A purificação do Templo, 1600, El Greco |
No Evangelho de Mt 28.19,20: “Ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”
Os dois versículos bíblicos acima são pilares para a ação evangelizadora e missionária de todas as igrejas, independentemente da confessionalidade, se católica romana, ortodoxa, reformada, evangélica, pentecostal ou neopentecostal. Ao longo da história do cristianismo ocidental estes dois versículos serviram de justificativa para múltiplas experiências contraditórias. Se, por um lado, a compreensão de fazer discípulos em todas as nações foi e segue sendo importante para a atualização permanente dos ensinamentos de Jesus Cristo, por outro, estes versículos representam a base política e religiosa das cruzadas e dos projetos colonialistas.
Não precisamos nos esforçar muito para identificar nos Evangelhos o que é que Jesus gostaria que guardássemos e praticássemos em seu nome. Para tempos atuais, talvez seja interessante relembrar a história da mulher anônima que seria apedrajada por supostamente ter sido pega em adultério. Os acusadores eram homens com poder, que poderiam estar temendo que a mulher revelasse algo que os comprometesse. Na história bíblica, a mulher não tem o direito à defesa. Tudo o que resta para ela é a decisão de outro homem, Jesus, que poderia ou não, ser aliançado ao patriarcalismo de seu tempo. O ensinamento de Jesus nesta história foi simples. Ele provocou os ‘arautos do bem’ com uma pergunta: “Quem não tem pecados que atire a primeira pedra”. Com esta provocação simples que coloca frente à frente o patriarcalismo e o seu cinismo e falsa moral, Jesus salva a vida da mulher, orientando-a a seguir a vida.
Projetos evangelizadores ou missionários, quase em sua maioria, tendem a inserir os versículos de Mt 28.19,20 em um arcabouço doutrinário e moral de controle da vida das mulheres e de arrogância em relação a culturas não cristãs. A compreensão que predomina é a de que quem é discípulo de Jesus, por ser salvo, pode julgar a vida e o comportamento das pessoas. Quem é de Jesus está salvo e é merecedor só de coisas boas. Quem não é de Jesus é pecador e pagão, merece, portanto, o castigo. Eis aí uma racionalidade simplista de um arcabouço religioso complexo que remonta a tempos e culturas distantes de nós.
No Brasil, a presença e influência de igrejas no espaço público e na vida política é naturalizada, da mesma forma, é natural ser cristão aqui nos trópicos. Há, por parte das pessoas, muita confiança nas igrejas. A tendência é que em momentos difíceis da vida ou em momentos de muito significado, como nascimento, casamento, morte, as pessoas buscarem uma igreja, tanto para se fortalecer, quanto para celebrar uma alegria. Igreja é lugar de encontro, oração, fortalecimento e para dividir alegrias.
Faz tempo, que se discute nos meios acadêmicos e eclesiásticos o crescimento de uma certa vertente evangélica no país. Quando se fala em evangélico, pouco se sabe o que se quer dizer com a expressão. O senso comum ilustrado tende a associar evangélico com obscurantismo, ingenuidade, ignorância e fundamentalismo. Há ainda alguns que não hesitam em afirmar que o crescimento evangélico no Brasil associado ao fortalecimento da ‘moral e os bons costumes’. Estes se esquecem, por exemplo, do movimento que contribuiu para a ditadura militar, de base católica romana, e que todavia existe, chamado TFP - Tradição, Família e Propriedade e da grande influência dos movimentos católicos tradicionalistas e de elite para que nunca tivéssemos aqui um “século de luzes” ou alguma experiência que remetesse a um iluminismo brasileiro.
A última semana tem sido bastante interessante para quem associa o ser evangélico com algo negativo. Proliferaram as notícias sobre igrejas evangélicas serem usadas para tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Foram duas notícias com este conteúdo que tiveram grande repercussão. A primeira foi a do chefe do PCC que abriu sete igrejas evangélicas para lavagem de dinheiro do tráfico. A segunda foi o caso do ex-deputado e pastor Josué Bengtson e de seu filho Paulo Bengtson, também ex-deputado, que estavam em uma aeronave, na qual foi apreendido 290 Kg de uma forma concentrada de maconha. A aeronave pertence à Igreja de Josué, que é tio e padrinho da ex-ministra e pastora Damares Alves.
