Por Jair de Souza
Nas últimas semanas, o tema dos avanços científicos na área da inteligência artificial ocupou boa parte dos espaços nos meios de comunicação. Face a isto, pudemos constatar reações de caráter nitidamente contraditório.
Muitos demonstraram sua satisfação, por vislumbrar uma perspectiva de elevação do nível de vida de nossa população em razão da ampliação do controle humano sobre as forças produtivas. Outros, no entanto, encararam esta mesma questão com um indisfarçável temor: a possibilidade de que boa parte de nossa população se torne supérflua e, por isso, passe a fazer parte dos descartáveis de nossa sociedade.
Mas, no final das contas, quem tinha razão em relação a essa disjuntiva, os que adotaram a posição otimista, ou os que demonstraram seu pessimismo?
A bem da verdade, não há uma resposta absoluta que possa ser aplicada de antemão a esta indagação. Tudo vai depender das características prevalecentes na sociedade em que a questão está sendo colocada. Portanto, uma vez mais, gostaria de recorrer a minha formação como economista para tentar esboçar um quadro que permita elucidar a essência do problema que estamos debatendo.
Para propósitos de formulação teórica, vamos inicialmente fazer uma simplificação imaginária em que temos uma sociedade bem igualitária, composta inteiramente por agentes economicamente ativos que se dedicam a produzir cestas básicas (um amalgamado de todos os bens e serviços que atendem as necessidades dos membros dessa sociedade). Em termos numéricos, sua constituição seria a seguinte:
Número total de integrantes = 1.000.000; tempo de trabalho diário por pessoa = 8h; produção por trabalhador = uma cesta básica a cada jornada; produção diária total = 1.000.000 de cestas básicas (1 por cada habitante/trabalhador).
Vamos supor que há uma elevação do nível tecnológico que aumenta a produtividade em 20%. Podemos, então, nos deparar com as seguintes duas alternativas básicas:
a) Mantém-se o tempo de trabalho por indivíduo. Em consequência, a produção resultante será acrescida em 20%, vindo a totalizar 1.200.000 cestas básicas (1,2 cesta por habitante);
b) Diminui-se o tempo de trabalho individual em 20%, para que cada cidadão trabalhe 6h40m por dia e acabe por produzir as mesmas 1.000.000 de cestas básicas de antes.
Como estamos considerando que se trata de uma sociedade de base igualitária, dois prováveis desfechos se derivariam das hipóteses apresentadas. No primeiro, todos continuariam trabalhando o mesmo tempo que antes e, com isso, receberiam um valor de produto acrescido de 20% (1,2 cesta básica por cada um, em lugar de apenas uma). No segundo, cada habitante seguiria recebendo no final o mesmo que antes (uma cesta básica), porém teria trabalhado 20% a menos do tempo, beneficiando-se com um acréscimo proporcionalmente equivalente em seu tempo de lazer.
Como podemos deduzir dessas teorizações, nas duas circunstâncias, a inovação tecnológica acarretaria em evidentes ganhos para toda a sociedade, seja por gerar um maior volume final de produtos, seja por ter exigido de cada um menos tempo de trabalho.
Entretanto, quando eliminamos a premissa inicial de um sistema igualitário e passamos a raciocinar em termos de uma sociedade neoliberal, o quadro sofre significativas transformações, e o avanço tecnológico pode implicar em resultados muito diferentes e contraditórios com o que tínhamos visto antes.
Como sabemos, no neoliberalismo, a prioridade é sempre daqueles que dominam a base econômica e, em vista disto, controlam o mercado. Em outras palavras, tendo o Brasil como espelho, tudo funciona para atender em primeiro lugar os interesses dos banqueiros, dos grandes proprietários rurais e demais grandes capitalistas que exercem hegemonia sobre a sociedade. Sendo assim, não existe nenhuma preocupação intrínseca de que os ganhos de produtividade decorrentes de avanços tecnológicos venham a favorecer a todos de modo equitativo.
Na realidade, como vamos procurar demonstrar à continuação, a probabilidade é de que ocorra exatamente o oposto, com uma significativa acentuação da desigualdade e um brutal aumento do nível de exclusão social.
Retomemos, então, os dados usados com anterioridade para uma nova reflexão hipotética, agora, no âmbito de uma sociedade gerida pelos princípios do neoliberalismo.
Nesta perspectiva, se a produtividade se elevar em 20%, a tendência é que os donos das empresas, num primeiro momento, se proponham a manter a mesma carga horária de trabalho para seus empregados. Com isso, entre várias outras combinações, as duas seguintes possibilidades se destacam:
a) O número de trabalhadores envolvidos nas atividades econômicas permaneceria inalterado. A produção total resultante cresceria em 20% , chegando a 1.200.000 cestas básicas.
b) Mantém-se a mesma produção total de antes (1.000.000 de cestas básicas) e reduz-se em 16,67% o número de trabalhadores empregados. Assim, teríamos 833.334 cidadãos trabalhando por 8 horas a cada dia. Como decorrência, 166.666 pessoas seriam eliminadas do processo produtivo da sociedade.
