sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A culpa da Europa na tragédia palestina

Ilustração: Malik Qraiqea
Por Jair de Souza


Os sionistas israelenses estão a ponto de concretizar um genocídio de mais envergadura do que aquele que o nazismo hitlerista tentou efetivar em seu devido momento. Ao buscar as palavras para redigir este texto, uma dúvida me permanece latente: serei capaz de concluí-lo antes de que a macabra tarefa de extermínio do povo palestino esteja consumada? Bem, não tenho como responder. De todos modos, vou me esforçar para terminá-lo a tempo de que sirva de alguma maneira como uma contribuição à luta dos que desejam pôr fim a este massacre tão cruel e perverso. Minha consciência jamais me perdoaria se viesse a ficar evidente que deixei de fazer o quanto deveria ter feito para apoiar a resistência deste povo que está sofrendo horrores inimagináveis nesta hora tão angustiante.

Para entender as ideologias ancoradas no racismo e no supremacismo racial, como o nazismo e o sionismo, por exemplo, é preciso estudar o colonialismo. E este, lamentavelmente, é um dos piores legados dos europeus para o conjunto da humanidade. Se, por um lado, ele teve um papel relevante para a acumulação de riquezas nos países europeus, por outro, foi fator determinante do alastramento da miséria e a exploração por todos os continentes de nosso planeta.

Desde o começo do século XV, as classes dominantes da Europa se lançaram em busca da conquista do resto do mundo a fim de subjugá-lo e colocá-lo a seu serviço. A partir de então, os europeus passaram a encarar os povos extracontinentais e as riquezas naturais em suas terras como meros instrumentos para servir aos interesses das metrópoles colonizadoras. Para que isso pudesse ser viável, seria preciso motivar os agentes colonizadores europeus com a invocação de sua superioridade racial e, ao mesmo tempo, convencer os colonizados de sua inata inferioridade. É no longo transcurso desta operação que os sentimentos racistas estruturados foram se estabelecendo.

Os europeus só vieram a reconhecer o quão nefasto é o racismo e seu enorme potencial para a instigação de genocídios e outras atrocidades depois que o problema aflorou com toda força no seio da própria Europa. Quando os europeus adeptos do nazismo começaram a executar ações genocidas contra outros grupos humanos compostos também por europeus, aí a questão do racismo passou a sensibilizar com mais intensidade a certos setores no próprio interior da Europa.

Não obstante, muito antes disto, o colonialismo europeu já tinha promovido monstruosos genocídios em todos os demais continentes aonde levaram sua empresa espoliadora. Nas três Américas (Norte, Central e Sul), várias civilizações foram dizimadas por completo, com quase todos os vestígios de sua existência extirpados da face da Terra. Pouco nos sobrou de civilizações inteiras, como é o caso dos Tainos, que habitavam a região do Caribe, assim como as grandes civilizações indígenas norte-americanas e as da América do Sul. Com relação a nossos ameríndios, em grande medida, os genocídios foram perpetrados até as últimas consequências, com a erradicação total de muitos desses povos. Porém, nada disso chegou a causar sérios constrangimentos morais entre as classes dominantes europeias.

Entretanto, ao deslanchar seu plano de “solução final” contra um grupo humano numericamente significativo composto quase inteiramente de europeus, os nazistas forçaram a questão a adquirir uma outra relevância. Sim, é importante que não haja dúvidas: os milhões de judeus que fizeram parte das vítimas do nazismo hitlerista eram quase todos europeus, gente descendente de populações que já viviam na Europa há muitos séculos, sem nenhuma vinculação direta com os antigos povos hebreus que habitaram a Palestina no passado.

