Charge: Miguel Paiva |
Depois de ter escrito Brasil Delivery [1] 20 anos atrás, jamais imaginei que escreveria um artigo com o título deste. Eu argumentava ali que a política macroeconômica de Lula era mais realista que o rei, aprofundando os princípios neoliberais que haviam guiado o governo anterior, sobretudo aqueles que prevaleceram no segundo mandato de Fernando Henrique (depois do abandono do câmbio fixo e da adoção do regime de metas de inflação). De fato, Lula iniciara seu primeiro governo com um pacote pesado de medidas (elevação da Selic de 22 para 26%, elevação da meta de superávit primário para 4,25% - quando o exigido pelo FMI era 3,5% - e forte arrocho monetário que, do dia para noite, via elevação do compulsório dos bancos, cortou cerca de 10% dos meios de pagamento da economia), então justificadas pela necessidade de driblar um suposto descontrole monetário, que ameaçava trazer de volta a inflação, e mais uma crise externa, que estaria colocando a economia brasileira “à beira do precipício”, correndo o risco de se “desfazer como gelatina” ou “derreter como manteiga” (eram essas as expressões da parceria mercado financeiro/mídia mais utilizadas à época).
A verdade é que o terrorismo econômico correu solto ao longo de 2002, apresentando intensidade cada vez maior à medida que iam se consolidando as perspectivas de vitória de Lula e do Partido dos Trabalhadores. A maior evidência desse terrorismo foi o valor alcançado pelo dólar ao final daquele ano, uma marca até hoje não superada, se a considerarmos em termos reais. Assim, Lula ganhou mas não levou, aliás, começou a ganhar perdendo ainda antes do pleito, quando assinou a Carta aos Brasileiros, o salvo-conduto exigido pelo mercado para que o futuro presidente fosse aceito.
Relembro esses fatos não só porque nos ajudam a entender melhor o tumulto hoje criado pelos recorrentes reclamos de Lula com relação à atuação do Banco Central, senão também para evidenciar há quanto tempo o país é refém da riqueza financeira e de seus imperativos. Depois do pacote mais realista que o rei, atravessamos todo o restante da década dos anos 2000 como os campeões do mundo em termos de taxa real de juros, que chegou a inacreditáveis 12% em meados de 2005, deixando em seu rastro o aprofundamento da desindustrialização precoce do país. A boa imagem que, ainda assim, os dois mandatos de Lula conseguiram construir perante a população, deveu-se aos programas sociais de forte impacto que adotou e ao boom internacional de commodities que caracterizou o período.
Depois da complicada quadra Dilma-golpe-Temer-Bolsonaro, cá estamos nós no mesmo ponto, com as mesmas explicações de sempre para novamente termos assumido o primeiro lugar no ranking mundial dos pagadores de juros. Aliás, sobre isso é interessante notar o comportamento sui generis do mandato de Bolsonaro: as médias anuais das taxas reais de juro mensais anualizadas de seu mandato foram anormalmente baixas para o padrão do país, mesmo se desconsiderarmos os dois anos mais afetados pela pandemia (2020 e 2021): [2] 2,18% para 2019, -0,39% para 2020, -3,21% para 2021 e 3,07% para 2022.[3]
Considerados tais números, é o caso de perguntar por qual razão a média terá que subir para 7,5% em 2023 (que é o que acontecerá se o Copom insistir em manter a meta da Selic [4] até o final do ano em 13,75%). Por que temos que ser os campeões do mundo sem ter ninguém que nos ameace nem de perto? O país que se encontra em segundo lugar tem uma taxa real de pouco mais de um terço da nossa — o México com 2,8%. Os economistas ortodoxos, os operadores do mercado e a mídia que lhes concede espaço exclusivo põem na roda, repetida e incansavelmente, o samba de uma nota só chamado credibilidade (no caso, para eles, a falta dela). O vilão da história desta vez (já que não temos problemas com as contas externas) é o descontrole fiscal, acompanhado do repique inflacionário iniciado em meados de 2021.
