Foto: Stellantis Brasil (divulgação) |
Nossas autoridades parecem ter definido que o principal entrave, do ponto de vista do Brasil, para que o Acordo Mercosul-UE seja fechado, tange às compras governamentais.
De fato, trata-se de um mecanismo muito importante para o estímulo à produção nacional, regional e local. Conforme as avaliações do IPEA, as compras governamentais seriam responsáveis por aproximadamente 12% do PIB brasileiro.
Trata-se de um mercado hoje protegido para empresas brasileiras, as quais, dessa forma, podem ser estimuladas e dinamizadas pela demanda do Estado.
Evidentemente, não se trata de uma “jabuticaba”, pois a maior parte dos países do mundo usa desse mecanismo para dinamizar seu desenvolvimento econômico e tecnológico.
Mesmo nos EUA, que admitem compras governamentais, especialmente na área de defesa, de firmas estrangeiras, sob condição de reciprocidade, a vasta maioria dos recursos vai para indústrias e serviços norte-americanos. Em 2015, apenas 18% das compras norte-americanas vieram de firmas estrangeiras.
Pois bem, o Acordo Mercosul-UE abre esse mercado para empresas europeias, inclusive em compras estaduais e municipais.
Embora o texto assegure que algumas políticas públicas brasileiras seriam salvaguardadas, como as de saúde, educação, desenvolvimento tecnológico etc., é preciso considerar que as empresas europeias de indústria e serviços são bem mais competitivas que as do Mercosul, de modo que há risco concreto de uma considerável perda desse mercado atualmente protegido.
Em relação à reciprocidade, ela é, em grande parte, fictícia, uma vez que é pouco provável que empresas do Mercosul consigam competir exitosamente em compras governamentais da União Europeia.
Por conseguinte, a renegociação desse capítulo é necessária.
Entretanto, há outros aspectos do Acordo que podem ser ainda mais lesivos.
A questão principal tange à indústria, setor produtivo que, no Brasil, foi bastante fragilizado, nos últimos tempos.
Nesse segmente estratégico para um novo desenvolvimento do Brasil, os europeus conseguiram desgravação tarifária em cadeias muito relevantes, como veículos, partes de veículos, maquinários, produtos químicos e farmacêuticos etc.
Bom, em primeiro lugar, deve-se assinalar que há uma grande assimetria na “linha de largada” do Acordo.
As tarifas médias de importação da UE estão em 4,7%, ao passo que as do Mercosul estão em cerca de 13%. Dessa forma, as concessões tarifárias da UE serão muito menores que as do Mercosul.
Em segundo, a indústria europeia tem muito mais escala e é bem mais tecnologicamente desenvolvida que a do Mercosul.
Em conjunto, esses fatores, além de outros, poderão dizimar ou enfraquecer subsetores relevantes da nossa já combalida indústria.
Tomemos como exemplo a indústria automotiva, responsável, atualmente, por 22% do nosso PIB industrial, e que possui uma longa e estratégica cadeia produtiva.
Segundo o estudo Potential impacts of the Mercosur-EU agreement on the automotive value chains in Brazil and Argentina, de Federico Dulcich, Doutor em Economia (FCE UBA) e Investigador Assistente do CONICET no “Centro de Investigación, Desarrollo e Innovación Vehicular (CIDIV) de la UTN FRGP”, o cenário para a indústria automotiva do Mercosul, com o Acordo, não é promissor.
A vantagem competitiva da indústria de veículos da UE estaria assentada em alguns importantes fatores estruturais, tais como:
a) A produção da UE é muito maior. Segundo o estudo, a UE produziu, em 2018, 19.205.095 veículos, ao passo que o Brasil produziu 2.879.809 e a Argentina 466.649.
b) A produtividade por unidade fabril é bem maior na UE. De acordo com o estudo, a UE produz 116.811 por unidade fabril, enquanto que o Brasil produz 82.937 e a Argentina 52.738.
c) A indústria de veículos europeia, além de ser tecnologicamente bem mais sofisticada, já é bastante internacionalizada. Em 2018, enquanto que o Brasil exportou 22% (incluindo as exportações intra-Mercosul, que representaram mais de 60% do total) as exportações extrarregionais da UE representaram 32% de sua produção automotiva. Quanto a países europeus individuais, como Alemanha, Itália ou Espanha, a proporção de exportações para a produção (incluindo exportações intra-UE) excedeu 80%.
d) A significativa orientação exportadora extrarregional da UE, maior do que a sua penetração importadora, num contexto de volume de produção muito superior ao da Argentina e do Brasil, reflete-se no já superlativo comercial da UE em veículos, que ultrapassa os 100.000 milhões de dólares norte-americanos.
Com base nesses e outros fatores, as projeções feitas para os resultados do Acordo são negativas para o Brasil e o Mercosul.
Como se vê nesta tabela do estudo, todos os setores da indústria de veículos do Mercosul sairiam prejudicados (setas vermelhas para baixo), à exceção, possivelmente, da fabricação de ônibus do Brasil, setor já bastante competitivo.
O mesmo se daria em relação às partes de veículos (Tabela 5 do estudo). O Mercosul e o o Brasil sairiam prejudicados, no fluxo de comércio pós-Acordo.
O mesmo se daria em relação às partes de veículos (Tabela 5 do estudo). O Mercosul e o o Brasil sairiam prejudicados, no fluxo de comércio pós-Acordo.
A conclusão básica do estudo é a de que os potenciais efeitos gerados pelo acordo Mercosul-UE na cadeia automotiva implicariam importantes benefícios para a UE em termos de aumento dos saldos comerciais bilaterais nos subsetores automotivo e de autopeças, com base em sua forte competitividade internacional.
Por outro lado, esse fenômeno reduziria os saldos comerciais bilaterais da Argentina e do Brasil com a UE, gerando déficits comerciais na maioria dos subsetores. Além disso, o aumento das importações da UE irá deslocar o comércio intrarregional no Mercosul, afetando principalmente o Brasil, devido ao seu superávit comercial na maioria dos produtos automotivos e autopeças de seu comércio bilateral com a Argentina. Esses efeitos provavelmente afetarão a produção automotiva e de autopeças dos países da América do Sul, fortemente dependentes de proteção tarifária de importação e regulamentação regional.
Tal estudo é mais uma advertência, entre várias outras, sobre os danos que o Acordo Mercosul-UE pode nos causar, principalmente no que tange à nossa indústria.
A reindustrialização da Brasil é condição sine qua non para que o país possa crescer, se desenvolver e resolver seus graves problemas sociais.
Assim, a principal ameaça desse acordo com UE é consolidar uma economia essencialmente primário-exportadora, o que nos levará a um beco sem saída.
Não basta, portanto, se opor à abertura das compras governamentais.
O principal é não vender nosso futuro.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
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