quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Os algoritmos dos lamaçais

Por Jair de Souza

Os resultados das recém concluídas eleições municipais brasileiras voltaram a evidenciar um sério problema com o qual as forças do campo popular vêm se defrontando há alguns anos.

As expressivas votações recebidas por certos candidatos que nos eram quase que inteiramente desconhecidos não deixam de nos provocar estupor e indignação.

Em consequência, algumas indagações nos vêm à mente de imediato: Como foi possível que gente sobre quem nunca tínhamos ouvido falar tenha sido escolhida por um número tão significativo de eleitores? O que faz com que milhões de pessoas dêem a sujeitos que nos parecem tão claramente pouco dotados de cultura, honestidade, inteligência, ou quaisquer outras qualidades positivas, a responsabilidade de representá-los nas instâncias parlamentares? Se nós os vemos como típicos energúmenos, por que tantas outras pessoas optam por elegê-los, em lugar de votar em alguém de nosso campo?

Quero crer que as respostas para todas estas perguntas vão depender de nossa capacidade de compreender como se dá na atualidade o processo de difusão da comunicação e a base da formação ideológica em nossas sociedades. Para tal, vai-nos ser preciso ter mais clareza sobre como os instrumentos usados para a divulgação de valores evoluíram até chegarem a ser o que temos no dia de hoje.

Há muito tempo nós da esquerda aprendemos a ver na mídia corporativa hegemônica o principal partido político representante dos interesses do capital financeiro e do grande capital em geral.

No entanto, por isso do início da década de 1970, o avanço dos ideais do neoliberalismo por todo o planeta deu maior nitidez a esse papel político dos meios de comunicação. Poderíamos dizer que o ponto mais elevado desse processo de predominação capitaneado pelos meios tradicionais (jornais, rádio e televisão) foi alcançado nos primeiros anos do presente século.

Porém, analogamente ao que costuma suceder com todo e qualquer mecanismo de dominação social, depois de certo tempo, os grupos sociais que mais sofriam os efeitos negativos daquele tipo de dominação midiática foram desenvolvendo formas para se contrapor e neutralizar os efeitos dos instrumentos comunicacionais que os estavam submetendo.

Aqui no Brasil, as quatro vitórias presidenciais consecutivas da aliança do PT com outras forças não subordinadas por completo às diretrizes do complexo midiático foram um claro indicador de que essa mídia corporativa tradicional já não dispunha de condições para seguir exercendo de modo eficaz o papel de principal expoente da defesa dos interesses básicos do grande capital.

Assim, após o violento golpe recebido ao não terem podido levar seu candidato, José Serra, à vitória na disputa presidencial contra Dilma Rousseff, do PT, as classes dominantes brasileiras extraíram valiosas lições de sua derrota. Em função disto, decidiram investir fortemente em novas tecnologias de comunicação com vistas a impedir que sua hegemonia informacional e ideológica fosse suplantada.

Então, em pouco tempo, o campo popular se viu diante de ameaças de novos tipos. Foi assim que a luta de classes no campo ideológico começou a ser travada com muita intensidade através das redes sociais digitais. E, devido a nosso insuficiente domínio destas novas ferramentas, estamos enfrentando mais dificuldades em nosso trabalho comunicacional do que quando estávamos combatendo o poderio dos conglomerados que controlavam os meios impressos, o rádio e a televisão.

Atualmente, estamos sofrendo sérios reveses com os golpes que nos estão sendo desfechados por instrumentos que nos eram muito pouco familiares até bem pouco tempo atrás. Por isso, agora, estamos sendo desnorteados por meio das atividades desenvolvidas através de plataformas digitais, como Whatsapp, Twitter (agora X), Facebook, Youtube, Instagram, TikTok, entre outras.

A maré parecia ter virado decisivamente em favor do campo popular e, num primeiro momento, chegamos a crer que essas inovações tecnológicas nos ajudariam a desarticular a coluna vertebral da mídia corporativa, viabilizando a derrota contundente dos grandes conglomerados que atuavam efetivamente como partidos políticos do capital. Acreditávamos que, com o advento da internet, já não precisaríamos dispor de vultosos recursos para produzir e divulgar nossas mensagens, com nossas versões. Nutríamos a crença de que, a partir de então, de posse de um simples computador ou celular, qualquer um estaria em condições de levar ao conjunto da sociedade sua visão de mundo, ou seja, a despeito das aspirações das classes dominantes, as redes sociais haviam vindo para democratizar as comunicações.

Entretanto, não foi preciso passar muito tempo para concluirmos que tínhamos sido levados por ilusões sobre o funcionamento prático dessas redes sociais. Apesar de que, agora, cada um pudesse produzir suas próprias mensagens e colocá-las à disposição de todos, em qualquer lugar do planeta, o paradigma de funcionamento da comunicação via redes digitais era muito diferente daquilo a que estávamos familiarizados.

As tradicionais técnicas de mercado já não funcionam no atual esquema de comunicação das redes. Tínhamos em mente a idéia habitual de que os vendedores de uma mercadoria se empenham em tornar as qualidades de seus produtos conhecidas por todos para, com isso, atrair sua intenção e desejo. Contudo, atualmente, são as redes digitais que se dedicam a acumular informações sobre as qualidades e os defeitos de seus usuários e, a partir do conhecimento desses dados, oferecer a cada qual aquilo que eles já sabem que faz parte dos interesses e desejos de seu potencial consumidor.

