Foto: Ricardo Stuckert |
Em reação às lúcidas declarações de Lula, proferidas no Egito, alguns economistas, com solidíssima reputação neoliberal, endereçaram a ele uma carta aberta, defendendo o malfadado teto de gastos que nos inferniza desde o governo Temer – e até, pasmem os leitores mais inocentes, defendendo a apropriação, pelos bancos, das cordilheiras de juros transferidas pelo setor público (isto é, por todos nós).
Naturalmente, esses economistas, ao defenderem o teto de gastos e, ao mesmo tempo, a espoliação via juros da coletividade (isto é, do setor público), estão sendo perfeitamente coerentes. O teto de gastos existe, precisamente, para garantir a transferência eterna de bilhões, em juros, para os bancos. O que lhes incomoda, nas declarações de Lula, é, portanto, que o presidente eleito tocou nessa questão. Por isso, em sua carta, é o que eles pretendem negar.
Vejamos, primeiro, o que disse Lula:
“Não adianta ficar pensando só em dado fiscal, mas em responsabilidade social. Vai aumentar o dólar, cair a bolsa? Paciência. O dólar não cai por conta de pessoas sérias, mas dos especuladores.
“O que é o teto de gastos? Se fosse para discutir que não vamos pagar a quantidade de juros do sistema financeiro que pagamos todo ano, mas mantivéssemos os benefícios, tudo bem. Mas não, tudo o que acontece é tirar dinheiro da educação, da cultura. Tentam desmontar tudo aquilo que é da área social.”
Realmente, se não fosse para isso, por que seria necessário o teto de gastos? Sua intenção, desde o início, era impedir qualquer aumento de gastos na Educação, Saúde, Cultura, etc., etc.
E para que impedir aumento de gastos em todos esses setores?
Para favorecer, ou privilegiar, o único setor que ficou fora do teto de gastos, isto é, o setor financeiro e sua goela infinita e voraz por juros, abduzidos do dinheiro público, ou seja, dos recursos de toda a população.
O aumento de gastos com juros, portanto, não era (e não é) uma preocupação desses zelosos guardiães da “responsabilidade fiscal”. Pelo contrário, para eles, essa “responsabilidade fiscal” existe para garantir a passagem de dinheiro público, através dos juros, para o setor parasitário da economia, isto é, o setor financeiro.
Assim, todos os gastos devem ser manietados, menos os gastos com juros.
Ficamos por aqui, no que concerne a Lula. O que reproduzimos é suficiente para demonstrar a sua posição (o leitor que quiser conhecer mais sobre a posição do presidente eleito poderá consultar HP 17/11/2022, “Não pode ficar só no fiscal. Vamos pensar em responsabilidade social”, afirma Lula).
Algo aporrinhados, os três economistas neoliberais (Armínio Fraga, Pedro Malan e Edmar Bacha) dizem o seguinte:
“A alta do dólar e a queda da Bolsa não são produto da ação de um grupo de especuladores mal-intencionados. A responsabilidade fiscal não é um obstáculo ao nobre anseio de responsabilidade social, para já ou o quanto antes.
“O teto de gastos não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros gananciosos. Não é uma conspiração para desmontar a área social.”
Por aqui sabemos algo espantoso. Os três economistas ignoram que a Bolsa, desde a época, no século XIX, em que Jules Verne enriqueceu como corretor – antes de se tornar o escritor de “Vinte Mil Léguas Submarinas” – sempre foi pura e mera especulação.
Ignoram, também, que o atual mercado de câmbio, com a moeda norte-americana como padrão, é ainda mais especulativo que a Bolsa. Aliás, essa é uma boa tradução de “câmbio flutuante” – de acordo com o que o câmbio “flutua”? De acordo, evidentemente, com a especulação entre seus participantes, é óbvio.
Quanto à afirmação de que o teto de gastos “não tira dinheiro da educação, da saúde, da cultura, para pagar juros a banqueiros gananciosos”, “não é uma conspiração para desmontar a área social”, façamos as contas (e, para fazê-las, não é necessário mais que o domínio de uma das quatro operações, a rigor, a adição).
Segundo o Banco Central, desde a instituição do teto de gastos, o setor público brasileiro transferiu, em juros, aos bancos:
2017: R$ 400,826 bilhões;
2018: R$ 379,184 bilhões;
2019: R$ 367,282 bilhões;
2020: R$ 312,427 bilhões;
2021: R$ 448,391 bilhões;
2022: R$ 435,569 bilhões (janeiro a setembro);
TOTAL: 2.343,679 (dois trilhões, 343 bilhões e 679 milhões de reais).
Aqui estão os juros do conjunto do setor público, sem as amortizações.
