Foto: Ricardo Stuckert |
Para algumas personalidades da História os desafios extremos chegam tarde, como para Getúlio; cedo demais como para Jânio Quadros; ou no momento adequado vivido, como para Lula. Para outros chega em tempo, com a vantagem de que capacidade de resposta pode vir de uma energia sobrante para enfrentar os desafios extremos. Guevara falou no momento extremo: “atire vais matar um homem”. Haddad, agora, enfrenta seu momento político decisivo num ciclo extremo da crise da democracia no mundo, em que se erguem os extremos da direita.
Sou de um grupo privilegiado de advogados e pessoas que escrevem sobre o Direito – no meu caso especialmente sobre a Teoria do Direito e Direito do Trabalho – que tiveram o privilégio de ter algum tipo de convívio político e intelectual, com duas das figuras mais expressivas do mundo da Sociologia e da Filosofia do Direito. Estes – entre outros luminares – formaram diversas das mais brilhantes cabeças que atravessaram as fronteiras do Século XX).
Na época que ocorreram os fatos que narro neste artigo as frases, nas conversas entre pessoas com alguma formação, tinham começo, meio e fim. E assim como nós – comunistas e socialistas – tínhamos os nossos heróis locais, os “outros”, juristas e advogados da direita conservadora, também se abrigavam em “grandes” formuladores intelectuais, como Miguel Reale, Célio Borja e Francisco Campos, que igualmente lidavam com conceitos, com lógica e racionalidade.
Faoro me encantou numa reunião de colegas advogados, em que estive ao seu lado, com as suas observações geniais sobre o patrimonialismo brasileiro. Lyra Filho me deu uma outra lição-recado, indireta, mas inesquecível, proferida numa reunião com jovens colegas em que eu não estava presente. Um estudante de Direito, de nome Flávio Benites Filho, que eu orientava em algumas leituras sobre a Teoria do Direito – hoje advogado, Professor de Direito na Alemanha e Presidente do Sindicato da IG Metall – perguntou a Lyra Filho se eu não era “excessivamente hegeliano”. Provocado, o Mestre respondeu com uma ironia evidente: “não, eu acho que ele deveria LER Hegel ! “
Muitos daquela época ainda tem os pés fincados na terra e nos livros: passado e presente comungando na nossa trajetória, ora tomando forma na nossa ação profissional, na nossa militância política, ora nos nossos escritos, divulgados ao longo deste tempo. A lembrança desta época me leva a Raymundo Faoro, que fez a fraterna concessão de dizer, num texto de apresentação, há 45 anos, que um livro da minha autoria tinha a virtude “de em poucas páginas, iluminar o assunto com elegância”. (Já transito do fenômeno da associação de nomes e fatos para a essência da situação política que vivemos).
E rodeio as voltas da memória. Elas me levam novamente a Roberto Lyra Filho, que no ano de 1982, num escrito demonstrativo da amizade do Mestre, com seus discípulos mais próximos, entregou confiante a mim e a outros jovens colegas “a elaboração dos corolários (da Nova escola Jurídica Brasileira) no que refere ao Direito do Trabalho.” Até aqui estamos na história, eu, Lyra Filho, Faoro e o Flávio Benites. Prossigo.
Certamente eu não merecia a designação de “elegante”, por Faoro, nem tive a capacidade de estar à altura do legado de Roberto Lyra Filho, mas tiro estas lembranças do arquivo para estabelecer algumas conexões com o presente. Afinal, o que se busca num texto limitado como este não é a essência da História, mas o enunciado de um fenômeno que a revele “um pouco”, pois entendo como Karel Kosik que “a manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno”.