Só que os argumentos são frágeis: as contas públicas vêm obtendo resultados melhores (em 2022 superávit de 1,3% do PIB e relação dívida/PIB apresentando leve declínio) e as pressões inflacionárias, decorrentes de fatores totalmente exógenos (política chinesa que desordenou as cadeias globais de valor e conflito na Ucrânia), parecem estar arrefecendo desde meados do ano passado. No mundo todo as taxas de juros subiram? É verdade, mas países com taxas de inflação muito semelhantes à nossa, como Índia, Coreia do Sul e Canadá apresentam taxas reais muitíssimo mais baixas, ou mesmo negativas (0,7% na Índia, -1,6% na Coreia do Sul e -1,7% no Canadá). [5]
Ah, sim, o problema está nas expectativas, que podem “desancorar” se a Selic cair. Qual é a racionalidade desse tipo de argumento? Podemos encontrá-la na chamada “função de reação do Banco Central”, rezando que a taxa de juros é o fator determinante da credibilidade da política monetária (ou seja, do grau de crença dos agentes na capacidade do Banco Central de manter a inflação em valores próximos à meta), a qual, por sua vez, influencia as expectativas inflacionárias dos agentes, que vêm a constituir um dos principais determinantes da própria taxa de juros. Assim, se a credibilidade é alta, as expectativas dos agentes permanecem próximas à meta estipulada, com perspectivas favoráveis quanto ao alcance da estabilidade monetária. Caso contrário, “desancoram”, e apontam para um cenário de incerteza com relação ao controle monetário da economia.
Não é mister muita argúcia para perceber que o modelo é autorreferenciado: as taxas de juros dependem das expectativas que dependem da taxa de juros. Mais importante, porém, isso não constitui uma explicação efetiva do nível em que se encontram as taxas básicas a cada momento. Diz apenas que fica justificada qualquer taxa de juros que promova a convergência das expectativas em relação à meta de inflação. Como as expectativas aqui presentes são aquelas dos agentes que operam no mercado financeiro (Boletim Focus), é o caso de perguntar de quem é mesmo que a autoridade monetária precisa ser independente. Evidente que um Banco Central passivo e submisso aos desejos do mercado vai colocar a taxa de juros no nível que for necessário para que os agentes se sintam confortáveis e não “desancorem suas expectativas”.
Aqueles que pensam estar discutindo teoria retrucarão que a conclusão não procede, porque existe uma outra variável na função de reação: o hiato do produto. Ocorre que tal variável é de definição muito complexa, para dizer o mínimo, pois existem vários métodos diferentes para estimá-la e cada método produz um resultado distinto. Ademais, até onde se sabe, esta última variável tem tido papel apenas coadjuvante nas decisões tomadas pelo Copom, o protagonismo ficando mesmo com as expectativas.
Tal como uma criança birrenta, que só para de gritar e envergonhar os pais quando seus desejos, por esdrúxulos que sejam, são atendidos, os agentes do mercado são craques em encontrar argumentos para afetar as expectativas, e fazem isso melhor ainda quando não gostam do governo de plantão. E o mercado não gosta de Lula 3 (parecendo gostar mesmo de Bolsonaro/Guedes). Toleraram o Lula anterior, principalmente quando reinava a dupla Palocci/Meirelles, e cobraram bem caro por isso. Mas Lula 3, insistindo em colocar a responsabilidade social à frente de tudo e ainda com Haddad a tiracolo na Fazenda (imagine, um cara que escreveu um livro intitulado Em defesa do socialismo!)… aí não dá! A Selic tem que estar elevadíssima para que tenham ao menos um pouco de conforto. Para justificar o descalabro insistem, como vimos, no desequilíbrio fiscal, que teria sido majorado sobremaneira com a aprovação da “PEC da Transição”, ou “PEC da Gastança”, como parte da mídia preferiu nominá-la. Mas trata-se aqui de negacionismo explícito, como bem analisou em irretocável artigo recentemente publicado o economista André Lara Resende. [6]
O que foi até aqui considerado já seria suficiente para fazer uma defesa explícita da postura de Lula com relação à abusiva taxa de juros hoje praticada no Brasil e mesmo com relação à pertinência da assim dita independência do Banco Central, conquistada formalmente em fevereiro de 2021. Mas podemos ainda agregar outros dois argumentos. Um, de natureza histórica, e outro pertinente à relação entre esta autonomia e o que estipula a Constituição do País.
