bolsa Família, os vários apoios à agricultura familiar, a reformulação da alimentação escolar, a construção de cisternas rurais no Semiárido, a eletrificação rural” (p.176). Medidas que alicerçaram a rede de proteção social e geração de renda, desmobilizada após o golpe.
Em seu artigo, Tânia Bacelar, professora emérita da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) traça uma síntese da relação de sucessivos governos com o tema da fome, centrando sua crítica ao modelo do agronegócio e apontando saídas. Ela cita, como exemplos, os programas Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de Aquisição de Alimentos (PPA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e as políticas de estímulo à produção da agropecuária de base família, avaliando que “ruptura institucional ocorrida em 2016, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff, e a ponte para o futuro por onde poucos circulam são os elementos que explicam o atual descaso com a fome – chancelado – porém, pela eleição presidencial de 2018” (p.56).
“Como articular os interesses de agentes que defendam com mais motivação, no ambiente político, inciativas que enfrentem o desafio de combater a fome em uma potência mundial de produção alimentar?”, questiona, ao analisar a hegemonia do agronegócio no ambiente político, inclusive, na imprensa, que “repete à exaustão que o agro é tech, é pop, é tudo”, enquanto “o agronegócio bloqueia o apoio necessário à produção agropecuária de base familiar” (p.58).
Quanto às saídas, Bacelar avalia que “na dimensão econômica, a mudança no sistema tributário brasileiro é fundamental”, e pondera que “a maioria das iniciativas implementadas nas décadas iniciais do século XXI pode ser repetida, mas, em geral, carece de ampliação, aperfeiçoamento e melhor articulação”. Quanto às novas iniciativas, novas políticas devem ser pensadas, acompanhando os desafios e as mudanças em curso (p.60).
Já o economista Ladislau Dowbor (PUC-SP), em sua reflexão sobre a explosão da fome, destaca que, neste ano de 2022, “apenas dois setores da economia brasileira são dinâmicos: a intermediação financeira, em suas diferentes modalidades, e a exportação de bens primários, que constitui, em grande medida, uma descapitalização do país em proveito dos grupos de intermediação de commodities”. Em sua avaliação, a explosão radical da fome e da insegurança alimentar está diretamente ligada aos dois setores, na medida em que “a apropriação dos recursos pelos grupos financeiros reduz a capacidade e compra da população, que não tem como pagar pelos alimentos, e a exportação dos alimentos pela agroindústria gera uma escassez no mercado interno e a alta descontrolada de preços. A política econômica se desvinculou dos interesses da nação” (p.198).
Um exemplo, aponta, é como o agronegócio lucrou recentemente com a valorização do dólar, prejudicando o acesso de milhões à alimentação; e como vem lucrando, desde 1996, a partir da Lei Kandir, que isentou de impostos a produção para a exportação. No Brasil, a produção de alimentos para o âmbito doméstico é taxada; mas a produção para exportação não é (p.189). O problema, diz, é global: “gerou-se uma estrutura planetária de exploração corporativa, com gigantes financeiros, como BlackRock, Bunge, Glencore e semelhantes”, um sistema “profundamente articulado com interesses nacionais tanto do agro quanto dos importadores de insumos, dos exportadores de madeira e do próprio governo federal” (p.192).
Um dos efeitos deletérios desse processo é comprovado pelo estudo da pesquisadora Renata Levy (Medicina-USP) e dos professores do Departamento de Nutrição da USP, Maria Laura Louzada, Patricia Jaime e Carlos Monteiro, revelando o aumento da ingestão de alimentos ultraprocessados e da queda do consumo dos alimentos in natura no Brasil, em particular, por conta do preço mais acessível desses alimentos.