Se acrescentadas as amortizações, as transferências para os bancos vão a mais de 50% do Orçamento – se considerarmos somente o orçamento federal realmente executado, enquanto a educação ficou com 2,49%; a Saúde com 4,18%; e a Cultura com 0,0161% (v. Auditoria Cidadã da Dívida, Orçamento Federal Executado em 2021).
Resta perguntar: de onde foram retirados aqueles dois trilhões, 343 bilhões e 679 milhões de reais, que foram transferidos aos bancos, sob o pretexto de juros?
Evidentemente, em sua maior parte, da Educação, da Saúde, da Cultura, etc., etc., etc. e etc.
O que é mais absurdo porque é o próprio governo, através do Banco Central, que estabelece a taxa básica de juros.
Entretanto, os economistas neoliberais que assinaram a carta para Lula dizem que “o setor financeiro recebe juros, sim, mas presta serviços e repassa boa parte dos juros para o resto da economia, que lá deposita seus recursos”.
Não temos os senhores Fraga, Malan e Bacha por estúpidos. E eles não são. Mas aqui estamos no terreno do ridículo. A economia produtiva – isto é, a produção, sobretudo industrial – está sendo esterilizada há décadas pelos juros altos. Em suma, os recursos do trabalho nacional estão sendo desviados, drenados violentamente, pelo setor financeiro, através dos juros altos. A produção é substituída pelo parasitismo usurário. Mas, segundo os três mosquiteiros neoliberais, isso é um benefício que os bancos prestam à sociedade…
Da mesma forma, a sua explicação, na carta a Lula, de por que o governo no Brasil paga taxas de juros altíssimas e por que o câmbio é esse circo especulativo que eles negam, mas acabam admitindo: segundo eles, tal acontece porque o governo “não é percebido como um bom devedor”.
Em suma, como os banqueiros acham que o governo pode dar algum calote, direto ou indireto, os juros são altos.
Resta perguntar quando foi que o governo brasileiro deu algum calote na sua dívida – ou, melhor ainda, quem acha que esse risco existe, atualmente?
Bem, os senhores Fraga, Malan e Bacha, aparentemente, acham isso.
Mas é bobagem. Eles somente dizem isso porque não conseguem sustentar a política neoliberal de juros altos, especulação cambial e negociatas bursáteis com algum fundamento. Ou, o que é a mesma coisa, não conseguem convencer mais ninguém – ou muito pouca gente.
Em artigo publicado no “O Globo” de hoje, Flávia Oliveira levanta algumas questões interessantes.
O artigo, por sinal, tem como título “Teto de gastos é cloroquina fiscal”.
“O teto de gastos”, escreve Flávia, “é uma ficção fiscal comparável à cloroquina no enfrentamento à Covid-19. Instituído em 2017, não atravessou um solitário ano sem gotejar. Nas contas da economista Vilma da Conceição Pinto, diretora na Instituição Fiscal Independente (IFI), já no biênio inicial, ainda no governo de Michel Temer, foi arrombado em R$ 45,7 bilhões. Na dobradinha Jair Bolsonaro-Paulo Guedes, desmoronou. Em 2019, foram R$ 77 bi fora da regra estabelecida pela Emenda Constitucional 95/2016. No ano seguinte, o primeiro da pandemia, meio trilhão de reais (R$ 538 bi); em 2021, R$ 146,6 bi. Neste 2022, até setembro, as despesas extras alcançaram R$ 95,9 bilhões”.
Ela continua:
“É espantoso que, diante de tamanha desmoralização, o mercado e boa parte da opinião pública ainda entrem em modo histeria quando o Orçamento, igualmente fictício, apresentado pelo presidente derrotado não comporta o teto. A âncora fiscal proposta meia década atrás sucumbiu tal qual a do navio São Luiz, que, negligenciado pela Marinha, ficou à deriva e foi dar num dos pilares da Ponte Rio-Niterói.
(…)
“O presidente eleito dá sinais de que não se renderá à queda de braço imposta pelos agentes financeiros, expressa em queda na Bolsa e disparada do dólar.
“Do lado de Lula, o recado está dado”.
Não se poderia caracterizar melhor a colocação do presidente eleito, diante da tentativa de enquadrá-lo para que o país nada mude e tudo continue na mesma miséria e atraso – depois de toda a destruição, fome e obscurantismo dos últimos anos.
P.S.: Como vários leitores estranharam o título, esclareço que ele é proposital. Trata-se realmente de “mosquiteiros“, derivação de “mosquito“, e não de “mosqueteiros” (como no conhecido romance de Dumas pai), palavra derivada de “mosquete”. Os personagens de Dumas eram heróis. Esses, de agora, não têm essa estatura.
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