Foto do site da EBC |
Na última terça-feira (20), o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé entrevistou o jornalista Hélio Doyle, presidente da Empresa Brasil de Comunicação, a EBC. Apresentado por Felipe Bianchi, o programa, primeiro de uma série sobre a Comunicação e o Governo Lula, contou com a participação dos jornalistas Talita Galli (TVT), Solon Neto (Alma Preta) e Theófilo Rodrigues (Barão de Itararé – RJ).
Há quatro meses à frente da EBC, após seis anos consecutivos de desmonte da empresa pública, Doyle compartilhou alguns planos de reconstrução da empresa pública, e principais dificuldades herdadas dos governos anteriores, em particular o baixo orçamento para custeio e investimentos e a dramática redução de pessoal sofrida na EBC.
Dificuldades que se somam às características de uma empresa pública, o que significa que está sujeita a uma série de normas e controles aos quais os veículos privados de comunicação não o são. “Em uma empresa privada, você pode fazer tudo o que a lei não proíbe. Numa empresa pública, você só pode fazer o que a lei permite”, explicou Doyle, trazendo exemplos do quanto isso torna o ritmo das mudanças mais lento.
Hoje, detalha, a EBC opera quatro canais de televisão – TV Brasil, TV NBR (Canal 2), Canal Educação (Canal 3) e Canal Saúde (Canal 4) –, as emissoras da Rádio Nacional de Brasília, do Rio de Janeiro, da Amazônia e do Alto Solimões; e das filiais estaduais da rádio MEC, que completa neste ano 100 anos de existência.
Seu objetivo é ampliar a audiência desses veículos, mas não da forma como fazem os canais privados. O que o atual governo pretende é oferecer, através dessa estrutura pública e em atividade, uma programação de interesse público, com qualidade, representatividade e pluralidade. O desafio não é pequeno e, ao fim e ao cabo, diz respeito à consolidação de uma efetiva comunicação pública brasileira.
Público não é privado, nem governamental
Questionado pela jornalista Talita Galli, da TVT, sobre a linha editorial no jornalismo da EBC, e seus públicos-alvo, Doyle trouxe questões centrais do debate sobre a comunicação pública, explicando que ela não é comunicação governamental, muito menos comunicação privada.
“Nós queremos ter audiência, mas não com uma programação voltada unicamente para a audiência”, como as empresas privadas. “Nós queremos uma programação de qualidade”. Uma diferença crucial no modo de olhar o público-alvo da emissora, no caso, a grande maioria da população brasileira.
“A comunicação privada trata o público como consumidor, porque quer faturar em cima da sua programação. Nós não. Nós temos que tratar o público como cidadão”, o que significa “oferecer uma programação de qualidade voltada à Cultura, à Educação, às Artes, mas nós temos que ter audiência. Não adianta falar só para nós”, ponderou ao frisar a baixa audiência da televisão pública hoje no país.
Não queremos fazer nem um jornalismo popularesco, nem um jornalismo de elite” e, nesse sentido, ele “precisa ter todos os cânones que o jornalismo deveria ter, e que nem sempre tem”, como a defesa da democracia, o princípio da ética e da igualdade, o combate à desigualdade e aos preconceitos de qualquer ordem, elencou.
“Nós queremos mostrar o que é de interesse público” e dar voz a todos, o que significa seguir na contramão do jornalismo tendencioso das emissoras privadas, que trazem uma única visão de mundo, conforme os interesses dos que as financiam. A emissora pública, pelo contrário. Cabe a ela contemplar “os dois lados” em sua programação, o que nem sempre é compreendido pela sociedade política, e “fornecer à população a informação correta”.
“Nós não podemos levar [à EBC] quem leva fake news. Ninguém vai usar os nossos canais para defender golpe de estado, racismo, opressão das mulheres. Mas temos de levar as pessoas que tenham pensamento diferenciado dentro dos marcos de um regime democrático”. Se efetivamente “temos o projeto de construir uma comunicação pública no Brasil, um projeto que começou em 2008, foi interrompido em 2016, e estamos querendo retomar agora, nós temos de enfrentar o desafio de fazer realmente um jornalismo com essas características”, destacou.
“Mas vocês vão convidar a oposição para dar entrevistas? Vamos, nós vamos convidar porque se não convidarmos não faremos jornalismo público. Haverá o canal do governo, o atual Canal 2, com uma denominação própria, uma estrutura própria, uma linha própria que é diferente da linha do Canal Público”, frisou.