Eles explicam que existem processamentos que não prejudicam a saúde, e consistem em processos mínimos que prolongam a duração dos alimentos, por exemplo. Porém, “no outro extremo, estão os processamentos prejudiciais, que incluem múltiplos métodos industriais que criam novos produtos ao converter alguns alimentos integrais em substâncias alimentícias quimicamente modificadas – e as formulam com uma miríade de aditivos para criar produtos com propriedades sensoriais altamente atrativas (ou mesmo quase viciantes). Esses são identificados como alimentos processados” (p.109). "Os alimentos ultraprocessados, que só representavam 10% das calorias consumidas por nossa população, hoje, representam quase 24%” (p.110), analisam.
A fome tem cor
Destacando que as “produções intelectuais de artistas, pensadores, e acadêmicos negros no Brasil” e o fato delas serem “demarcadas pela temática da fome”, o professor de história e político Douglas Belchior e a pesquisadora Adriana Moreira, da Coalizão Negra por Direitos e da Uneafro Brasil lembram que “a fome no Brasil tem cor, e que “ignorar esse elemento durante a formulação de estratégias para erradicação da fome no Brasil é algo pouco inteligente, ineficaz e hipócrita. Mais do que isso, é a reafirmação da lógica racista que organiza a sociedade brasileira”.
“O projeto colonial, que construiu o sistema de dominação racial branca no Brasil consolidou zonas territoriais, psíquicas, emocionais nas quais o Estado de direito jamais existiu”. Territórios “em que as violências físicas, simbólicas e psíquicas de um estado de exceção se naturalizaram como regra sobre corpos negros em favelas, periferias, quilombos e prisões. Isso também implicou a domesticação da ordem dos afetos da sociedade brasileira” (p.149) traduzida em “apatia, ignorância e hipocrisia” frente ao genocídio da população negra, em todos os levantamentos, o principal alvo da insegurança alimentar no país", afirmam.
Entre os 58,7% dos brasileiros que se encontram sob insegurança alimentar, 65% são negros e 46,8% são brancos, revela o último relatório da Rede Penssan. Entre eles, “as mulheres negras foram as mais atingidas”, observa Ana Paula Ribeiro, que coordena o programa Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ela conta que “entre março de 2020 e agosto de 2021, mais de dezenove mil famílias foram despejadas e mais de 93 mil foram ameaçadas de despejo (p.196).
Muitos já foram despejados e estão na rua passando fome. Frequentemente são pessoas que trabalham na informalidade e que na metade do mês, já não tem mais recursos para se alimentar. Então, procuram doações, vão para a fila do bom prato, da cozinha solidária, vão atrás da rede familiar, dos amigos. Atendemos muita gente com esse perfil. Por vezes, são famílias inteiras que acabam nas ruas sem condições de pagar aluguel ou se alimentar, em meio ao aumento do preço do botijão de gás e da gasolina que impacta demais os preços” (p.196), detalha.
Depois do golpe de 2016, e com o “corte de vários programas sociais”, ela conta que aumentaram os pedidos de ajuda. O MTST, então, fez uma arrecadação de alimentos no primeiro ano da pandemia, em 2020, ajudando 20 mil famílias. Em 2021, começaram as cozinhas solidárias em onze estados e no DF. Hoje, são 31 pontos que distribuem cerca de 500 a 600 marmitas por semana, conta Ribeiro. A plataforma para arrecadação de doações pode ser acessada aqui (p.197).
Enquanto isso, no campo, a agricultura familiar hoje envolve 10,1 milhões de trabalhadores, o equivalente a 67% dos que atuam na agropecuária brasileira, conforme detalha a antropóloga Maria Emilia Lisboa Pacheco, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). “Esse segmento representa 77% dos estabelecimentos rurais, o que significa 23% da área total. É a base da economia local de 90% dos municípios com até vinte mil habitantes, assumindo a renda dos 40% da População Economicamente Ativa do país (IBGE,2017)” (p.259).
Em sua avaliação, é preciso contestar a visão do Brasil como “celeiro do mundo”. “Essa visão produtivista se distancia das manifestações da fome. Não aborda as desigualdades, a violação de direitos, os impactos socioambientais da concentração da terra e da renda e o adoecimento da população pelos efeitos da liberação crescente de venenos. Essa visão também não reconhece o papel socioeconômico e ecológico dos segmentos do campesinato na produção dos alimentos. Nega ainda a visão das culturas e geografias da alimentação, como nos ensinou Josué de Castro”, defende (p.260).