Não surpreende que ambas notícias causaram alvoroço, em especial, a segunda, que envolve uma pessoa tão próxima e responsável pela carreira política de Damares Alves, paladina da moral e dos “bons costumes”, responsável por uma cruzada contra a pluralidade das famílias, contrária aos direitos humanos e antifeminsita.. Não faltaram memes para comemorar o caso, pois ele revela que repressão, moralismo e perversão caminham juntos.
Estes dois casos, tanto o das sete igrejas evangélicas abertas por um líder do PCC, quanto o do tio e padrinho de Damares Alves, Josué Bengtson, nos colocam diante de dois temas que deveriam ser profundamente debatidos no país. O primeiro deles, é a facilidade que se tem para abrir igrejas e a ausência de leis que regulamentem as assim chamadas associações religiosas. Há uma falsa compreensão que qualquer iniciativa que questione práticas religiosas significa limitar a liberdade religiosa. O argumento da liberdade religiosa tem sido validado para esconder práticas ilegais e abuso de autoridades religiosas. O segundo tema, que deveria ser debatido tem relação direta com o sistema político, trata-se da representação política de líderes que se valem do seu título religioso para concorrer a uma vaga nos espaços de representação política. Creio que não há nada mais contraditório em um Estado laico do que a articulação de Frentes Parlamentares religiosas.
Para o mundo cristão, separar o joio do trigo, é um exercício de autocrítica que precisa ser feito com urgência. A relação esdrúxula entre poder político, econômico e igrejas deveria nos colocar a pergunta de qual é rosto do cristianismo que esta relação expõe.
Se usamos a fé como moeda de troca para acumular poder político e econômico, somos como o Fausto de Goethe que pactuou com o demônio para ganhar riqueza e imortalidade.
* Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.
Os dois versículos bíblicos acima são pilares para a ação evangelizadora e missionária de todas as igrejas, independentemente da confessionalidade, se católica romana, ortodoxa, reformada, evangélica, pentecostal ou neopentecostal. Ao longo da história do cristianismo ocidental estes dois versículos serviram de justificativa para múltiplas experiências contraditórias. Se, por um lado, a compreensão de fazer discípulos em todas as nações foi e segue sendo importante para a atualização permanente dos ensinamentos de Jesus Cristo, por outro, estes versículos representam a base política e religiosa das cruzadas e dos projetos colonialistas.
Não precisamos nos esforçar muito para identificar nos Evangelhos o que é que Jesus gostaria que guardássemos e praticássemos em seu nome. Para tempos atuais, talvez seja interessante relembrar a história da mulher anônima que seria apedrajada por supostamente ter sido pega em adultério. Os acusadores eram homens com poder, que poderiam estar temendo que a mulher revelasse algo que os comprometesse. Na história bíblica, a mulher não tem o direito à defesa. Tudo o que resta para ela é a decisão de outro homem, Jesus, que poderia ou não, ser aliançado ao patriarcalismo de seu tempo. O ensinamento de Jesus nesta história foi simples. Ele provocou os ‘arautos do bem’ com uma pergunta: “Quem não tem pecados que atire a primeira pedra”. Com esta provocação simples que coloca frente à frente o patriarcalismo e o seu cinismo e falsa moral, Jesus salva a vida da mulher, orientando-a a seguir a vida.
Projetos evangelizadores ou missionários, quase em sua maioria, tendem a inserir os versículos de Mt 28.19,20 em um arcabouço doutrinário e moral de controle da vida das mulheres e de arrogância em relação a culturas não cristãs. A compreensão que predomina é a de que quem é discípulo de Jesus, por ser salvo, pode julgar a vida e o comportamento das pessoas. Quem é de Jesus está salvo e é merecedor só de coisas boas. Quem não é de Jesus é pecador e pagão, merece, portanto, o castigo. Eis aí uma racionalidade simplista de um arcabouço religioso complexo que remonta a tempos e culturas distantes de nós.