Retomando as minhas leituras interrompidas pus as mãos no “Terceiro Excluído” de Fernando Haddad (Zahar, 2022, 285 pgs.), em cuja apresentação o autor lembra, entre outros fatos importantes da sua vida intelectual e política, o surgimento do Prouni e também aquele autor que mais estudou e dedicou-se a deslindar o “tema do patrimonialismo brasileiro”, Raymundo Faoro, um weberiano explícito. Haddad entra no meu texto através das incríveis conexões, já não mais nas pequenas ruelas da História, nas quais indivíduos singulares tecem suas relações de princípio, mas ruas que chegam a uma outra universalidade concreta: o Estado Nacional e sua reforma econômica.
Através do patrimonialismo foi construído o “ethos” da formação do Estado Nacional brasileiro, que adota (pg.11) “em vez da objetividade abstrata de um direito igual, típica do Estado Moderno” (…) a regência “pelo princípio oposto, o das considerações eminentemente pessoais, típicas de situações de poder instáveis, em que as contrapartidas são entendidas como cumprimento de um dever pessoal ou mesmo de um favor.”
É possível, mas difícil, existir uma melhor narrativa sobre o drama Histórico que Haddad vive, hoje, nas estreitas margens que o Estado Moderno lhe preserva – na sua fase liberal-democrática decadente – para buscar a efetividade a um “direito igual”, na reforma econômica: o patrimonialismo é majoritário no Poder Legislativo, permanece íntegro na estrutura burocrática do Estado e seus chefetes não se negam e jamais se negarão a alianças com a extrema direita, para reforçar seus privilégios e manter suas “amizades” funcionando nas relações reais de poder.
O “fenômeno” histórico brasileiro que brilha, nos dias que correm, está representado pela coragem de um Presidente que entregou, para as mãos sábias e pacientes de Haddad, os destinos de todo um ciclo do nosso projeto democrático moderno. Se a nova âncora fiscal não se tornar aceitável para os grandes empresários, para quem a democracia nunca fez sentido, e também se tornar indiferente aos trabalhadores de todos os tipos para quais o alimento é mais urgente do que uma nova hegemonia democrática, tudo vai sucumbir.
As margens estreitas de manobra estão pressionadas pela guerra e pela fome, pelo exército civil de milicianos armados e pela sanha acumuladora do rentismo. Abrir estas margens significa ter equilíbrio fiscal com capacidade de combater as desigualdades sociais e regionais, para coesionar o Brasil em torno da República e da Democracia.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Sou de um grupo privilegiado de advogados e pessoas que escrevem sobre o Direito – no meu caso especialmente sobre a Teoria do Direito e Direito do Trabalho – que tiveram o privilégio de ter algum tipo de convívio político e intelectual, com duas das figuras mais expressivas do mundo da Sociologia e da Filosofia do Direito. Estes – entre outros luminares – formaram diversas das mais brilhantes cabeças que atravessaram as fronteiras do Século XX).
Na época que ocorreram os fatos que narro neste artigo as frases, nas conversas entre pessoas com alguma formação, tinham começo, meio e fim. E assim como nós – comunistas e socialistas – tínhamos os nossos heróis locais, os “outros”, juristas e advogados da direita conservadora, também se abrigavam em “grandes” formuladores intelectuais, como Miguel Reale, Célio Borja e Francisco Campos, que igualmente lidavam com conceitos, com lógica e racionalidade.
Faoro me encantou numa reunião de colegas advogados, em que estive ao seu lado, com as suas observações geniais sobre o patrimonialismo brasileiro. Lyra Filho me deu uma outra lição-recado, indireta, mas inesquecível, proferida numa reunião com jovens colegas em que eu não estava presente. Um estudante de Direito, de nome Flávio Benites Filho, que eu orientava em algumas leituras sobre a Teoria do Direito – hoje advogado, Professor de Direito na Alemanha e Presidente do Sindicato da IG Metall – perguntou a Lyra Filho se eu não era “excessivamente hegeliano”. Provocado, o Mestre respondeu com uma ironia evidente: “não, eu acho que ele deveria LER Hegel ! “
Muitos daquela época ainda tem os pés fincados na terra e nos livros: passado e presente comungando na nossa trajetória, ora tomando forma na nossa ação profissional, na nossa militância política, ora nos nossos escritos, divulgados ao longo deste tempo. A lembrança desta época me leva a Raymundo Faoro, que fez a fraterna concessão de dizer, num texto de apresentação, há 45 anos, que um livro da minha autoria tinha a virtude “de em poucas páginas, iluminar o assunto com elegância”. (Já transito do fenômeno da associação de nomes e fatos para a essência da situação política que vivemos).