Como, na presente etapa que estamos atravessando, as informações são elas mesmas mercadorias a serem comercializadas, são as mensagens que vão ao encontro de seus receptores. Logicamente, com a vantagem de que, agora, elas vão em busca daqueles que, sabidamente, já estão predispostos a assimilá-las.

Vários trabalhos já foram escritos para tratar da manipulação que a direita (em especial, a extrema direita) vem fazendo por meio das redes sociais em muitos pontos do mundo. Podemos mencionar as análises feitas sobre as movimentações políticas que tiveram lugar no Oriente Médio, na Europa Oriental e Ocidental (com destaque para o conhecido Brexit) e, até mesmo, nos Estados Unidos, com a eleição de Donald Trump para a presidência.

Porém, poderíamos citar o processo que levou Jair Bolsonaro a ser eleito presidente do Brasil como um modelo paradigmático de como as redes sociais digitais podem influir nos sentimentos e instintos de imensas massas humanas a ponto de levá-las a votar para o cargo político mais importante da nação numa pessoa cujo programa de governo elas sequer conheciam.

Mas, como não há nada tão ruim que não possa ser piorado, em 2023, um verdadeiro energúmeno como Javier Milei foi conduzido pela população argentina, em especial pela maioria de seus jovens, à presidência do país.

E, para provar que a manipulação das redes ainda não tinha atingido seu ápice, a expressiva votação obtida na recente disputa pela prefeitura da maior cidade do Brasil, São Paulo, por um verdadeiro delinqüente, com vários casos de envolvimento em crimes de roubo, falsificação e outras pilantragens, é mais uma indicação de que estamos longe de haver chegado ao ponto máximo.

Devido ao panorama relatado nas linhas anteriores, muitas críticas têm sido feitas aos políticos de esquerda por sua passividade em relação com as atividades nas redes digitais. Seria essa passividade a responsável pelo fato de a direita ter saído na dianteira e estar levando vantagem no uso dessas novas ferramentas tecnológicas. Segundo os formuladores dessas críticas, a esquerda estaria falhando, ao deixar que as forças direitistas naveguem sozinhas pelas redes digitais, enquanto a esquerda permanece aferrada à prática do jornalismo tradicional, com a crença de que, como havia ocorrido no passado, seus artigos e análises publicados em seus escassos meios impressos e seus vários portais na internet seriam capazes de se contrapor à prática da mídia corporativa.

Tecer críticas e reflexões a respeito de novos fenômenos sociais deve ser sempre considerado algo louvável. No entanto, é inegável que o campo popular jamais poderia ter saído à frente quanto ao uso e domínio dessas novas tecnologias. Em sociedades capitalistas, apenas as classes que detêm a posse dos meios de produção estão em condições de dar os passos iniciais nos processos de mudança tecnológica. Isto se torna ainda muito mais válido quando as inovações em questão envolvem recursos de magnitude que só os capitalistas podem dispor.

Efetivamente, o fator determinante em relação com o funcionamento das atuais redes digitais é a capacidade que as enormes plataformas oligopólicas têm para exercer pleno controle sobre a coleta de dados e a distribuição seletiva das mensagens. São esses fatores que conhecemos como algoritmos.

Nas novas condições a que estamos submetidos, esses oligopólios digitais sabem quase tudo sobre quase todos, sem que saibamos quase nada sobre eles. Portanto, aqueles que dominam os algoritmos têm o potencial de enviar a cada um de nós aquela mensagem que, devido aos dados que já nos extraíram, eles sabem que pode ter impacto sobre nós. Em outras palavras, eles sabem bem o que a gente pensa, sente, ama, odeia, gosta, desgosta, etc.

Por isso, por mais que os expoentes da extrema direita costumem ser notórios imbecis, reconhecidamente pouco dotados em termos intelectuais, eles sempre vão ter mais facilidade do que a esquerda em fazer uso exitoso dos algoritmos das redes sociais. A justificativa para tal é simples de entender. Não deveríamos nos esquecer que as mega-corporações que controlam as plataformas são de propriedade de capitalistas, cujos interesses, como não poderiam deixar de ser, estão ligados a sua classe.

É evidente que os donos desses oligopólios estão longe de se identificar com as aspirações do campo popular, de esquerda. Assim, seria uma imensa ingenuidade acreditar que a militância de esquerda possa vir a gozar do mesmo acesso aos tais algoritmos que gozam os expoentes da extrema direita, ou seja, de nazistas, fascistas, trumpistas, bolsonaristas, mileistas, etc. Estes últimos estão todos identificados com os interesses dos donos das plataformas. O fato de que sejam imbecis, idiotas, verdadeiros energúmenos, não diminui em nada sua utilidade para os donos do capital, muito pelo contrário. Eles serão sempre vistos como leais serviçais com os quais se podem contar, e descartar, em qualquer momento.

É certo que ainda não há uma resposta definitiva sobre como superar o problema que o domínio dos algoritmos representa. Em alguns países, como a China, a questão parece ter sido resolvida através da proibição da formação de oligopólios privados no controle das redes, exercendo o Estado o domínio das mesmas. Seguramente, é a solução para este problema o que, em boa medida, vai definir a evolução da luta ideológica nas próximas décadas.

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