Charge: Pataxó (*Tradução: Eduardo Bolsonaro) |
Devido aos bons ofícios da equipe de transição, o público brasileiro tomou conhecimento de que o Brasil deve cerca de US$ 5 bilhões a diversos organismos internacionais importantes, como ONU, OMS, OIT, OMC etc., o que coloca em xeque, em alguns casos, nossa capacidade de participar e votar nesses grandes foros mundiais. Uma vergonha, sem dúvida.
Mas isso é apenas sintoma de um mal muito maior. Uma doença mortal que vitimou a política externa do país e a soberania do Brasil.
A política externa do governo Bolsonaro constituiu-se em ruptura não só com a exitosa política externa “ativa e altiva” dos governos do PT, mas também com todas as boas tradições da política exterior do Brasil e com os princípios constitucionais que regem nossas relações internacionais.
Na realidade, com Bolsonaro o Brasil renunciou a ter uma política externa própria, assentada nos interesses nacionais, e passou a praticar uma política totalmente alinhada à administração Trump, embasada ideologicamente nos cânones da extrema-direita mundial e do chamado “olavismo”.
Desse modo, o Brasil passou a se submeter acriticamente a uma tendência político-ideológica extremada dos EUA, defendendo posições até mesmo contrárias aos seus interesses maiores e às suas tradições diplomáticas.
Tal alinhamento não foi, por conseguinte, sequer um alinhamento aos interesses de Estado dos EUA, o que provocou, a posteriori, atritos significativos com o novo governo do Partido Democrata, liderado pelo presidente Joe Biden.
A adesão ideológica ao “trumpismo” ocasionou enorme degaste à imagem do Brasil em muitas áreas, sobretudo no campo democrático.
Lembremos que o “trumpismo” atentou seriamente contra a democracia dos EUA, no episódio trágico da “invasão do Capitólio”.
Bolsonaro, como é notório, tentou emular, no Brasil, a mesma estratégia de desgaste das instituições democráticas e de questionamento das eleições adotada pelo ex-presidente Donald Trump e concebida, entre outros, por Steve Bannon.
Frise-se que, no plano das relações internacionais, essa extrema-direita é também antidemocrática, pois vê os grandes foros multilaterais como instrumentos de um fantasioso “marxismo cultural”, o qual ameaçaria os valores do “Ocidente cristão”.
Nesse plano, a extrema-direita, especialmente a norte-americana, opta por forte unilateralismo e pelo isolacionismo com viés xenófobo.
O engajamento com forças antidemocráticas e retrógradas, que apostam no conflito, no unilateralismo e na hostilidade a instituições democráticas internas e globais, tornou a política externa bolsonarista uma política que foi desenvolvida fora “das quatro linhas da Constituição”.
Com efeito, essa política foi implantada em claro confronto com os princípios inseridos no Artigo 4º da Constituição Federal, especialmente os referentes à I – independência nacional; II – prevalência dos direitos humanos; III – autodeterminação dos povos; IV – não-intervenção; V – igualdade entre os Estados; VI – defesa da paz; e VII – solução pacífica dos conflitos.
Além desse enorme desgaste no campo democrático, o perfilamento acrítico à extrema-direita mundial provocou também forte erosão da imagem internacional do Brasil em outras áreas relevantes.
Na área ambiental, que atualmente tem centralidade absoluta nas relações internacionais, o negacionismo climático propugnado por essa extrema-direita, compartilhado pelo governo Bolsonaro, contribuiu para ocasionar substanciais retrocessos nos compromissos mundiais do país referentes ao combate às mudanças climáticas, bem como nas políticas internas de proteção ao meio ambiente e dos direitos dos povos originários. Tornamo-nos o grande vilão ambiental do planeta.
No que tange aos direitos humanos, a adesão ideológica a posições retrógradas extremadas e fundamentalistas levou o governo Bolsonaro a se aliar a países autocráticos, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, com o intuito de se opor à proteção de muitos direitos, principalmente os direitos reprodutivos das mulheres.
No campo geopolítico, a submissão estratégica à política confrontacionista dos EUA, relativamente à inexorável ascensão de novos grandes atores mundiais, como China, Rússia, etc., ocasionou desgaste em nossa participação no BRICS, assim como conflitos em nossas relações bilaterais com a China, principal parceiro comercial do Brasil, com o qual temos uma frutífera Parceria Estratégica desde 1993.
