Ilustração do site Sirse |
Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas coisas que para dizer a verdade não formam mais que uma constituem esta alma, este princípio espiritual. Uma está no passado, a outra no presente. Uma é a possessão em comum de um rico legado de lembranças; outra é o consentimento atual, o desejo de viver em conjunto, a vontade de continuar a fazer valer a herança que receberam esses indivíduos. O homem, Senhores, não se improvisa. A nação, como o indivíduo, é o resultado de um longo processo de esforços, de sacrifícios e de devotamentos. Ernest Renan. Conferência realizada na Sorbonne, em 11 de março de 1882.
Como todos sabem, não conhece a História um só exemplo de sociedade desenvolvida (qualquer que seja a acepção) que não seja, antes, uma economia de base industrial, avançada quase sempre, e nos dias da história presente indústria e revolução tecnológica constituem uma unidade. No entanto, por força da traição histórica de nossa classe dominante, essa que vem da casa grande e do escravismo, permanecemos, no século XXI como na colônia, como no império, economia agrária primário-exportadora (pau brasil, açúcar, algodão, ouro e prata, os minérios in natura e até índios escravizados pelos bandeirantes, e agora as mercadorias do agronegócio: soja, milho, frango...). Como sempre sem corar em face de insuportáveis índices de pobreza e concentração de renda. Assim: exportamos minério de ferro para a China e importamos lingotes e trilhos. Somos hoje o terceiro produtor de alimentos, em país cuja população, em sua metade, não tem segurança alimentar, e mais de 37 milhões de indivíduos passam fome.
Sem desenvolvimento industrial não há desenvolvimento qualquer, não há progresso, não há enfretamento ao desemprego e muito menos combate à fome. Igualmente não se conhece desenvolvimento industrial sem prévio investimento em ciência e tecnologia, e nada nesse ramo é admissível se não precedido de alto desenvolvimento educacional, em todos os planos, pois não enseja a formação de cidadãos aptos ao trabalho e à liberdade uma escola que fracassa no ensino fundamental, óbvia base de tudo.
O empresariado privado, associado ou não ao capital multinacional, resiste a investir em pesquisa, inovação e tecnologia de um modo geral. Prefere pagar royalties. O país, em busca do equilíbrio fiscal destinará 700 bilhões de reais para amortizar os juros da dívida pública. Para investimento estão reservados parcos 70 bilhões.
Em ato de contrição e denúncia o ministro da educação, Camilo Santana, nos diz que 73% do alunado dos cursos básicos saem das salas de aula jejunos em cálculos; os que “aprendem a ler” não conseguem interpretar o texto lido. O fracasso da educação no Brasil, porém, não é fruto do acaso, mas, como lembrava Darcy Ribeiro, um projeto que deu certo. Deita suas raízes na colônia, e chega até nós muito bem cultivado pelas chamadas elites. Nesse sucesso estão muitas das explicações para o fato de sermos, em pleno século XXI, um país por ser, por definir-se, por construir-se. A saída, porém, não está nos limites de governos e projetos esporádicos. O fracasso rotundo de nossa sociedade de hoje certifica essa afirmação. Falta-nos algo e eu me atrevo a identificar como a voz de uma desejada nação. O que somos: povo exilado, nação silente.
Certamente pelo fato de o povo haver sido sempre um exilado de nossa história, foi-nos difícil criar as bases da nacionalidade – aquela que nasceria do encontro da terra e seu povo aqui achados, dos africanos trazidos pela violência do tráfico negreiro, e do branco voltado para a criação de um novo país em tanta terra livre, quando transita da exploração para a colonização.
Em texto contundente, Capistrano e Abreu nos diria: “O povo foi capado e recapado, sangrado e ressangrado”: tanto desapartado de sua condição de sujeito quanto posto à mercê da exploração do colonizador. Com poucas nuanças, essa é a história do povo brasileiro, “um povo por ser. Impedido de sê-lo”, grita-nos Darcy Ribeiro. E como uma sociedade de escravos e senhores pode construir uma nação unificada por uma vontade comum?
Nascemos sem povo e sem nação, sociedade de escravos e senhores da terra pilhada. Sem povo, sem projeto de futuro, fizemos o império de inspiração inglesa e proclamamos uma república que pretendeu reunir o positivismo francês com o constitucionalismo dos EUA. Ambas as transformações ditadas de cima para baixo, que é a norma de nossa história toda. Ao povo, afastado do proscênio, concedeu-se o direito de assistir às paradas militares. A modernização se dá sem povo e às vezes contra o povo, a partir de 1930 e mais precisamente a partir da ditadura do “Estado Novo”, e ainda hoje marchamos em busca de um projeto.