E rodeio as voltas da memória. Elas me levam novamente a Roberto Lyra Filho, que no ano de 1982, num escrito demonstrativo da amizade do Mestre, com seus discípulos mais próximos, entregou confiante a mim e a outros jovens colegas “a elaboração dos corolários (da Nova escola Jurídica Brasileira) no que refere ao Direito do Trabalho.” Até aqui estamos na história, eu, Lyra Filho, Faoro e o Flávio Benites. Prossigo.
Certamente eu não merecia a designação de “elegante”, por Faoro, nem tive a capacidade de estar à altura do legado de Roberto Lyra Filho, mas tiro estas lembranças do arquivo para estabelecer algumas conexões com o presente. Afinal, o que se busca num texto limitado como este não é a essência da História, mas o enunciado de um fenômeno que a revele “um pouco”, pois entendo como Karel Kosik que “a manifestação da essência é precisamente a atividade do fenômeno”.
Retomando as minhas leituras interrompidas pus as mãos no “Terceiro Excluído” de Fernando Haddad (Zahar, 2022, 285 pgs.), em cuja apresentação o autor lembra, entre outros fatos importantes da sua vida intelectual e política, o surgimento do Prouni e também aquele autor que mais estudou e dedicou-se a deslindar o “tema do patrimonialismo brasileiro”, Raymundo Faoro, um weberiano explícito. Haddad entra no meu texto através das incríveis conexões, já não mais nas pequenas ruelas da História, nas quais indivíduos singulares tecem suas relações de princípio, mas ruas que chegam a uma outra universalidade concreta: o Estado Nacional e sua reforma econômica.
Através do patrimonialismo foi construído o “ethos” da formação do Estado Nacional brasileiro, que adota (pg.11) “em vez da objetividade abstrata de um direito igual, típica do Estado Moderno” (…) a regência “pelo princípio oposto, o das considerações eminentemente pessoais, típicas de situações de poder instáveis, em que as contrapartidas são entendidas como cumprimento de um dever pessoal ou mesmo de um favor.”
É possível, mas difícil, existir uma melhor narrativa sobre o drama Histórico que Haddad vive, hoje, nas estreitas margens que o Estado Moderno lhe preserva – na sua fase liberal-democrática decadente – para buscar a efetividade a um “direito igual”, na reforma econômica: o patrimonialismo é majoritário no Poder Legislativo, permanece íntegro na estrutura burocrática do Estado e seus chefetes não se negam e jamais se negarão a alianças com a extrema direita, para reforçar seus privilégios e manter suas “amizades” funcionando nas relações reais de poder.
O “fenômeno” histórico brasileiro que brilha, nos dias que correm, está representado pela coragem de um Presidente que entregou, para as mãos sábias e pacientes de Haddad, os destinos de todo um ciclo do nosso projeto democrático moderno. Se a nova âncora fiscal não se tornar aceitável para os grandes empresários, para quem a democracia nunca fez sentido, e também se tornar indiferente aos trabalhadores de todos os tipos para quais o alimento é mais urgente do que uma nova hegemonia democrática, tudo vai sucumbir.
As margens estreitas de manobra estão pressionadas pela guerra e pela fome, pelo exército civil de milicianos armados e pela sanha acumuladora do rentismo. Abrir estas margens significa ter equilíbrio fiscal com capacidade de combater as desigualdades sociais e regionais, para coesionar o Brasil em torno da República e da Democracia.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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