Além dos autores acima mencionados e da socióloga Anna Maria de Castro, filha de Josué, em sua "Carta ao Pai", participam do livro: Renato Carvalheira do Nascimento, Rosana Salles-Costa, Inês Rugani Ribeiro de Castro, Domênica Rodrigues, Ana Letícia Sbitkowski Chamma, Gerd Sparovek, Arilson Favareto, Walter Belik, Ricardo Abramovay, Ane Alencar, Elaine Azevedo, Tasso Azevedo e Selma dos Dealdina e pesquisadores da Cátedra Josué de Castro responsável por uma cronologia, logo na primeira parte do livro, das principais ações e políticas públicas relacionadas à decisão de combater (ou não) a fome nos últimos 75 anos.
Um testemunho contundente do que fizeram com o Brasil de 2016 para cá.
O livro
O pdf do livro pode ser acessado em: http://geografiadafome.fsp.usp.br/wp-content/uploads/2022/07/DaFomeaFome.pdf
Quem preferir comprar pelo site da Editora Elefante:
https://elefanteeditora.com.br/produto/da-fome-a-fome/
O seminário que inspira o livro, da Cátedra Josué de Castro, pode ser acessado em:
https://youtu.be/8URF1fHrMIY
Nota
* A pesquisa da Rede Penssan entrevistou 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais de 577 municípios dos 26 estados e Distrito Federal. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). A íntegra da pesquisa pode ser acessada em https://olheparaafome.com.br/ Já, sobre a Rede Penssan, confira: https://pesquisassan.net.br/historico/
Nessa perspectiva, Maluf destaca do “pacote de ações” integradas de combate à fome dos governos petistas, a “geração de emprego formal, valorização do salário-mínimo com todos os seus desdobramentos em outras rendas, o instrumento da transferência de renda que foi o Bolsa Família, os vários apoios à agricultura familiar, a reformulação da alimentação escolar, a construção de cisternas rurais no Semiárido, a eletrificação rural” (p.176). Medidas que alicerçaram a rede de proteção social e geração de renda, desmobilizada após o golpe.
Em seu artigo, Tânia Bacelar, professora emérita da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) traça uma síntese da relação de sucessivos governos com o tema da fome, centrando sua crítica ao modelo do agronegócio e apontando saídas. Ela cita, como exemplos, os programas Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), de Aquisição de Alimentos (PPA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e as políticas de estímulo à produção da agropecuária de base família, avaliando que “ruptura institucional ocorrida em 2016, com a deposição da presidenta Dilma Rousseff, e a ponte para o futuro por onde poucos circulam são os elementos que explicam o atual descaso com a fome – chancelado – porém, pela eleição presidencial de 2018” (p.56).
“Como articular os interesses de agentes que defendam com mais motivação, no ambiente político, inciativas que enfrentem o desafio de combater a fome em uma potência mundial de produção alimentar?”, questiona, ao analisar a hegemonia do agronegócio no ambiente político, inclusive, na imprensa, que “repete à exaustão que o agro é tech, é pop, é tudo”, enquanto “o agronegócio bloqueia o apoio necessário à produção agropecuária de base familiar” (p.58).
Quanto às saídas, Bacelar avalia que “na dimensão econômica, a mudança no sistema tributário brasileiro é fundamental”, e pondera que “a maioria das iniciativas implementadas nas décadas iniciais do século XXI pode ser repetida, mas, em geral, carece de ampliação, aperfeiçoamento e melhor articulação”. Quanto às novas iniciativas, novas políticas devem ser pensadas, acompanhando os desafios e as mudanças em curso (p.60).
