Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil |
O Ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino, dirigindo-se a quase oitenta jornalistas das mídias independentes brasileiras, afirmou que houve um golpe, não apenas uma tentativa de golpe. “Faticamente chegamos a ter um golpe de Estado. Porque um golpe de Estado se materializa, desde sempre, pela tomada do palácio de inverno e isto aconteceu. Entre 4 e 5 da tarde, nós não tínhamos o controle físico da sede dos três poderes da República”.
Após a intervenção federal civil, decretada para a segurança do Distrito Federal, foi possível retomar o controle dos três prédios. O ministro ressaltou ainda dois aspectos relevantes para a reversão do golpe: a rapidez na elaboração, assinatura e cumprimento do decreto de intervenção, e o apoio decisivo da frente ampla democrática constitutiva do atual governo, sem ela o golpe teria se concretizado, acredita ele.
No encontro, promovido pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, o ministro revelou seu entendimento de que os eventos do dia 8 de janeiro foram encadeados aos quatro anos de governo Bolsonaro. “O dia 8 de janeiro não é algo que surgiu por geração espontânea, não foi fruto apenas do desatino de centenas ou poucas milhares de pessoas”, disse. Grande parte das ilegalidades cometidas pela Lava Jato está, também, imbricada com esse golpismo aberto. “É o vale-tudo em nome de uma suposta moralidade, como capa de justificativa de qualquer coisa”, afirmou.
A escalada de violência política foi se concretizando após a confirmação da vitória do presidente: “o fechamento de estradas com a conivência e/ou participação de alguns agentes policiais inclusive; uma forte instigação política; no dia 12 de dezembro, a tentativa de tumultuar a capital da República, no dia da diplomação do presidente Lula; o planejamento do estado de defesa que constituía um intervenção no Tribunal Superior Eleitoral; no dia 24 de dezembro, o atentado a bomba; as ameaças à posse, frustradas; e, em seguida, esse dia 8 de janeiro”.
A preparação para o dia 8
“Eu quero lembrar a todos e todas que nós tínhamos seis dias de governo. (…) Houve uma canalhice com o conjunto do governo, não só em relação a mim, como se nós pudéssemos ter, em seis dias, operado um desaparelhamento, uma desinfiltração mágica. As coisas não são assim.” Há processos jurídicos formais a se percorrer nas exonerações e nomeações. Há, ademais, a Constituição que não dá poderes ao Ministro da Justiça e Segurança Pública para, por exemplo, mandar a Polícia Federal para defender a Esplanada dos |Ministérios. Teria sido ilegal. O mesmo se aplica à Polícia Rodoviária Federal, explica o ministro.
Ele reforça que todas as medidas preventivas que poderiam ter sido tomadas, foram tomadas. A posse transcorreu sem incidentes, lembra ele, pois houve um pacto institucional que foi cumprido como acordado. Em relação ao dia 8, as reuniões e o planejamento com o governo do Distrito Federal foram feitos e os alertas foram dados, entretanto, “o planejamento não foi cumprido”.
As investigações vão mostrar o porquê e por quem não se executou o que estava acordado. “Não houve reação por quê? As pessoas estavam dormindo”.
Mecanismos de cooperação jurídica internacional
Inquirido sobre eventuais laços com a extrema direita de outros países, o ministro apontou que “a investigação não tem fronteiras, não tem limite. A investigação, que inauguramos nessa semana, vai até onde for necessário que ela vá.” Essa meta, no entanto, esbarra na soberania de outros países, razão pela qual o Ministério da Justiça vem buscando fortalecer os mecanismos de cooperação jurídica internacional. O ministro citou o exemplo dos Estados Unidos que não tem atendido aos pedidos de extradição formulados pelo Brasil: “temos cobrado formalmente que os Estados Unidos atendam aos pedidos extradicionais e é por isso que algumas dessas pessoas com mandado de prisão expedido, relativa ao dia 8, já estão foragidas em outros países, inclusive nos Estados Unidos”.
O fortalecimento do Ministério da Justiça como o centro articulador da cooperação jurídica internacional, “um dos pilares rompidos na Lava Jato”, evitará que qualquer cooperação jurídica e policial aconteça à revelia dos conceitos de soberania nacional. “Estamos reconstruindo essa institucionalidade para mostrar que não é possível a qualquer um, a qualquer momento, renunciar aos atributos próprios da soberania, porque isso resulta, exatamente, na instrumentalização de instituições nacionais para cumprir objetivos imperialistas, como vimos nesse momento triste da vida jurídica brasileira [a Lava Jato]”, reiterou Flávio Dino.