A dificuldade que se coloca, de início, nesse cenário, é a da conceituação de “Projeto nacional”. Não se conhece seu texto, porque é obra imaterial, não tem autoria a declinar. Comecemos pela abordagem mais fácil, que é simplesmente dizer o que não é Projeto nacional: não é programa de governo, nem obra de uma elite, ou de sua classe-dominante, ou de ilustrados, ou de fardados. Não é Projeto nacional o chamado “projeto Vargas” (nem o “tenentismo” de 1930 nem o autoritarismo esclarecido do “Estado novo”), muito menos com ele se confunde o despotismo da modernização conservadora dos militares depois de 1964.
Numa tentativa de aproximação, mas ainda longe de um conceito satisfatório, digamos que Projeto nacional é aquele ideário, ou sonho de futuro, que uma nação formula para si mesma; é projeto fundante e perdurante, porque constitui o ser no presente, e declara o que pretende do futuro. É o código não escrito de uma gente. Espécie de construção utópica coletiva.
O “Projeto nacional” é mais que um programa de uma determinada elite, ou de um partido, de uma determinada dinastia, de uma determinada ditadura; não tem data de proclamação, não tem começo nem fim, embora tenha finalidade; para além de fenômeno político, é processo psicossocial-cultural, histórico.
Mas, o que seria uma nação? O que identifica a nação brasileira ou faz com que a gente que habita este espaço se reconheça como um povo, para além do simples fato de morar no mesmo território, ou falar a mesma língua, ou subordinar-se à mesma ordem política? Reconhecer-se na mesma origem? Identificar-se com a mesma história? Ou é tudo isso e ainda ter aspirações comuns, como idêntica visão de sociedade e o mesmo projeto de futuro? Ou é a crença de pertencimento a um código comum de valores e vontades?
É curial dizer-se que o Brasil nasce nos embates que no Nordeste uniram índios preados, negros escravizados, mamelucos e caboclos, portugueses e brasileiros na resistência à presença holandesa. A hipótese é que o ímã para a comunhão de povos que se antagonizavam teria sido a defesa do território, com o qual todos se identificavam naquele momento embora não pertencesse a todos e sequer fosse conhecido da gente que o habitava: os muitos povos – indígenas, escravos, brancos desgarrados -- dispersos em aldeamentos perdidos na vastidão de terras ignotas. É fora de dúvida que seria desconhecido o sentimento de nacionalidade, na ausência de nação, ou de pátria, na ausência mesmo de país: o Brasil, de fato, não existia. Passada a refrega, a província retornava ao statu quo ante, reavivadas as contradições impostas pelo sistema que dividia a gente entre uns poucos senhores e uma multidão de escravos, arrancados de sua terra, separados entre si pela diversidade de etnias, línguas e culturas, índios de variados estágios de cultura, expulsos de suas aldeias, servos, camponeses sem salário agregados à terra e subordinados ao poder ilimitável do latifúndio. É difícil de crer num comum sentimento de pertencimento entre senhores e escravos, entre proprietários e servos da terra.
A nação anda, cria ou descobre uma identidade e passa a vive-la; essa identidade é seu amálgama. A nação se forma e se aglutina em função dessa identidade que, ao mesmo tempo, é produto de sua história. Por enquanto digamos que a nação é um ente histórico; como a tradição, se faz com lembranças, invenções e esquecimentos.
Explorada pela metrópole empobrecida, que dela tudo dependia, a colônia abrigava uma burguesia mercantil que por seu turno explorava o trabalho compulsório de escravos africanos, de índios escravizados e trabalhadores brancos servilizados, a mão de obra que chega ao final do Império. Na República de “trabalhadores livres” seus sucessores serão os trabalhadores rurais, os camponeses sem terra, sem teto e sem salário, os “boias-frias”, de existência sub-humana, e proibidos de se organizarem.
Na colônia e no império o povo-nação, o brasileiro que não conta politicamente, o brasileiro produtor, é o que Darcy Ribeiro chamará de “implante ultramarino da expansão europeia” porque “não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país, ou importa”. Recrutada quer dizer caçada a ferro e fogo para ser escravizada, quando não dizimada pela ferocidade dos bandeirantes, pioneiros no etnocídio dos nativos da terra.
O que a historiografia chamaria de povo-nação surge da concentração da força de trabalho escrava, apresada mediante o massacre sem termo de populações indígenas e na condenação dos povos afrodescendentes à pobreza, e ao apartheid social.
Não se faz uma nação, nem se molda uma pátria, como pensam os militares: a nação é produto de um processo histórico insubstituível. Mas nada nos impede de tentar construir convergências, a não ser a subordinação dos partidos de esquerda e de centro esquerda à ordem burocrática que os afasta das questões que dizem respeito à iniquidade social com a qual estamos conformados, ao ponto de evitarmos a mobilização social e, até, o debate mobilizador.