Já o economista Ladislau Dowbor (PUC-SP), em sua reflexão sobre a explosão da fome, destaca que, neste ano de 2022, “apenas dois setores da economia brasileira são dinâmicos: a intermediação financeira, em suas diferentes modalidades, e a exportação de bens primários, que constitui, em grande medida, uma descapitalização do país em proveito dos grupos de intermediação de commodities”. Em sua avaliação, a explosão radical da fome e da insegurança alimentar está diretamente ligada aos dois setores, na medida em que “a apropriação dos recursos pelos grupos financeiros reduz a capacidade e compra da população, que não tem como pagar pelos alimentos, e a exportação dos alimentos pela agroindústria gera uma escassez no mercado interno e a alta descontrolada de preços. A política econômica se desvinculou dos interesses da nação” (p.198).
Um exemplo, aponta, é como o agronegócio lucrou recentemente com a valorização do dólar, prejudicando o acesso de milhões à alimentação; e como vem lucrando, desde 1996, a partir da Lei Kandir, que isentou de impostos a produção para a exportação. No Brasil, a produção de alimentos para o âmbito doméstico é taxada; mas a produção para exportação não é (p.189). O problema, diz, é global: “gerou-se uma estrutura planetária de exploração corporativa, com gigantes financeiros, como BlackRock, Bunge, Glencore e semelhantes”, um sistema “profundamente articulado com interesses nacionais tanto do agro quanto dos importadores de insumos, dos exportadores de madeira e do próprio governo federal” (p.192).
Um dos efeitos deletérios desse processo é comprovado pelo estudo da pesquisadora Renata Levy (Medicina-USP) e dos professores do Departamento de Nutrição da USP, Maria Laura Louzada, Patricia Jaime e Carlos Monteiro, revelando o aumento da ingestão de alimentos ultraprocessados e da queda do consumo dos alimentos in natura no Brasil, em particular, por conta do preço mais acessível desses alimentos.
Eles explicam que existem processamentos que não prejudicam a saúde, e consistem em processos mínimos que prolongam a duração dos alimentos, por exemplo. Porém, “no outro extremo, estão os processamentos prejudiciais, que incluem múltiplos métodos industriais que criam novos produtos ao converter alguns alimentos integrais em substâncias alimentícias quimicamente modificadas – e as formulam com uma miríade de aditivos para criar produtos com propriedades sensoriais altamente atrativas (ou mesmo quase viciantes). Esses são identificados como alimentos processados” (p.109). "Os alimentos ultraprocessados, que só representavam 10% das calorias consumidas por nossa população, hoje, representam quase 24%” (p.110), analisam.
A fome tem cor
Destacando que as “produções intelectuais de artistas, pensadores, e acadêmicos negros no Brasil” e o fato delas serem “demarcadas pela temática da fome”, o professor de história e político Douglas Belchior e a pesquisadora Adriana Moreira, da Coalizão Negra por Direitos e da Uneafro Brasil lembram que “a fome no Brasil tem cor, e que “ignorar esse elemento durante a formulação de estratégias para erradicação da fome no Brasil é algo pouco inteligente, ineficaz e hipócrita. Mais do que isso, é a reafirmação da lógica racista que organiza a sociedade brasileira”.
“O projeto colonial, que construiu o sistema de dominação racial branca no Brasil consolidou zonas territoriais, psíquicas, emocionais nas quais o Estado de direito jamais existiu”. Territórios “em que as violências físicas, simbólicas e psíquicas de um estado de exceção se naturalizaram como regra sobre corpos negros em favelas, periferias, quilombos e prisões. Isso também implicou a domesticação da ordem dos afetos da sociedade brasileira” (p.149) traduzida em “apatia, ignorância e hipocrisia” frente ao genocídio da população negra, em todos os levantamentos, o principal alvo da insegurança alimentar no país", afirmam.
Entre os 58,7% dos brasileiros que se encontram sob insegurança alimentar, 65% são negros e 46,8% são brancos, revela o último relatório da Rede Penssan. Entre eles, “as mulheres negras foram as mais atingidas”, observa Ana Paula Ribeiro, que coordena o programa Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Ela conta que “entre março de 2020 e agosto de 2021, mais de dezenove mil famílias foram despejadas e mais de 93 mil foram ameaçadas de despejo (p.196).