Retomada da credibilidade
Lembrando que os dois últimos governos atacaram brutalmente a comunicação pública e a utilizaram como ferramenta de governo, o jornalista Solon Neto, do Alma Preta, agência de jornalismo especializada na temática racial, questionou quais os limites e modelos dessa comunicação pública, e o que fazer para resgatar a credibilidade da EBC, atacada por todos os lados.
Diferentemente da Europa do pós-Guerra, onde a televisão surgiu como uma televisão pública (somente nos anos 1980, aparecem as televisões privadas), no Brasil, explica Doyle, a televisão já surgiu nos anos 1950 como televisão privada, seguindo o modelo dos Estados Unidos. “A nossa experiência com a comunicação pública é muito recente, de 2008” e ela sofre as consequências de cada mudança de governo.
Em sua avaliação, “os canais públicos deveriam ter a estabilidade de serem considerados uma política de Estado”, como é no Japão e no Canadá”. De qualquer forma, ponderou, há problemas nas emissoras públicas de todos os países, inclusive na BCC britânica, porque se trata de “afirmar a comunicação pública em países capitalistas onde o lucro determina o andamento da própria política”.
“As emissoras privadas não gostam das emissoras públicas. Elas trabalham contra emissoras públicas e não é porque dividem faturamento. A emissora publica não tem um faturamento igual (…) É pela questão ideológica. As emissoras públicas de modo geral rompem com o pensamento único liberal, neoliberal, então, elas sofrem oposição. A própria EBC, com suas características de uma televisão sem audiência, sofre com isso”.
Outro aspecto é o controle da sociedade civil. Doyle citou o exemplo do desmonte do Conselho Curador da EBC durante o governo Temer, e a criação de um Comitê Editoral com atribuições muito mais reduzidas e nunca regulamentado. “A comunicação pública pressupõe controle e participação da sociedade, agora, que mecanismos traduzem essa participação e controle? Essa é a questão”, ponderou.
“Nós temos tevê, rádio e agência que se forem instrumento de governo, elas nunca serão encaradas como comunicação pública. A Constituição estabelece os sistemas privado, estatal e público; e nós temos a obrigação de ter um sistema público que não seja nem estatal, nem privado”, afirmou.
Representatividade e pluralidade
Em sua questão para o presidente da EBC, o cientista político Theófilo Rodrigues, autor de Democratizar a comunicação: teoria política, sociedade civil e políticas públicas, mencionou as dificuldades das mídias alternativas e independentes no país. E a necessidade de seu fortalecimento pela SECOM, no intuito de romper o pensamento único da mídia neoliberal, garantindo a diversidade de pensamento na discussão nacional.
Destacando o papel dos canais de Mídia Alternativa, em particular, na história recente do país, Doyle, que já foi conselheiro do Barão de Itararé, lembrou da própria experiência em governos locais, que a dotação financeira ou de parcerias entre essas mídias e a SECOM não raro esbarram na interdição dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, “muitas vezes por questões técnicas, outras ideológicas”.
No tocante à EBC, garantiu: “vai existir esse conjunto da mídia alternativa no nosso jornalismo”. A ideia é não ficar apenas com a pauta dos veículos privados e trabalhar com agendas da mídia independente, divulgando o que ela está mostrando. O caminho inverso, da retransmissão e difusão do conteúdo liberado pela EBC por essas mídias, também está previsto. “Nós temos o maior respeito pela mídia alternativa e admiração pelo seu papel de resistência. Queremos estar junto”, salientou.
Já em relação à questão da pluralidade, trazida pela jornalista Talita Galli, da TVT, que observou a dificuldade do jornalismo brasileiro de sair do eixo São Paulo-Rio, Doyle fez uma enfática defesa da regionalização da EBC. “A EBC existe em Brasília, Rio, São Paulo e Maranhão. Nós temos que regionalizar a nossa programação, não só por uma obrigação legal. Nós não temos recursos para espalhar sucursais e correspondentes, mas temos as nossas afiliadas, as emissoras educativas, universitárias, estaduais, fundações educativas”.
Com essas emissoras, contou, já existe um acordo de retransmissão da programação. O objetivo agora é mobilizá-las para que “mandem programas e notícias para regionalizar. A TVE da Bahia é um modelo para todos os canais e para nós de como deve ser uma emissora pública”, destacou. Um exemplo é a transmissão, agora, das festas de São João da Bahia e de Pernambuco pela EBC. “Não queremos ficar só nesse eixo Rio-São Paulo, queremos que o país inteiro seja refletido”, destacou.
