quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Uma vitória política gigante

Foto: Ricardo Stuckert
Por Valerio Arcary, no jornal Brasil de Fato:


'A alegria é a saúde da alma. Não há alegria sem sobressalto' - Sabedoria popular portuguesa

1. Merecemos estar alegres, ainda que preocupados.

A eleição de Lula foi uma vitória política gigante, ainda que, eleitoralmente, estreita, por duas razões fundamentais:

(a) tratava-se de uma disputa dificílima quando consideramos a relação social de forças desfavorável estabelecida no país desde 2015/16 que garantiu, a partir das mobilizações reacionárias de alguns milhões nas ruas insuflados pela Lava Jato, o golpe institucional contra Dilma Rousseff e a prisão de Lula, a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018, e um processo de acumulação de derrotas que passou pela reforma trabalhista, a Lei do Teto dos Gastos e a reforma da Previdência, sem que o desgaste do governo na pandemia, que abriu uma inflexão, fosse suficiente para garantir a massificação da campanha pelo impeachment em 2021;

(b) tratava-se de uma disputa dificílima, também, quando consideramos a relação política de forças, já que, nos últimos meses, ocorreu uma redução do desemprego e da pressão inflacionária, e o bolsonarismo abusou do poder ao liberar duas dezenas de bilhões de reais, estimulou o assédio patronal, manipulou as redes sociais com campanhas absurdas sobre a legalização de aborto e drogas, implantação de banheiros unissex nas escolas públicas, envenenou os evangélicos com uma cruzada imaginária sobre perseguição das igrejas pentecostais. A vitória de Lula, nesse contexto, foi imensa e explica a mobilização, em escala nacional, de milhões que foram às ruas para celebrá-la e confirmá-la.

2. Mas esta conclusão não diminui que o bolsonarismo, embora derrotado, permanece vivo.

Foi um erro grave subestimar o bolsonarismo antes das eleições. Será obtuso e imperdoável subestimá-lo agora, e no que está por vir.

Teve 58 milhões de votos. O país está social e regionalmente fraturado. Aumentou a votação em sete milhões após o primeiro turno.

Venceu em todas as regiões, à exceção do Nordeste. Bolsonaro conseguiu manter o apoio da "massa" da burguesia e da maioria da classe média, dividiu a classe trabalhadora e arrastou setores populares.

Garantiu a eleição de um poste para o governo de São Paulo e, nos outros quatro estados chaves, venceu com Castro no Rio, garantiu o aliado Zema em Minas, fechando o triângulo estratégico, e só perdeu para o PSDB no Rio Grande e para o PT na Bahia.

Garantiu aliados fortes no Paraná e Santa Catarina no Sul, em Goiás e no Amazonas. Venceu, ainda que por margem apertada pelas pesquisas, nos estratos sociais entre dois e cinco salários mínimos, que respondem por 30% da população economicamente ativa.

Garantiu que o PL tivesse mais votos que o PT somado ao PSOL e PCdoB. Líderes nacionais do bolsonarismo foram eleitos senadores, como Damares Alves e Marcos Pontes.

3. Os dois primeiros dias são a antessala do que está por vir.

A mobilização dos caminhoneiros com centenas de bloqueios, em escala nacional, é um levante organizado de forma centralizada, com a expectativa de insuflar concentrações nas cidades em frente aos quartéis, pedindo intervenção militar.

Trata-se de golpismo mascarado de "desobediência civil".

A cumplicidade da Polícia Rodoviária Federal é um escândalo, e a decisão de Alexandre de Moraes, estabelecendo multa, anunciando a possibilidade de prisão em caso de desacato merece o apoio da esquerda.

O longo silêncio de Bolsonaro é uma advertência de que nada será normal. Estamos diante, ao mesmo tempo, de uma crise interna da extrema-direita, dividida sobre o que fazer, e de uma provocação à legitimidade das eleições.

O não reconhecimento imediato é uma sinalização de que o bolsonarismo se prepara para um reposicionamento. Bolsonaro hesita porque sabe que está ameaçado por investigações que podem resultar em condenação pela Justiça e até prisão.

Os tumultos destes dois dias revelam que a oposição de extrema-direita será feroz e implacável.

4. A chave da evolução da situação política será uma disputa pela consolidação de uma nova maioria social.

Em termos marxistas, pela inversão da relação social de forças que herdamos dos últimos seis anos.

A disposição de voltar a ter um papel, politicamente, ativo cresceu nos setores mais avançados da classe trabalhadora e do povo como se viu nas marchas de rua do segundo turno e no domingo da comemoração.

Esta mudança do ânimo subjetivo das massas populares é o mais valioso, e deve ser estimulada a vontade de lutar. Hoje esse anseio passa pela defesa da vitória eleitoral contra o golpismo.

É previsível que o impacto da vitória venha a se expressar na desmoralização de parcelas menos extremistas das camadas médias, em divisões burguesas mais tensas em função da necessidade preservar interesses diante do novo governo e, até, em divisões na extrema-direita.

O desafio da esquerda será a luta pela hegemonia entre os assalariados de renda média para construir a unidade da classe trabalhadora.

Não deveria ser buscar o apoio da fração burguesa que se deslocou para a defesa de Lula depois do naufrágio da terceira via.

5. O desafio político estratégico será a ruptura com o neoliberalismo e a busca de governabilidade na mobilização operária e popular.

Esse deve ser o papel da esquerda socialista e, para cumpri-lo, deve preservar sua independência, mesmo sendo incompreendida, inicialmente.

Ninguém pode prever o que, realmente, será o governo Lula. O mais provável será a busca de uma concertação com as frações burguesas que chantageiam, ininterruptamente, aceitando uma ampliação dos programas de combate à pobreza extrema, mas exigindo responsabilidade social.

Ou seja, controle de gastos, aceitando uma nova âncora fiscal, mas com contenção da expansão da dívida pública.

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