Evidentemente, no quadro recém visto, a primeira situação se mostra menos desfavorável para os trabalhadores. Como todos continuam empregados, os grandes embates tendem a se desenrolar fundamentalmente em torno da forma como se efetiva a repartição dos frutos do trabalho, os quais tiveram uma elevação de 20%. Os capitalistas vão se empenhar com o objetivo de se apropriar de modo exclusivo desse adicional gerado, enquanto que os trabalhadores vão lutar para que sua participação nesses ganhos suba o máximo possível. O resultado desta disputa vai depender da correlação de forças entre as classes em confronto, assim como dos níveis de organização sindical, de consciência de classe e de unidade dos setores populares.
Porém, na segunda alternativa, o panorama se apresenta muitíssimo mais sombrio para os não capitalistas. Com a manutenção da carga horária de trabalho e a diminuição do número de engajados no processo produtivo, além de não haver nenhuma perspectiva de os trabalhadores virem a se beneficiar em razão do aumento da produtividade, seu problema se vê agravado devido à inaproveitabilidade de um significativo número de pessoas, que se tornam praticamente descartáveis para o sistema.
Nas condições estipuladas, o sistema não tem meios e nem interesse em absorver a mão de obra que se mostrou excedente em razão da elevação da produtividade. A alternativa de dar amparo a essa gente supérflua através da assistência social pública também não é vista como aceitável. Não podemos nos esquecer que o neoliberalismo é decididamente contrário ao uso de recursos público para prestar assistência social aos necessitados.
Então, como resolver este problema? A lógica aplicada pelo neoliberalismo é relativamente simples. Se há um excedente populacional que está ameaçando perturbar as contas públicas, é preciso eliminar esse excedente. Os teóricos (e também os teólogos) do neoliberalismo não admitem em hipótese alguma que recursos públicos venham a ser dilapidados em atividades que eles consideram improdutivas e desprezíveis, tais como essas de fornecer alimentação, assistência médica e educacional para pobres que não podem pagar por esses serviços. O dinheiro sagrado dos cofres públicos só deveria ser usado para causas “nobres e abençoadas”, como, por exemplo, a remuneração dos possuidores de títulos do erário público e, vez por outra, a absorção das dívidas envolvendo bancos ou outras grandes empresas do sistema. (Americanas, presente!)
Como os avanços tecnológicos apontam sempre no sentido de que menos mão de obra vai ser necessária para a produção, os neoliberais se preocupam em encontrar maneiras de eliminar a quantidade de seres humanos que vai se tornando descartável, inservível para a manutenção do sistema. Ao mesmo tempo que atuam para impedir ou dificultar ao máximo a organização sindical e social dos trabalhadores, os agentes do neoliberalismo também procuram encontrar maneiras de não deixar que o grande número de seres “inaproveitáveis” ponha em risco a continuidade do modelo econômico por eles apregoado. Por isso, políticas de cunho eugenista podem ser bem-vindas.
Não foi por mera casualidade que os ideólogos do nazismo bolsonarista, incluindo pastores e padres identificados com as teologias da prosperidade e do domínio, se esforçaram no sentido de bloquear as medidas sanitárias que visavam impedir o alastramento da covid-19 entre nossa população. Como se sabia que sua letalidade era especialmente forte entre a população mais idosa e de menos recursos, esses ideólogos viram nessa pandemia um tipo de enviado divino que tinha a missão de purificar o mundo. Por perverso que isso possa soar, pudemos ver e ouvir a várias pessoas que se identificam como cristãs fazendo a defesa da política genocida do governo nazista-bolsonarista. Estava ali uma oportunidade de conseguir que um milhão de seres “inúteis” deixassem de “mamar” nas tetas do Estado. Morreram cerca de 700.000 pessoas. O número meta objetivado pelo bolsonarismo foi quase que inteiramente alcançado.
Portanto, em termos sociais, uma melhora da capacidade produtiva com a elevação do nível tecnológico não vai necessariamente indicar que toda, ou a maioria, da população vai usufruir da mesma. Dependendo do sistema socioeconômico vigente e da correlação de forças entre as classes que disputam as riquezas da sociedade, em lugar de apontar no rumo de uma vida mais digna e confortável, o avanço tecnológico pode atuar como um acentuador do nível de desigualdade e ser um fator intensificador do processo de exclusão.
A filosofia que move o neoliberalismo apregoa e busca impor uma liberdade ampla e absoluta para os interesses relacionados com o capital, ao passo que emprega toda a força de que possa dispor para bloquear e sujeitar qualquer tentativa de avanço dos grupos a ele submetidos. Por isso, para as maiorias populares, os avanços tecnológicos vão sempre reforçar a necessidade de organizar e ampliar a luta para a própria superação do neoliberalismo e, no final, do próprio capitalismo, que o engendra.
* Jair de Souza é economista formado pela UFRJ; mestre em linguística também pela UFRJ.
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