Até mesmo a péssima gestão do Brasil na pandemia não pode ser desvinculada dessa política externa que alienou os interesses nacionais.
De fato, a aliança com a extrema-direita mundial causou impactos fortemente negativos não apenas no combate interno à pandemia, mas também em nossas posições externas relativas à luta internacional contra o novo coronavírus, conduzida pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O negacionismo anticientífico da extrema-direita internacional e do “trumpismo”, compartilhado pelo bolsonarismo, refletiu-se, no plano interno, na minimização da gravidade e letalidade do novo coronavírus, na não adoção, ou adoção parcial, das medidas não-farmacológicas, como o isolamento social e o uso de máscaras, na recomendação de uso de drogas ineficazes para o tratamento da Covid-19, como a cloroquina, no questionamento da eficácia dos imunizantes, no atraso na compra de vacinas etc.
No plano externo, tal negacionismo, combinando com o “antiglobalismo”, que encara, como já salientado, as instituições multilaterais como instrumentos do “marxismo cultural”, fez com que o Brasil aderisse tardiamente e de modo insuficiente à iniciativa da Covax Facility da OMS, prejudicando a obtenção de vacinas por aquele mecanismo.
Ademais, o Brasil, abandonando uma sólida tradição diplomática de defesa da saúde pública na OMC, se opôs, submetendo-se à pressão de alguns países desenvolvidos, à iniciativa, apresentada pela Índia e a África do Sul naquela entidade, de suspender provisoriamente os direitos de propriedade intelectual inscritos no TRIPS, com o objetivo de propiciar maior produção mundial de vacinas e outros insumos destinados ao combate à pandemia do Covid-19. Tudo isso maculou a imagem do Brasil na OMS, na OMC e no cenário internacional.
Outras áreas estratégicas para a inserção soberana do Brasil no cenário mundial, tais como a integração regional, as parcerias estratégicas com países emergentes e a vertente Sul-Sul da política externa, também sofreram fortes retrocessos, o que contribuiu para conformar um quadro geral de desprestígio político e isolamento diplomático do país.
A integração regional, em específico, sofreu danos gravíssimos. O Mercosul foi praticamente abandonado e o governo defendeu, em várias ocasiões, a extinção da união aduaneira do bloco e sua consequentemente transformação em mera área de livre comércio.
Ademais, Bolsonaro retirou o Brasil da Unasul e da Celac, importantes instituições regionais, e engajou-se na malsucedida estratégia norte-americana de derrubada do regime chavista, com prejuízos sensíveis para o país, especialmente para alguns estados da região Norte, como Roraima e Amazonas.
Esses graves retrocessos na política externa foram complementados por retrocessos na política de defesa, a qual também se viu fortemente prejudicada com um alinhamento estratégico subalterno à política de defesa e segurança dos EUA.
Nesse campo, podemos destacar a entrada das Forças Armadas do Brasil no Comando Sul dos EUA e a nova condição do país de aliado extrarregional da OTAN, que poderia estender a atuação dessa organização para o Atlântico Sul.
Dessa maneira, a sinergia virtuosa entre política externa ativa e altiva e a política de defesa com uma base industrial sólida, proposta nos governos do PT, foi substituída, com Bolsonaro, por um círculo vicioso formado por uma política externa e de defesa que colocam os interesses do Brasil na órbita subalterna dos interesses geoestratégicos dos EUA.
Em suma, o que se viu, no governo Bolsonaro, foi a perda de soberania e de uma estratégia própria de inserção internacional, combinada com uma política externa “antiglobalista”, confrontacionista e isolacionista.
Com efeito, no governo Bolsonaro voltamos a uma anacrônica Guerra Fria, saída da imaginação de ideólogos que ignoram a nova realidade do mundo contemporâneo.
Tornamo-nos párias obtusos, rejeitados pela imensa maioria da comunidade mundial. A política externa, que antes havia contribuído decisivamente para elevar o prestígio do Brasil no planeta, transformou-se, com Bolsonaro, em instrumento de uma debacle histórica da nossa soberania e do nosso protagonismo mundial.
Assim sendo, os US$ 5 bilhões não são nada, perto da imensa dívida em soberania e prestígio internacional que Bolsonaro deixou.
Felizmente, agora temos Lula, o Cara, para pagá-la. Com sobras.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em relações internacionais.
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