Foto: Ricardo Stuckert |
Volpi, Ministro de Mussolini em agosto de 1926, dizia: “o destino do governo está ligado ao destino da Lira”. Era nos tempos lentos, nos quais “cada manhã, no mercado de Londres, uma centena de homens enfatiotados em seus trajes cinzentos, herdados de pais defuntos, trocarão liras por libras esterlinas”. Os prejuízos, lucros, dividendos, especulativos ou não, que eram sintetizados em semanas e meses, hoje são desdobrados em minutos e segundos e sua inteligência atravessa o mundo, de ponta-a-ponta: cria glórias, suicídios, fortunas, apropriações indevidas do sangue alheio e Golpes de Estado. Assim como Hegel, em 14 de outubro de 1806, viu a “razão à cavalo” na figura de Napoleão atravessando a Ponte da pequena Jena saqueada, a razão – hoje – transita nos trilhões de sinais inteligentes que tornam o mundo “plano” e marcam a decadência das Luzes.
O terremoto na Turquia e na Síria já soma mais de 12 mil mortos, catástrofe natural que movimenta a solidariedade internacional rapidamente. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, por outro lado – catástrofe política norteada por interesses dos países centrais – entra num empate estratégico ameaçador, longe de uma paz justa que proteja os povos de uma guerra de soma zero. Ali funciona, não a solidariedade na paz, mas o conluio para a Guerra, abrigado na desculpa de buscar uma paz duradoura, que só ocorrerá – se ocorrer – depois de muito sangue e destruição.
A guerra, que é interna ao sistema colonial-imperial, abala os alicerces da velha Europa, que jamais fez seu ajuste de contas com o passado, exceção ocorrida, em parte, no pequeno-grande Portugal, no período mais potente da Revolução dos Cravos. O Partido Popular na Espanha promove a sua “chispa” franquista, cúmplice com a extrema direita do Vox, depois da longa transição. Sanchez Castejon, presidente do governo, resiste e o faz bravamente. Joe Biden, no seu discurso à nação no Congresso Americano, destaca sua agenda interna progressista, ataca a Rússia, passa um pito na China (que nem se preocupa!), mas não diz nada sobre as suásticas do Batalhão Azov, que sustentam Zelenski no poder: progressismo interno e pragmatismo imperial externo, lentamente asfixiam a democracia liberal no próprio império.
No Brasil – superado o momento mais agressivo do golpismo com os acontecimentos não explicados do 8 de janeiro, parte majoritária dos jornalistas políticos da grande imprensa reiteram críticas ao Presidente Lula, face às ímpias críticas dele ao sacrossanto Banco Central. É um direito de ambos: a imprensa, de criticar nossas ambiguidades de Governo e Lula, de chamar à responsabilidade – num governo que apenas começa – um organismo de Estado não eleito, que tem um poder extraordinário para desenhar o que vai acontecer, tanto no futuro próximo, como em momentos mais remotos do seu mandato presidencial.
A democracia liberal soluça na Europa do passado colonial-imperial, mas se revitaliza – na América do Sul – ainda que limitada por uma liberdade mal nascida, nas tutelas cívico-militares com fraturas expostas. A crise na Europa vem do excesso de poder dos seus países mais ricos, que se separam – nos teatros da grande política mundial – não por quaisquer filigranas socialdemocratas, mas pelas maiores ou menores possibilidades de transmitir as crises dos seus estados-de-bem-estar para arcas do Tesouro das suas ex-colônias; ou para os países enfraquecidos da Europa Oriental: o Euro unifica e separa, glorifica o mercado e humilha a Europa Social.
A assertiva recorrente contra o comportamento do Presidente Lula emitida pelos “especialistas” é que ele “imagina que a situação do país é a mesma daquela encontrada em janeiro de 2003”. E que isso lhe faz pensar que devem ser aplicadas, por parte da área econômica do Governo, as mesmas políticas daquele início de Governo. Na minha opinião a crítica é injusta e manipulatória, de uma parte porque as políticas aplicadas na “era Palocci” – aceitas e orientadas pelo Presidente no seu primeiro Governo com ressalvas do Conselhão – foram formuladas para um “ajuste” rentista (mitigado por políticas compensatórias e sociais), para que o governo tivesse governabilidade e – gradativamente – se deslocasse, sem sobressaltos antidemocráticos, para um crescimento exponencial com distribuição de renda no segundo Governo Lula.
É injusta também porque o Presidente visivelmente “não pensa” que a situação é a mesma. E ela não é. Lula sabe que a situação de hoje é “muito pior” do que a situação de janeiro de 2003 e a sua movimentação política é legítima e necessária, para que as instituições se movam para compatibilizar as responsabilidades de quem preside o país, com as responsabilidades delegadas pelo Congresso, para quem é o “guardião do dinheiro”. Lula é o ponta-de-lança do time dos guardiões dos estômagos e da sobrevivência moral dos pobres.
Hoje se combinam vetores globais anárquicos, comandados por interesses coloniais-imperiais, cujo cerne é a movimentação do dinheiro na esfera global, com uma maior concentração de renda e poder no mundo dos Estados e no mundo “civil”. No Brasil, sucede uma destruição sem precedentes dos mecanismos de controle da criminalidade, dos mecanismos de defesa do ambiente natural e dos mecanismos de defesa contra a criminalidade internacional que mira a nossa soberania territorial e econômica. Pelo que conheço de Lula e da sua forma de proceder, sustento que ele até pode estar errado, mas não por achar que tudo é igual ao “janeiro de 2003”. Pode estar errado por não dizer, com todas as letras, que exatamente por “não ser igual” – por ser mais grave a situação do país e do mundo assediado pelo fascismo – é que ele deve prevenir responsabilidades! A grande imprensa, cuja ampla maioria apoiou decididamente Bolsonaro nos dois primeiros anos do seu Governo (e assim fortaleceu o monstro), não pode levar em conta os fatores internos que alarmam o país destruído pelo bolsonarismo, pois isso entraria em confronto com a naturalização que dele fizeram. Por isso fazem uma crítica sem fundo e sem forma.
Aos 40 dias de Governo pode ser dito que Lula, num “freio de arrumação” deve regular melhor a sua relação com o excelente Ministro da Economia que escolheu, que será o seu mediador permanente com o “mercado”, mas que também não pode abandonar as aspirações programáticas que representa, adotando – por escolha política – as técnicas necessárias para o controle da moeda num mundo “sem razão” e de muitas esquinas traiçoeiras. O jogo recém começou e é pesado: os problemas não são os mesmos nem os seus remédios, mas mesmo nos seus primeiros minutos já sabemos que é possível vencer, soprando cada vez mais democracia para dentro da República. E o Presidente atual, ao contrário do sociopata golpista que o precedeu, é um “expert” em espalhar confiança na democracia, por dentro e por fora do cárcere que a história da infâmia lhe reservou.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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