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Como sempre, a mídia ocidental comemora, como se grande avanço fosse, a queda de mais uma “ditadura” do Oriente Médio. A de Assad, na Síria.
Foi assim no Iraque, no Afeganistão, na Líbia etc. Obviamente, “ditaduras” que não eram alinhadas aos interesses dos EUA e do Ocidente. Em todos esses casos, centenas de milhares de pessoas morreram e os países foram destruídos. Tudo, é claro, em nome da democracia e dos direitos humanos.
Já as ditaduras aliadas da região, como a da Arábia Saudita, Emirados Árabes, Catar, Kuwait etc. continuam protegidas e prestigiadas. Isso também vale, é claro, para o governo genocida de Netanyahu.
Como sempre, as análises sobre o tema na mídia brasileira e ocidental são, em geral, superficiais e baseadas numa visão maniqueísta, moralista, simplória, desinformada e francamente estúpida sobre a dinâmica dos conflitos do Oriente Médio.
Alguns, como Biden, até consideram que a queda de Assad representa uma “oportunidade histórica” de reconstrução para o povo sírio e para toda a região.
Essa é a piada geopolítica do ano.
Embora não se possa negar que o regime de Assad foi brutal, especialmente a partir de 2011, com a cruenta guerra civil, considerar que a substituição de Assad pelo Hay’at Tahrir Al-Sham (HTS) - um grupo terrorista assim considerado, com razão, pelo Conselho de Segurança da Nações Unidas - possa ser um “avanço” rumo à estabilidade e a democracia só sai da cabeça de completos beócios.
Obviamente, a questão é bem mais complexa e delicada.
Não por acaso, o ataque à Síria começou logo após o cessar-fogo no Líbano.
O líder do HTS, Al-Joulani, muito provavelmente não queria dar a impressão de que o ataque recebeu sinal verde do governo de Israel.
Sejamos realistas. O ataque do grupo terrorista salafista não deve ter se dado apenas em razão da “janela de oportunidade” criada pelo enfraquecimento Hezbollah e do Irã, apoiadores do regime de Assad.
É pouco provável que Al-Joulani tenha feito um movimento tão ousado sem alguma segurança de que não seria dizimado por Israel e pelos EUA. Ademais, o governo de Israel já havia bombardeado todas as bases do governo Assad. A ofensiva contra Assad era só uma questão de tempo. Sabia-se que a Rússia, empenhada na Ucrânia, não reagiria. Sabia-se também que o Irã, muito enfraquecido econômica e militarmente, não conseguiria opor resistência.
Não seria a primeira vez que o governo de Israel e o Deep State dos EUA dão apoio tático e provisório, em operações ocultas, a grupos terroristas sunitas, com objetivos geopolíticos mais amplos.
Isso aconteceu antes no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e na própria Síria. A Al-Qaeda e o Talibã surgiram, em última instância, como resultado do apoio aos mujaheedin afegãos, apoiados também pela Arábia Saudita. O ISIS lucrou, durante algum tempo, com as ações desestabilizadoras dos EUA na região.
É preciso considerar que, tanto para o governo de Netanyahu quanto para o Deep State estadunidense, o grande rival estratégico da região é o Irã, no que são apoiados pelas ditaduras sunitas do Oriente Médio.
A queda de Assad, aliado do Irã e da Rússia numa região tão volátil e sensível, representa, em um cálculo geopolítico de longo prazo, mais vantagens do que riscos.
Para o governo Netanyahu, em particular, a queda de Assad ajuda a pavimentar o projeto do “Grande Israel”, que se estenderia até o Sul da Síria. A Turquia, por sua vez, deverá avançar sobre território curdo da Síria, lucrando também com a queda de Assad.
Considere-se que o cenário mais provável para a Síria, agora, é semelhante ao da Líbia: um país dividido, fraco, falido e dominado por diferentes grupos armados, sem um governo central crível.
Um “país” desse tipo é mais facilmente manipulável e controlável. Não representa ameaça concreta de envergadura.
Os riscos concretos, no entanto, são para o próprio povo sírio.
A Síria é um país diverso, dividido entre alauítas, xiitas propriamente ditos, sunitas, drusos, curdos etc. Muito embora o regime de Assad tenha sido uma ditadura, ele era plural, em termos religiosos. A Síria era laica e a última representante do nacionalismo panárabe.
Achar que o HTS, um grupo derivado do ISIS, será plural e tolerante, principalmente em termos religiosos, parece-nos um erro crasso de avaliação.
Embora em Idlib o HTS não tenha sido particularmente brutal e intolerante, sua conquista de Damasco e a queda de Assad deverão cambiar sua atitude falsamente ponderada.
A euforia que se vê agora na Síria, principalmente por parte da população sunita, deverá ser substituída, em período breve, pela retomada da guerra civil, dessa vez de forma até mais cruenta. Não se pode descartar também massacres de alauítas e xiitas no território agora dominado pelo HTS. Em Aleppo, já houve execuções.
Como escreveu o jornalista Craig Murray, no artigo intitulado “The End of Pluralism in the Middle East”, quando toda a mídia corporativa e estatal no Ocidente divulga uma narrativa unificada de que os sírios estão muito felizes por serem libertados pelo HTS da tirania do regime de Assad - e não diz absolutamente nada sobre a tortura e execução de xiitas, e a destruição de decorações e ícones de Natal - deveria ser óbvio para todos de onde isso vem.
Além disso, a queda de Assad rompe definitivamente com o delicado equilíbrio tenso entre sunitas e xiitas, em todo o Oriente Médio.
O Iraque, um país dividido entre xiitas e sunitas, já está concentrando suas tropas na fronteira. A guerra poderá voltar para lá. Da mesma forma, poderá voltar para o Líbano. Lembre-se que o HTS se propõe-se a liberar todo o Levante, isto é, Síria, Líbano, Israel, Palestina, Jordânia e o Iraque.
Uma coisa parece certa. A “bola da vez” é o Irã.
Mesmo tendo atualmente um líder moderado, Masoud Pezeshkian, que quer negociações diplomáticas e o levantamento das sanções, o Irã é visto pelo pessoal que rodeia Trump e por Netanyahu, como a fonte de todos os problemas do Oriente Médio.
Por conseguinte, o agravamento das sanções e uma intervenção militar no Irã, com pesados bombardeios e, talvez, com limitadas invasões terrestres, não poderiam ser descartados.
Sem dúvida, com a queda de Assad e o avanço constante de Israel, a coisa tende a piorar. E muito.
A única “oportunidade” que se abre é para mais violência e conflito.
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