Vem aí
Ele também deu algumas pistas das novidades que vêm por aí em termos de programação, sobretudo, na TV Brasil. A começar pela grade infantil e desenhos matinais que continuarão, garantiu, na contramão do que vem acontecendo nos canais privados que cortaram essa programação, conforme observou Galli. “Nós [da EBC] vamos continuar tendo os programas infantis. A tevê [privada] não quer porque não é rentável. Nós queremos porque é bom e tem caráter educativo”, destacou Doyle.
Da mesma forma, será mantido o horário da teledramaturgia. “O governo anterior recorreu às novelas bíblicas da Record. Nós deixamos, em respeito aos telespectadores, a novela terminar até o carnaval (…). Quando a novela terminou, não havia mais recursos, então, a solução foi pegar um contrato de uma novela antiga da TV Bandeiras (Os Imigrantes)”, com um valor muito abaixo das novelas bíblicas. Depois dessa novela, que vai até novembro, a solução pode ser estabelecer coproduções com outras televisões públicas, inclusive as estrangeiras.
Outra questão, trazida por Solon Neto, é a presença de pessoas pretas e pardas na comunicação brasileira. Solon trouxe dados de uma pesquisa da UERJ que revela que 84% dos textos, nas três principais redações do Brasil (Estadão, Folha de São Paulo e O Globo) são assinados por pessoas brancas e menos de 10% por pessoas pretas e pardas. Nas editorias, é 100% de brancos. “Isso se repete na maioria das redações do Brasil”, destaca.
“Estamos amarrados pela realidade da sociedade brasileira que ainda é branca, com elevado nível de racismo. Estamos tentando combater essa situação”, apontou Doyle, ao destacar duas iniciativas em curso neste sentido: os esforços de contratação de pessoas negras e indígenas para apresentar, comentar, analisar e ter programas na emissora; e um acordo em andamento com a RTP de Portugal e da África, visando trazer a pauta do continente africano para a nossa programação e o nosso telejornal.
Em relação à programação de filmes e séries, Theófilo Rodrigues levantou a possibilidade de veiculação dos filmes financiados pela Ancine, o que já está sendo pensado. Há também, acrescentou Doyle, um esforço no sentido de privilegiar o cinema nacional, dentro dos mesmos parâmetros da qualidade e de dar visibilidade a produções que não entraram no circuito do mercado. “Muitas vezes, aquele cinema que não encontra abrigo nas tevês privadas, nos streamings, nas redes de distribuição”. Ele também citou a produção das televisões africanas e latino-americanas. “A EBC no passado já exibiu uma novela angolana, e a gente sabe que tem muita coisa boa no cinema latino-americano e no cinema africano”.
Comunicação como um direito do cidadão
Por fim, questionado pelo jornalista Felipe Bianchi, do Barão de Itararé, sobre possíveis medidas para sanar a burocratização da EBC, Doyle destacou que muitas vezes há um confronto entre a exigência da agilidade e presteza da comunicação e “o excesso de normas e controles da comunicação pública, justificáveis porque são maneiras de evitar a deterioração do recurso público”.
Ele também destacou o engessamento do atual modelo de recebimento de recursos. Hoje, explicou, a EBC está atrelada “aos humores do Executivo e do Legislativo”, contrariamente a emissoras públicas de outros países, como a RTP portuguesa ou a BBC britânica, que conseguem respiro e financiamento para seus projetos de outras vias.
“Nós podemos ter publicidade institucional, podemos fazer um contrato de prestação de serviço, mas esse dinheiro não vem para nós, ele vai para o Tesouro e não necessariamente vem para nós depois”, destacou. Em sua avalição, seria necessário “definir fontes permanentes que independessem do orçamento do governo”.
Em meio a esses desafios e diante da oportunidade histórica de fazer deslanchar a comunicação pública no Brasil, um sonho de gerações, Doyle garantiu: “dentro das nossas limitações orçamentárias, de pessoal, de modelos, de normas, de legislação. Nós vamos fazer o melhor possível”.
“Nós vamos estabelecer a melhor programação que pudermos estabelecer no canal público, dentro dos recursos que nós temos. Vamos ter um telejornalismo consistente dentro dos princípios éticos do jornalismo, com qualidade e credibilidade. Nós vamos reposicionar a EBC na sociedade brasileira como uma prestação de serviços. A comunicação enquanto prestação de serviços públicos voltada para o cidadão, para que ele possa exercer o seu direito à comunicação e à informação”.
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