Com a acachapante derrota imposta aos nazistas pelas forças da União Soviética e, em menor medida, os demais aliados na Segunda Guerra Mundial, o até então pouco expressivo movimento político sionista (criado e gerido por judeus ashkenazis de pura cepa europeia, sem ter nada a ver com os antigos hebreus, nem sequer a religião, pois a maioria deles nem religiosa era) viu nessa nova situação uma boa oportunidade de levar adiante um projeto colonialista de interesse de sua grande burguesia. A meta estipulada foi a de construir um Estado Judeu sob domínio total da burguesia sionista ashkenazi na região da Palestina. Mas, como já havia outro povo vivendo por lá há milênios, a solução seria expulsá-los daquela terra para abrir espaços para os que estavam chegando.

As comunidades socioculturais dos judeus europeus se viram, então, envolvidas em várias disputas por forças com diferentes interesses e motivações. Nas primeiras quatro décadas do século XX, predominavam as correntes que propugnavam a integração plena dos judeus nas sociedades em que viviam. É importante ressaltar que tinha havido uma substancial alteração na composição social dessas pessoas, com um aumento significativo de sua parcela de classe operária assalariada. Tinha ocorrido também um grande avanço das ideias socialistas entre essas comunidades. Em consequência, boa parte das lideranças do movimento operário daquele período tinha ascendência judaica.

No entanto, os sionistas, que defendiam a tese da transferência dos judeus para o Oriente Médio para criar ali um estado próprio sob sua absoluta hegemonia, ganharam muito alento depois da caída do regime nazista. Como atuavam em muita sintonia com os dirigentes dos países imperialistas daquele momento, a “expertise” colonial desses últimos foi posta à disposição dos sionistas. Em vista disso, seu projeto de edificar na Palestina um estado colonialista aliado aos interesses das grandes potências se viu bastante facilitado.

Tratava-se de um projeto nitidamente de cunho colonial, de cabo a rabo. Em função disto, aquelas elites socioeconômicas que até pouco antes exerciam feroz repressão às reivindicativas massas de trabalhadores judeus na Europa passaram a patrocinar a criação desse novo estado. Seus ganhos seriam dobrados: ao mesmo tempo em que se livravam do “incômodo” representado por essas massas judias, abria-se uma cabeça de ponte numa zona estratégica para os interesses geopolíticos dos países do imperialismo ocidental. Por sua vez, o povo palestino, que nunca tivera nenhuma participação em perseguições a judeus em nenhuma parte do mundo, foi escolhido para pagar a conta de uma indenização histórica que as classes dominantes da Europa deviam às comunidades judaicas.

Logicamente, não todos os judeus compactuaram com esse abjeto crime que estava sendo cometido contra o povo palestino. Desde o início da empreitada colonialista, várias vozes de peso provenientes de gente identificada com os judeus têm se levantado em protesto. Agora mesmo, quando se intensificam os horrores da carnificina e da espantosa matança de crianças palestinas pelas forças sionistas, algumas das mais destacadas figuras que têm aparecido na linha de frente da oposição a estes crimes são nomes vinculados a comunidades judaicas. Só para exemplificar, aqui no Brasil, vemos como o jornalista Breno Altman, a atriz Débora Bloch, o professor Samuel Braun e tantos outros não dão respiro aos agressores sionistas. São eles que, de alguma maneira, nos ajudam a entender que as maldades dos sionistas são coisas de sionistas, e não dos judeus como um todo.

Quanto às lideranças políticas dos estados europeus, creio estar evidente que todas elas têm a obrigação moral de colocar um freio na volúpia genocida do estado israelense. O povo palestino não pode continuar expiando a culpa por crimes que as classes dominantes do Ocidente cometeram contra os judeus no passado. Felizmente, o grosso das populações europeias e mesmo dos Estados Unidos parece já ter se dado conta disto, o que explica as gigantescas manifestações de solidariedade ao povo palestino em quase todas as grandes cidades da Europa. Agora, é hora de seus dirigentes políticos fazerem o mesmo.

As classes dominantes da Europa têm total responsabilidade moral pela desgraça que está assolando o povo palestino. O colonialismo sionista do Estado de Israel não pode seguir adiante em seu plano de aniquilação das populações nativas com o beneplácito das elites sociais dos países europeus.

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