Nosso governo, ainda perdido estrategicamente, apenado pelas contingências táticas que pressionam seu projeto original - que dizia respeito aos interesses da classe trabalhadora -, precisa de cuidar, para além do aqui e agora (sua sobrevivência formal), daquele que, na ausência de expressão mais exata, chamaria de “discurso à nação”, animando-a, organizando-a, politizando-a, colhendo com ela as diretrizes do que pode ser o Brasil. Penso que esta é postura que a “nação”, se pudesse falar, estaria cobrando de Lula.
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A nação anda, cria ou descobre uma identidade e passa a vive-la; essa identidade é seu amálgama. A nação se forma e se aglutina em função dessa identidade que, ao mesmo tempo, é produto de sua história. Por enquanto digamos que a nação é um ente histórico; como a tradição, se faz com lembranças, invenções e esquecimentos.
Explorada pela metrópole empobrecida, que dela tudo dependia, a colônia abrigava uma burguesia mercantil que por seu turno explorava o trabalho compulsório de escravos africanos, de índios escravizados e trabalhadores brancos servilizados, a mão de obra que chega ao final do Império. Na República de “trabalhadores livres” seus sucessores serão os trabalhadores rurais, os camponeses sem terra, sem teto e sem salário, os “boias-frias”, de existência sub-humana, e proibidos de se organizarem.
Na colônia e no império o povo-nação, o brasileiro que não conta politicamente, o brasileiro produtor, é o que Darcy Ribeiro chamará de “implante ultramarino da expansão europeia” porque “não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país, ou importa”. Recrutada quer dizer caçada a ferro e fogo para ser escravizada, quando não dizimada pela ferocidade dos bandeirantes, pioneiros no etnocídio dos nativos da terra.
O que a historiografia chamaria de povo-nação surge da concentração da força de trabalho escrava, apresada mediante o massacre sem termo de populações indígenas e na condenação dos povos afrodescendentes à pobreza, e ao apartheid social.
Não se faz uma nação, nem se molda uma pátria, como pensam os militares: a nação é produto de um processo histórico insubstituível. Mas nada nos impede de tentar construir convergências, a não ser a subordinação dos partidos de esquerda e de centro esquerda à ordem burocrática que os afasta das questões que dizem respeito à iniquidade social com a qual estamos conformados, ao ponto de evitarmos a mobilização social e, até, o debate mobilizador.
Nosso governo, ainda perdido estrategicamente, apenado pelas contingências táticas que pressionam seu projeto original - que dizia respeito aos interesses da classe trabalhadora -, precisa de cuidar, para além do aqui e agora (sua sobrevivência formal), daquele que, na ausência de expressão mais exata, chamaria de “discurso à nação”, animando-a, organizando-a, politizando-a, colhendo com ela as diretrizes do que pode ser o Brasil. Penso que esta é postura que a “nação”, se pudesse falar, estaria cobrando de Lula.
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O homem é as suas ações - Quando o conheci, na altura dos anos 1980 - campanha das diretas-já – Jaime Cardoso já carregava uma história de resistente, iniciada ainda nos bancos escolares, quando conheceu a prisão e a tortura, que deixariam marcas insuperáveis em seu corpo e em sua alma. Expatriado pela ditadura militar, continuou a luta no Chile de Allende e foi sofrer a dor dos presos no Estádio Nacional, em Santiago (1973), e, finalmente, o exilio na Suécia. Era, a partir daí, o que seria até o último dia: um sobrevivente, ou, sempre um guerreiro, como prefere Lilian, sua grande companheira, querida de seus amigos. No regresso ao Brasil seria nosso camarada, de Jamil Haddad, de Antônio Houaiss e meu, na tentativa de construção, no país redemocratizado, de um partido socialista. Fracassamos mas não nos arrependemos, ele ainda me dizia no leito de morte, quando nos despedimos. O Pe. Antônio Vieira, nos ensina no seu sermão da terceira dominga do advento: “O homem é as suas ações”. As ações de Jaime, o que ele fez com a vida, fizeram dele um exemplo.
Flávio Dino e o STF – Com a desejada nomeação do ministro Flávio Dino para a chamada Corte Suprema (como gosta de designá-la o presidente Lula), perde o governo, já pobre de quadros; ganha o STF, pois receberá algo de que muito carece: um advogado e um jurista de primeira água, um político de ideias, um militante socialista. As apreensões agora se voltam para seu substituto na Esplanada. Que não seja um retrocesso, como sugerem os nomes cogitados pela imprensa.
Henry Kissinger – Mais um genocida impune.
* Com a colaboração de Pedro Amaral.
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