A grita dos mercados, de seus operadores e de seus partners na mídia tem por trás de si o seguinte raciocínio: os governos são sempre tendencialmente gastadores e, nessa medida, irresponsáveis fiscalmente. Sendo assim, um Banco Central independente se impõe como a garantia de que o manejo da política monetária será conduzido por parâmetros estritamente “técnicos”, visando tão somente a busca de níveis reduzidos e estáveis de inflação. A história porém mostra o contrário. A autoridade monetária deve funcionar, por um lado, como controladora da emissão de moeda e como banco do governo e, por outro, como banco dos bancos. Qual das duas funções é eminentemente pública?
O Banco da Inglaterra, por exemplo, começou como banco privado e fez enorme fortuna financiando a dívida pública do Estado inglês e produzindo nova moeda (capital novo) em cima desses ativos de crédito. Não foi no entanto sua função de emissor da moeda do reino que o colocou historicamente como entidade pública, mas, enquanto banco dos bancos, seu papel de emprestador de última instância (lending of last resource), que ele foi obrigado a desempenhar, não sem relutância, na crise comercial e bancária que tomou de assalto o espaço britânico em meados do século XIX.
Alguma coisa parecida acontece na história do Banco da França, do Reichsbank e do Federal Reserve, [7] ou seja, é para assegurar a estabilidade do sistema bancário (eminentemente privado, em que pesem os bancos estatais) que a autoridade monetária precisa ser pública, não para funcionar como banco do governo e controlador da oferta de moeda. A verdade dessas afirmações ficou patente com a grande crise financeira internacional de 2008 - a política do quantitative easing que o diga! Considerada, portanto, desse ponto de vista, a questão da “independência” do Banco Central, cláusula pétrea do discurso da ortodoxia/mercado/mídia, é uma questão falaciosa.
Por fim, um último e importante argumento em defesa de Lula: ele não está reivindicando nada mais, nada menos do que aquilo que está previsto na própria Constituição Federal. Perguntemos: de acordo com ela, o Banco Central detém de fato independência na fixação da taxa básica de juros? Veremos que não, o que coloca em xeque a constitucionalidade do dispositivo legal que confere à instituição a autonomia da qual ela hoje goza. [8]
Como ensinam os juristas, nossa Constituição é dirigente e tem força normativa. [9] No que diz respeito propriamente à ordem econômica, isso significa: a) que as normas constitucionais determinam uma atuação estatal que se dê no sentido de conformar relações econômicas capazes de buscar o objetivo precípuo nela inscrito, a saber, “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (art. 170); b) que são também estipulados os princípios que devem ser observados nessa jornada, como a soberania nacional, a propriedade privada e a livre concorrência, mas também, e é preciso enfatizar, a busca pelo pleno emprego; e c) que a força normativa da Constituição, vale dizer, o fato de ela ser dotada de imperatividade, obriga a observância dessas determinações e princípios.
Isto posto, cabe perguntar: está o Banco Central obedecendo as normas constitucionais quando fixa em injustificados 13,75% a meta da Selic e quando sinaliza que deve manter a cifra ao longo de 2023? É sabido, a julgar pelas últimas falas de Lula, que a taxa de juros não ficaria nesse patamar no corrente ano na ausência da Lei Complementar n.o 179, que garantiu a independência [10] de nossa autoridade monetária. Vale então fazer outra pergunta: nossa Constituição abriga a ideia de uma autoridade monetária independente? A resposta é negativa. Pela CF/88, independente, no sentido de não ter que se submeter a uma autoridade superior, só os três poderes. O Banco Central é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda e a ele, portanto, deveria responder, reportando-se assim, em última instância, ao próprio presidente da República. O que Lula vem reivindicando, para desassossego dos próceres, agentes e parceiros do mercado financeiro, é essa autoridade que lhe confere a Constituição e que ele, na prática, não detém. De acordo com a Lei Complementar n.o 179, quando fixa a meta da Selic, o Banco Central não precisa responder a ninguém. Age, portanto, como se fosse um quarto poder.