No Brasil, a presença e influência de igrejas no espaço público e na vida política é naturalizada, da mesma forma, é natural ser cristão aqui nos trópicos. Há, por parte das pessoas, muita confiança nas igrejas. A tendência é que em momentos difíceis da vida ou em momentos de muito significado, como nascimento, casamento, morte, as pessoas buscarem uma igreja, tanto para se fortalecer, quanto para celebrar uma alegria. Igreja é lugar de encontro, oração, fortalecimento e para dividir alegrias.
Faz tempo, que se discute nos meios acadêmicos e eclesiásticos o crescimento de uma certa vertente evangélica no país. Quando se fala em evangélico, pouco se sabe o que se quer dizer com a expressão. O senso comum ilustrado tende a associar evangélico com obscurantismo, ingenuidade, ignorância e fundamentalismo. Há ainda alguns que não hesitam em afirmar que o crescimento evangélico no Brasil associado ao fortalecimento da ‘moral e os bons costumes’. Estes se esquecem, por exemplo, do movimento que contribuiu para a ditadura militar, de base católica romana, e que todavia existe, chamado TFP - Tradição, Família e Propriedade e da grande influência dos movimentos católicos tradicionalistas e de elite para que nunca tivéssemos aqui um “século de luzes” ou alguma experiência que remetesse a um iluminismo brasileiro.
A última semana tem sido bastante interessante para quem associa o ser evangélico com algo negativo. Proliferaram as notícias sobre igrejas evangélicas serem usadas para tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Foram duas notícias com este conteúdo que tiveram grande repercussão. A primeira foi a do chefe do PCC que abriu sete igrejas evangélicas para lavagem de dinheiro do tráfico. A segunda foi o caso do ex-deputado e pastor Josué Bengtson e de seu filho Paulo Bengtson, também ex-deputado, que estavam em uma aeronave, na qual foi apreendido 290 Kg de uma forma concentrada de maconha. A aeronave pertence à Igreja de Josué, que é tio e padrinho da ex-ministra e pastora Damares Alves.
Não surpreende que ambas notícias causaram alvoroço, em especial, a segunda, que envolve uma pessoa tão próxima e responsável pela carreira política de Damares Alves, paladina da moral e dos “bons costumes”, responsável por uma cruzada contra a pluralidade das famílias, contrária aos direitos humanos e antifeminsita.. Não faltaram memes para comemorar o caso, pois ele revela que repressão, moralismo e perversão caminham juntos.
Estes dois casos, tanto o das sete igrejas evangélicas abertas por um líder do PCC, quanto o do tio e padrinho de Damares Alves, Josué Bengtson, nos colocam diante de dois temas que deveriam ser profundamente debatidos no país. O primeiro deles, é a facilidade que se tem para abrir igrejas e a ausência de leis que regulamentem as assim chamadas associações religiosas. Há uma falsa compreensão que qualquer iniciativa que questione práticas religiosas significa limitar a liberdade religiosa. O argumento da liberdade religiosa tem sido validado para esconder práticas ilegais e abuso de autoridades religiosas. O segundo tema, que deveria ser debatido tem relação direta com o sistema político, trata-se da representação política de líderes que se valem do seu título religioso para concorrer a uma vaga nos espaços de representação política. Creio que não há nada mais contraditório em um Estado laico do que a articulação de Frentes Parlamentares religiosas.
Para o mundo cristão, separar o joio do trigo, é um exercício de autocrítica que precisa ser feito com urgência. A relação esdrúxula entre poder político, econômico e igrejas deveria nos colocar a pergunta de qual é rosto do cristianismo que esta relação expõe.
Se usamos a fé como moeda de troca para acumular poder político e econômico, somos como o Fausto de Goethe que pactuou com o demônio para ganhar riqueza e imortalidade.
* Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.
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