Charge: Awantha Artigala/Cartoon Movement |
A Otan está lançando novos exercícios militares.
Mas não são exercícios militares quaisquer.
São as maiores operações militares da Otan desde a Guerra Fria. Seria melhor dizer desde a antiga Guerra Fria, pois há uma nova Guerra Fria em pleno desenvolvimento.
Essas operações se diferenciam das outras recentes por três fatores principais.
O primeiro é o número de tropas e equipamentos envolvidos nos exercícios. São mais de 90.000 efetivos que participarão das operações.
Além disso, mais de 50 navios, de porta-aviões a destroieres serão utilizados, bem como mais de 80 caças, helicópteros e drones, e pelo menos 1.100 veículos de combate, incluindo 133 tanques e 533 veículos blindados apoio à infantaria.
A última vez em que houve tanta mobilização da Otan foi na Operação Reforger, em 1988.
O segundo fator tange ao objetivo central das operações. Trata-se de demonstrar a capacidade da Otan de enviar rapidamente forças da América do Norte e de outras partes da aliança para reforçar a “defesa da Europa”.
O terceiro fator tange às localidades prioritárias das operações: a Polônia e as Repúblicas Bálticas, bem como a Noruega e a Romênia.
A exceção da Romênia, que faz fronteira com a Ucrânia, ao Leste, todos os outros três países fazem fronteira com a Rússia (a Noruega faz fronteira com a Rússia em seu extremo Norte). Assim, as operações cercariam a Rússia pelo Norte, Centro e Sul (indiretamente, via Romênia).
Embora a Rússia nem seja mencionada nas mensagens oficiais da Otan, é evidente que o alvo é esse país.
Apesar de o discurso da Otan seja o “de defesa dos aliados e da paz”, essas operações têm também um caráter ofensivo. Trata-se de ensaiar eventuais ataques e contra-ataques contra a Rússia, principalmente através da Polônia e das Repúblicas Bálticas.
Curiosamente, essas operações surgem no momento em que já ficou claro para todo o mundo que a chamada contraofensiva ucraniana e a estratégia global do Ocidente para “enfrentar a Rússia” fracassaram.
Com efeito, o Ocidente e a Otan avaliaram de modo incorreto que a intervenção militar russa na Ucrânia criaria grande oportunidade para enfraquecer muito a Rússia, militar, política e economicamente.
Foi por isso que o Ocidente, mais especificamente os EUA e o Reino Unido, bloqueou o acordo de paz que estava praticamente pronto já em março/abril de 2022.
Tal acordo previa, em essência, uma solução fundada nos Acordos de Minsk para a questão do Donbas e a neutralidade do território ucraniano.
A Otan e os EUA, contudo, acreditaram que as sanções draconianas contra a Rússia e o apoio militar bilionário para a Ucrânia seriam suficientes para “sangrar Moscou” e “derrubar Putin”. A vitória era inexorável.
Não obstante, quase dois anos após o início do conflito, a contraofensiva ucraniana não saiu do lugar e as sanções econômicas e financeiras, embora muito duras, não colocaram a Rússia “de joelhos”, como se pretendia.
A economia russa demonstrou muita resiliência.
Nem a economia russa nem a moeda russa entraram em colapso, tal qual se desejava.
Na realidade, as sanções contra a Rússia estão aumentando a autossuficiência interna desse enorme país e fortalecendo os laços econômicos de Moscou com países como China e a Índia.
O Ocidente parece não entender que houve significativos câmbios geoeconômicos, nas últimas duas décadas. Surgem, com celeridade, alternativas ao sistema financeiro dominante e à hegemonia do dólar, antes absoluta.
Em sentido oposto, a Ucrânia está cada vez mais dependente dos EUA e da Europa.
Hoje, depende inteiramente da ajuda militar e financeira do Ocidente. Desde 2022, os EUA mandaram quase US$ 76 bilhões em auxílio à Ucrânia. Em período semelhante, até novembro de 2023, Israel recebeu, também dos EUA, “apenas” US$ 3,3 bilhões.
Biden quer mandar adicionais US$ 50 bilhões, mas enfrenta muitas resistências no Congresso, notadamente no Partido Republicano
Caso Trump ganhe as próximas eleições, é provável que a “fonte seque” ou que se reduza consideravelmente.
Tudo isso em vão. A economia ucraniana reduziu-se em mais de um terço e a destruição e o número de mortos só aumentam.
Apesar de a Ucrânia não divulgar números precisos de seus mortos em combate, algumas fontes já falam em mais de 100 mil mortos e cerca de 200 mil feridos.
Claro que a Rússia também está sofrendo, mas tem muito mais reservas que a Ucrânia. Pode suportar o esforço de guerra por um tempo consideravelmente maior.
Ademais, há um certo cansaço geral com o conflito ucraniano. A opinião pública do mundo está hoje muito mais preocupada com Gaza do que com a Ucrânia.
Segundo a ONU, teriam morrido, até agora, 545 crianças na guerra da Ucrânia, que tem uma população de quase 44 milhões.
Evidentemente, a morte de apenas uma criança já seria algo chocante. Mas em Gaza já morreram mais de 10.000 crianças, numa população de pouco mais de 2 milhões, afora milhares de outras que estão desaparecidas, provavelmente enterradas nos imensos escombros.
Portanto, é natural que a comoção inicial com o conflito ucraniano, bastante insuflada pela mídia ocidental, tenha arrefecido muito.
Não se trata aqui de justificar um horror com outro bem maior.
Trata-se somente de explicar clara mudança na opinião pública, especialmente no Sul Global, e registrar que o conflito ucraniano parece muito mais centrado em objetivos militares que o conflito na Palestina.
Gaza, com seu horror indizível, ofuscou a Ucrânia, como se queixa Zelensky.
Ademais, a diferença de tratamento entre um conflito e o outro, por parte da mídia dominante e de muitos governos, torna clara a hipocrisia e os padrões duplos do Ocidente, no que se refere ao direito internacional humanitário e aos direitos humanos, de uma forma geral. Até mesmo os jovens dos EUA estão percebendo isso, o que traz muitos incômodos para Biden.
Em conclusão, não há quaisquer condições para uma vitória militar da Ucrânia.
Nesse quadro de impasse, só há duas alternativas.
A primeira é se investir num cessar-fogo e num ulterior tratado de paz, que não implique, é óbvio, rendição incondicional da Rússia, como propõe Zelensky.
A segunda seria aumentar a aposta na guerra, intensificando e até mesmo expandindo o conflito para outros países.
A segunda “alternativa” é totalmente irresponsável e poderia resultar numa grande catástrofe mundial.
Os exercícios da Otan, porém, parecem apontar para a segunda alternativa.
São uma provocação perigosa. Perigosa e, sobretudo, irracional. Assim como é irracional e perigoso também ficar insuflando o separatismo em Taiwan.
Mas não se pode esperar muita racionalidade em quem está obcecado em “derrubar Putin”, “vencer a Rússia” e, acima de tudo, em impedir uma reconfiguração mais profunda da ordem mundial.
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