Muitos já foram despejados e estão na rua passando fome. Frequentemente são pessoas que trabalham na informalidade e que na metade do mês, já não tem mais recursos para se alimentar. Então, procuram doações, vão para a fila do bom prato, da cozinha solidária, vão atrás da rede familiar, dos amigos. Atendemos muita gente com esse perfil. Por vezes, são famílias inteiras que acabam nas ruas sem condições de pagar aluguel ou se alimentar, em meio ao aumento do preço do botijão de gás e da gasolina que impacta demais os preços” (p.196), detalha.
Depois do golpe de 2016, e com o “corte de vários programas sociais”, ela conta que aumentaram os pedidos de ajuda. O MTST, então, fez uma arrecadação de alimentos no primeiro ano da pandemia, em 2020, ajudando 20 mil famílias. Em 2021, começaram as cozinhas solidárias em onze estados e no DF. Hoje, são 31 pontos que distribuem cerca de 500 a 600 marmitas por semana, conta Ribeiro. A plataforma para arrecadação de doações pode ser acessada aqui (p.197).
Enquanto isso, no campo, a agricultura familiar hoje envolve 10,1 milhões de trabalhadores, o equivalente a 67% dos que atuam na agropecuária brasileira, conforme detalha a antropóloga Maria Emilia Lisboa Pacheco, da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE). “Esse segmento representa 77% dos estabelecimentos rurais, o que significa 23% da área total. É a base da economia local de 90% dos municípios com até vinte mil habitantes, assumindo a renda dos 40% da População Economicamente Ativa do país (IBGE,2017)” (p.259).
Em sua avaliação, é preciso contestar a visão do Brasil como “celeiro do mundo”. “Essa visão produtivista se distancia das manifestações da fome. Não aborda as desigualdades, a violação de direitos, os impactos socioambientais da concentração da terra e da renda e o adoecimento da população pelos efeitos da liberação crescente de venenos. Essa visão também não reconhece o papel socioeconômico e ecológico dos segmentos do campesinato na produção dos alimentos. Nega ainda a visão das culturas e geografias da alimentação, como nos ensinou Josué de Castro”, defende (p.260).
Além dos autores acima mencionados e da socióloga Anna Maria de Castro, filha de Josué, em sua "Carta ao Pai", participam do livro: Renato Carvalheira do Nascimento, Rosana Salles-Costa, Inês Rugani Ribeiro de Castro, Domênica Rodrigues, Ana Letícia Sbitkowski Chamma, Gerd Sparovek, Arilson Favareto, Walter Belik, Ricardo Abramovay, Ane Alencar, Elaine Azevedo, Tasso Azevedo e Selma dos Dealdina e pesquisadores da Cátedra Josué de Castro responsável por uma cronologia, logo na primeira parte do livro, das principais ações e políticas públicas relacionadas à decisão de combater (ou não) a fome nos últimos 75 anos.
Um testemunho contundente do que fizeram com o Brasil de 2016 para cá.
O livro
O pdf do livro pode ser acessado em: http://geografiadafome.fsp.usp.br/wp-content/uploads/2022/07/DaFomeaFome.pdf
Quem preferir comprar pelo site da Editora Elefante:
https://elefanteeditora.com.br/produto/da-fome-a-fome/
O seminário que inspira o livro, da Cátedra Josué de Castro, pode ser acessado em:
https://youtu.be/8URF1fHrMIY
Nota
* A pesquisa da Rede Penssan entrevistou 12.745 domicílios em áreas urbanas e rurais de 577 municípios dos 26 estados e Distrito Federal. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia). A íntegra da pesquisa pode ser acessada em https://olheparaafome.com.br/ Já, sobre a Rede Penssan, confira: https://pesquisassan.net.br/historico/
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