O papel dos integrantes das Forças Armadas e da instituição
Aparentando grande cuidado na escolha das palavras, o ministro explicou que sua avaliação do papel dos militares é diferente de sua avaliação das instituições militares. “Temos que, institucionalmente, separar o joio do trigo, ou seja, temos que distinguir o que é postura de membros das instituições do que é postura da instituição. E nesse sentido, tenho sublinhado, e mais uma vez sublinho, que as Forças Armadas foram, como instituição, foram profundamente instadas a dar um golpe de Estado e não deram”.
Por outro lado, em outro momento da entrevista, Flávio Dino compartilhou o relato que recebeu das forças de segurança que retomaram o controle dos prédios. “Não há dúvidas de que houve mobilizações profissionais nos eventos todos que mencionei. Os próprios policiais militares do Distrito Federal narram isso, de que enfrentaram fisicamente pessoas profissionalmente preparadas. Havia profissionais com táticas e técnicas de combate que invadiram prédios, depredaram prédios, agrediram pessoas. Há policiais feridos, há policiais que sofreram até tentativa de homicídio ou lesão corporal grave em razão dessa presença profissional.”
O futuro e a ampliação do acesso à Justiça
O ministro anunciou que deve entregar na próxima semana um conjunto emergencial de medidas de proteção, já apelidado de “pacote da democracia”, com leis para fortalecer o combate a atos antidemocráticos e a segurança dos poderes no Distrito Federal.
Entre os temas abordados no conjunto de medidas, o ministro proporá uma legislação sobre as fronteiras da liberdade de expressão, que “como todo direito não é ilimitada, a delimitação se dá por outros direitos de igual estatura”. Um dos projetos de lei, que comporá o pacote, deve, assim, abordar “direito de resposta, retirada de matérias, cumprimento pelas plataformas de um dever ético de proteger um certo plexo de valores”, entre outros.
Os crimes cibernéticos foram convertidos à categoria de assunto estratégico do atual Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Duas ações já tomadas são a criação de uma diretoria específica na Polícia Federal para focar exclusivamente em crimes digitais e de uma assessoria especial no Ministério da Justiça para tratar de internet e direitos digitais, sob o comando da advogada Estela Aranha.
Ao debruçar-se sobre e a ampliação do acesso à justiça, o ministro lamentou ter que gastar a maior parte do seu tempo com as ameaças ao Estado Democrático de Direito. “Eu lamento muito que esse combate ao terrorismo esteja ocupando 80% do meu tempo. Claro que eu gostaria que estivéssemos com outra agenda, mas eu diria hoje que sou o ministro antiterrorismo. Minha agenda é combate ao terrorismo desde antes de tomar posse. Eu quase já tenho direito a férias”, brincou.
“A base do terrorismo está muito na desigualdade e nas injustiças. Numa sociedade desigual e empobrecida, carente materialmente, afetivamente, é uma sociedade frágil para ser capturada por éthos de extrema direita. Que estuda o nazifascismo no mundo sabe disso. Basta olhar o perfil das pessoas que se engajam. Não me refiro ao comando, mas às pessoas que se engajam, que participam desses movimentos. São pessoas exatamente com uma carência ou outra ou as duas, mas são pessoas carentes em busca da segurança perdida, do porto seguro perdido, que encontram, exatamente nesses extremismos, um senso gregário.
Paradoxalmente, é que como se fosse uma ágora. Os acampamentos funcionavam como uma ágora antidemocrática, é claro. Como espaço de agregação, de participação e que as pessoas conseguem superar o individualismo extremo a que são relegadas pela sociedade contemporânea e pela dissolução de laços interpessoais como nos bem sabemos. Esses acampamentos acabavam funcionando como espaços de sociabilidade pela direita e com isso a construção desses movimentos que se verificaram, não só no dia 8, mas marcadamente no dia 8.
Nós criamos uma Secretaria de Acesso à Justiça, (… ) liderada pelo secretário Marivaldo [advogado popular e auditor federal Marivaldo Pereira], pessoa muito experiente, para exatamente tratar de justiça antirracista, de combate ao feminicídio, de ampliação da justiça material na sociedade, combate à desigualdade, no que se refere, especialmente, ao aparato institucional do sistema de justiça. Combater isso é uma forma de combater o terrorismo, é uma forma de combater o fascismo. Eu diria que é a forma mais radical, no sentido próprio da palavra, de combater a extrema direita”, arrematou o ministro Flávio Dino.
* Para ver a conversa completa, acesso o Canal do Barão, canal oficial do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, no Youtube.
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