Observado o conjunto dos elementos até aqui elencados, a única postura respeitável a todos aqueles que votaram em Lula não só para devolver o fascismo ao seu submundo (seja o porão, seja o esgoto), mas também para tentar mais uma vez efetivar o objetivo da ordem econômica inscrito na Constituição — a existência digna a todos — é defender o presidente em sua cruzada contra a enormidade da atual taxa de juros e, igualmente, contra a soberba do Banco Central, consagrada pela descabida lei de fevereiro de 2021. A propósito, já está disponível na internet um manifesto de economistas contra a atual taxa de juros. Fica aqui o linque, para quem quiser assiná-lo: https://chng.it/YwRMpdn2.qm
Referências
BERCOVICI, G. Constituição Econômica e Desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros Editores, 2005
CASALINO, V. e PAULANI, L. M. Constituição e Independência do Banco Central. Direito e Práxis, vol. 9, número 2, 2018, p. 853-889
DURAN, C. V. A moldura jurídica da política monetária. São Paulo: Saraiva, 2013
* Leda Paulani é professora titular (sênior) do Departamento de Economia da FEA-USP, pesquisadora do CNPq e autora, entre outros, de Modernidade e Discurso Econômico (Boitempo, 2005)
Notas
[1] Me refiro ao artigo “Brazil Delivery: a política econômica do governo Lula”, que saiu no número de outubro-dezembro de 2003 da Revista de Economia Política (hoje Brazilian Journal of Political Economy), às páginas 58-73. Depois se tornou livro, publicado pela Boitempo, em 2008, sob o título Brasil Delivery: Servidão Financeira e Estado de Emergência Econômico.
[2] O cálculo das taxas de juro reais mensais foi efetuado utilizando-se o acumulado em 12 meses do IPCA calculado pelo IBGE e o valor da meta Selic vigente no dia 30 de cada mês.
[3] Compare-se com as médias verificadas em Lula 1 e Lula 2: em torno de 10% no primeiro e de 6% no segundo.
[4] Como se sabe, o que o Comitê de Política Monetária (Copom) determina periodicamente não é a taxa em si que pagarão os títulos públicos carregados pelos agentes, mas a taxa que deve ser perseguida pelo Banco Central em suas operações no período de vigência dela. Assim, se estamos nos referindo aos valores determinados pelo Copom, o correto é falar em meta da Selic e não simplesmente em Selic. Feita a observação, utilizaremos, por simplificação, apenas Selic.
[5] Os dados sobre as taxas reais de juros em diversos países do mundo podem ser conferidos em: https://clubedospoupadores.com/ranking-juros-reais. A tabela é atualizada semanalmente. Os dados relativos a Índia, Coreia do Sul e Canadá, bem como aquele do México, que apareceu anteriormente, foram obtidos em 10/2/2023.
[6] “O precipício fiscal e a realidade”, Valor Econômico, 7/2/2023.
[7] Duran (2013) observa que as modernas autoridades monetárias tiveram origem em bancos privados, que se destinavam a financiar o Estado em troca de prerrogativas especiais, como o monopólio da emissão de moeda.
[8] Os argumentos doravante apresentados estão desenvolvidos em Casalino e Paulani, 2018.
[9] Ver a respeito Bercovici (2005).
[10] Sabemos que de fato o que se conseguiu com a Lei Complementar n.o 179 foi a autonomia formal do Banco Central, e não sua independência, uma vez que a determinação da meta de inflação ainda está a cargo do Conselho Monetário Nacional (composto pelos Ministérios do Planejamento e da Fazenda, além do próprio Banco Central). Todavia, dado o peso que a instituição tem tido inclusive no que concerne à fixação da meta, autonomia e independência tornam-se aqui praticamente sinônimos. Vide a repercussão que tiveram na imprensa as últimas declarações do atual presidente do BC no sentido de aceitar rever a meta de inflação.
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