Em 03/02, o presidente Lula com o embaixador da China no Brasil, Zhu Qingqiao. Em 10/02, com o presidente dos EUA, Joe Biden. Fotos: Ricardo Stuckert/PR |
A cobrança é recorrente. Sempre que o PT chega ao poder, começam a exigir que seu governo condene países que não seriam democráticos.
Curiosamente, são quase sempre países com regimes de esquerda e/ou que são malvistos por Washington e aliados.
Não há praticamente demanda para que os governos do PT condenem os muitos países que são ditaduras extremas, mas que têm regimes geopoliticamente aliados ao “Ocidente”.
Compreende-se. Como dizia François de La Rochefoucauld, “a hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”.
Neste caso, vício arraigado e histórico. Em nossa região, por exemplo, há longa tradição de desestabilização de regimes progressistas e de apoio a ditaduras, em nome, é claro, da defesa da “democracia” e da proteção aos “direitos humanos”. Tradição sempre renovada, como se viu recentemente nos casos de Honduras, Paraguai, Bolívia etc.
Mas o Brasil, quando governado pelo PT, fala, sim, em democracia. De modo adequado e nos foros apropriados.
O Brasil, nos governos do PT, costuma “falar bem” nas votações que ocorrem Conselho de Direitos Humanos da ONU, relativas às Resoluções que aquela alta instância adota para reforçar a arquitetura internacional dos direitos da pessoa humana.
Em 2010, último ano do segundo governo Lula, o Brasil, ao contrário de muitos países, votou favoravelmente a todas as 28 resoluções que o Conselho de Direitos Humanos adotou em seu 15º período de sessões.
Os EUA, bedel dos regimes políticos do mundo, se abstiveram ou votaram contrariamente a todas as resoluções que foram a voto.
O Brasil falou e os EUA ficaram em silêncio. Além disso, o Brasil é signatário responsável de todos os instrumentos multilaterais e regionais que dizem respeito ao reforço aos direitos humanos e à proteção da democracia e suas instituições.
O nosso país, dessa forma, tem tido, principalmente nos governos do PT, participação ativa e positiva em todas as esferas regionais e mundiais que se dedicam à causa universal da afirmação progressiva de todos os direitos humanos, sejam eles políticos, sociais ou econômicos.
Apesar desse firme compromisso com os direitos humanos, o Brasil evita condenações formais a países específicos, que normalmente servem apenas para a defesa de interesses geopolíticos, que nada têm a ver com a promoção efetiva da democracia e com a proteção aos direitos humanos fundamentais.
Na realidade, a posição histórica da diplomacia brasileira tem sido a de evitar as condenações oportunistas, hipócritas e inúteis a certos países que não são do agrado dos EUA e aliados.
Assim, o Brasil normalmente se abstém nas votações que visam condenar e isolar nações como Cuba, por exemplo.
Tal posição não foi inventada ou introduzida pelos governos Lula e Dilma, como parecem acreditar alguns. É uma posição já tradicional do Estado brasileiro.
É também posição tradicional do Brasil, rompida apenas no governo Bolsonaro, condenar o embargo à Cuba.
Esse embargo, que já dura mais de 60 anos, é absolutamente inútil e somente pune a população daquele país. O mesmo pode ser dito das outras sanções comerciais e econômicas que os EUA e aliados impõem unilateralmente a adversários.
O Brasil somente apoia e cumpre sanções que sejam aprovadas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Aliás, é isso que faz a maior parte das nações do mundo. O embargo à Cuba, por exemplo, é condenado pela imensa maioria dos países.
As intervenções dos países que se julgam modelos de democracia em países supostamente “ditatoriais” normalmente resultam em caos, sofrimento e muitas mortes, centenas de milhares, como se viu, por exemplo, nos casos do Iraque, da Líbia, do Afeganistão, da Síria etc.
Em outras palavras, quando esses países “falam” em proteger democracia e direitos, a situação piora muito e milhares sucumbem. E mortos, ao que se saiba, não são “portadores de direito”. Tampouco falam.
Mas o problema principal é que, se fôssemos “falar” em democracia e direitos humanos com governos específicos, teríamos que falar com praticamente todo o mundo.
É o que se deduz de alguns relatórios sobre democracia no planeta. Normalmente elaborados por instituições conservadoras, que praticam o credo neoliberal com tocante fervor, esses relatórios assustam.
É o caso do último Democracy Index, elaborado, em 2022, pela The Economist Intelligence Unity (EIU).
Segundo essa publicação, somente 24 países do mundo, entre os 167 pesquisados, seriam “democracias plenas” (full democracies). O resto se divide entre as categorias de “democracias imperfeitas” ou falhas (flawed democracies), “regimes híbridos” (hybrid regimes) e “regimes autoritários” (authoritarian regimes).
Como se observa, segundo a The Economist, a maior parte da população do planeta não vive em democracia. Noventa e cinco países, que somam quase 55% da população do globo vivem em regimes “híbridos” ou “autoritários”.
Na África, no Oriente Médio e no resto da Ásia, as democracias, mesmo as imperfeitas, seriam raras exceções. Na América Latina, as “democracias plenas” se circunscreveriam ao Uruguai, Chile e Costa Rica.
