Agricultura familiar. Foto: João Pompeu/MST |
Quando os portugueses chegaram ao Brasil no século 16, fiéis à doutrina da Igreja Católica, diziam que os indígenas não tinham alma. Assim, justificavam a colonização, a exploração e o genocídio de um povo. Consideravam como seres inferiores, praticamente sub-humanos, que deveriam ser subjugados e civilizados.
Mais pra frente, durante o período da escravidão dos negros africanos, foi retomada a ideia de que não tinham alma. Nesse processo de desumanização, justificavam a exploração, a violência e a morte, embora a Igreja Católica já reconhecesse formalmente que todos os seres humanos tinham alma.
Os deputados brasileiros decidiram que os sem-terra não têm alma. Assim como os indígenas que resistiram à violência da invasão portuguesa e os negros africanos que não admitiram a condição de escravização, aqueles que lutam hoje contra a chaga da pobreza, do latifúndio e da ordem imposta pelo poder vigente não têm a mesma condição dos outros.
Essa casta poderá receber um “tratamento” especial. Será diferente de todos os outros brasileiros, não terá mais a sua cidadania. Todos são iguais perante a lei, menos os trabalhadores rurais sem terra. Sem necessidade de qualquer processo, julgamento ou condenação.
A maioria absoluta da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei (709/2023) que retira direitos de quem participar de ocupações de terra, por meio da identificação da autoridade policial, com o objetivo de “acabar com o MST”.
Trezentos e trinta e seis deputados federais decidiram que os sem-terra não poderão participar do programa nacional de reforma agrária, não poderão receber benefícios como créditos rurais, não poderão entrar em programas de assistência social como Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada (BPC) e Minha Casa Minha Vida.
Rasga-se, mais uma vez, a Constituição de 1988, que foi fruto da luta pela redemocratização e da derrota política do regime militar. O texto contemplou parcialmente o latifúndio e os sem-terra. De um lado, garante o direito de propriedade, do outro, determina que atenda uma função social e prevê a desapropriação por interesse social. Esse arranjo foi a síntese de uma correlação de forças de ascensão do movimento popular nos anos 80 e da eleição de uma Assembleia Constituinte conservadora.
Agora, estamos sob uma nova correlação de forças, marcada pelo golpe do impeachment de 2016, pela prisão do Lula e a emergência da extrema-direita com a eleição de Jair Bolsonaro. Assim, avança uma agenda para acabar com as brechas abertas às forças populares no pacto democrático que vigorou na chamada “Nova República”.
De lá pra cá, o agronegócio se transformou em pilar da economia, tem uma ampla base no Congresso e faz uma intensa luta político-ideológica. Não se admite qualquer margem para quem se organiza e luta para pressionar pelo cumprimento da função social da propriedade.
A extrema-direita opera entre a hipocrisia da direita “não bolsonarista” e as contradições do governo Lula para avançar com sua agenda de corrosão da democracia e fechamento do regime político.
A direita que gosta de carregar o adjetivo de democrática ignorou nessa votação os termos da Constituição de 1988 e aderiu de forma desavergonhada à posição do bolsonarismo. Apenas o núcleo duro do campo progressista, 120 deputados, votaram contra o projeto.
O governo Lula parece rendido no Congresso e faz vistas grossas para as ideias de repressão à organização popular e criminalização da luta dos trabalhadores. Deixou a cargo dos deputados do campo progressista protestarem. Aposta na boa vontade do Senado de segurar o projeto e “terceirizou” para o STF a responsabilidade de classificar o texto como inconstitucional.
Sem contraponto, o latifúndio e o segmento mais atrasado do agronegócio, alinhados ideologicamente ao bolsonarismo, embora tenham sido derrotados com a vitória de Lula em 2022, sustentam sua agenda conservadora, atendem sua base político-social e se fortalecem na sociedade. Além do projeto aprovado na Câmara, fazem pressão para aprovar mais seis proposições que tramitam para perseguir os sem-terra.
Levou mais de quatro séculos para um papa pedir perdão pelos crimes cometidos em nome de Deus contra as populações originárias na América Latina e para que um presidente português pedisse desculpas ao assumir sua responsabilidade nos crimes da escravidão no Brasil. Uma coisa é certa: a luta pela terra não vai acabar enquanto o Brasil for o país da concentração fundiária, da pobreza e da desigualdade social. Que não sejam necessários mais quatro séculos para que se perceba a barbárie das ações daqueles que querem mais uma vez aniquilar quem luta e resiste.
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