Por conseguinte, se formos nos guiar pelo que dizem as publicações conservadoras, as mesmas que gostam de apontar os dedos para regimes políticos de esquerda ou de adversários dos EUA e aliados, teríamos de “falar” com um monte de gente, não apenas com a Nicarágua ou a Venezuela, como demandam alguns.
Outra questão que complica muito as coisas é que falar de países específicos frequentemente reforça a política contraproducente de isolar essas nações e contribui para intervenções que só fazem piorar (muito) a situação interna.
Não se pode ser ingênuo, em política externa. Além de Cuba, Venezuela e Nicarágua já vêm sendo objeto de sanções draconianas impostas unilateralmente (e, portanto, ilegalmente) pelos EUA.
Sanções que incidem pesadamente nas populações pobres dessas nações. Sanções que incidem negativamente nos direitos humanos desses povos. Sanções de natureza antidemocrática.
Portanto, se é para “falar” em democracia e direitos humanos, vamos falar primeiro condenando o isolamento e a sanções unilaterais.
E vamos falar muito em negociações e apoio ao diálogo, que é o que o Brasil, principalmente nos governos do PT, costuma fazer. Com êxito, diga-se de passagem.
Ademais, se é para falar em democracia e direitos humanos, não se pode silenciar sobre pobreza, fome e desigualdade.
Gandhi dizia que a pior forma de violência é a pobreza. Tinha total razão.
A pobreza, principalmente a pobreza extrema, é a negação de todo direito. Quem é pobre vive agrilhoado pela necessidade, que é o oposto da liberdade. O pobre tem muita dificuldade em exercer direitos e não vive realmente em democracia, mesmo que ela formalmente exista.
A maior parte da população mundial, que é pobre e miserável, está mais interessada numa democracia substantiva.
No direito a comer, no direito a morar, no direito a ter saúde, no direito a conseguir educar seus filhos. Não quer apenas votar, seguindo o modelo das democracias ocidentais. Isso não é captado pelos relatórios conservadores da The Economist, mas é necessário falar sobre isso também.
São, portanto, muitos os cuidados que temos de ter para “falar” em democracia, até mesmo porque quem costuma ter a fala hegemônica sobre o assunto não está realmente nela interessado.
Melhor ouvir, conversar e dialogar, como o Brasil e Lula sabem fazer.
* Marcelo Zero é sociolólogo e especialista em Relações Internacionais
Na África, no Oriente Médio e no resto da Ásia, as democracias, mesmo as imperfeitas, seriam raras exceções. Na América Latina, as “democracias plenas” se circunscreveriam ao Uruguai, Chile e Costa Rica.
Por conseguinte, se formos nos guiar pelo que dizem as publicações conservadoras, as mesmas que gostam de apontar os dedos para regimes políticos de esquerda ou de adversários dos EUA e aliados, teríamos de “falar” com um monte de gente, não apenas com a Nicarágua ou a Venezuela, como demandam alguns.
Outra questão que complica muito as coisas é que falar de países específicos frequentemente reforça a política contraproducente de isolar essas nações e contribui para intervenções que só fazem piorar (muito) a situação interna.
Não se pode ser ingênuo, em política externa. Além de Cuba, Venezuela e Nicarágua já vêm sendo objeto de sanções draconianas impostas unilateralmente (e, portanto, ilegalmente) pelos EUA.
Sanções que incidem pesadamente nas populações pobres dessas nações. Sanções que incidem negativamente nos direitos humanos desses povos. Sanções de natureza antidemocrática.
Portanto, se é para “falar” em democracia e direitos humanos, vamos falar primeiro condenando o isolamento e a sanções unilaterais.
E vamos falar muito em negociações e apoio ao diálogo, que é o que o Brasil, principalmente nos governos do PT, costuma fazer. Com êxito, diga-se de passagem.
Ademais, se é para falar em democracia e direitos humanos, não se pode silenciar sobre pobreza, fome e desigualdade.
Gandhi dizia que a pior forma de violência é a pobreza. Tinha total razão.
A pobreza, principalmente a pobreza extrema, é a negação de todo direito. Quem é pobre vive agrilhoado pela necessidade, que é o oposto da liberdade. O pobre tem muita dificuldade em exercer direitos e não vive realmente em democracia, mesmo que ela formalmente exista.
A maior parte da população mundial, que é pobre e miserável, está mais interessada numa democracia substantiva.
No direito a comer, no direito a morar, no direito a ter saúde, no direito a conseguir educar seus filhos. Não quer apenas votar, seguindo o modelo das democracias ocidentais. Isso não é captado pelos relatórios conservadores da The Economist, mas é necessário falar sobre isso também.
São, portanto, muitos os cuidados que temos de ter para “falar” em democracia, até mesmo porque quem costuma ter a fala hegemônica sobre o assunto não está realmente nela interessado.
Melhor ouvir, conversar e dialogar, como o Brasil e Lula sabem fazer.
* Marcelo Zero é sociolólogo e especialista em Relações Internacionais
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