quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

América Latina segundo Sader e Pomar

Num indispensável balanço sobre a América Latina, dois renomados intelectuais avaliam as mudanças em curso no nosso continente. Emir Sader, em artigo publicado na Agência Carta Maior, mostra as diferenças entre a década neoliberal e os avanços progressistas do último período. Já Wladimir Pomar, em texto publicado no Correio da Cidadania, polemiza com as correntes políticas que não enxergam as mutações em curso. Reproduzo abaixo os dois textos:

A década da América Latina – Emir Sader

A década de 1990 foi das piores que a América Latina já viveu. A crise da dívida – com suas conseqüências: FMI, cartas de intenção, ajustes fiscais, etc. – e as ditaduras militares abriram o caminho para que se impusessem governos neoliberais em praticamente todo o continente. Passamos a ser a região do mundo com a maior quantidade de governos neoliberais e com suas modalidades mais radicais.

A capacidade de reação da América Latina se revelou na sua capacidade de reverter radicalmente esse quadro: passamos a ser a região que concentra os governos eleitos pela rejeição do neoliberalismo, que abriga processos de integração regional independentemente dos EUA, que promove formas inovadoras de integração fora da lógica mercantil.

Lideres latino-americanos como Lula, Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, entre outros, se projetaram internacionalmente por sua capacidade de encarnar as necessidades dos seus povos. A Bolívia, o Equador e a Venezuela se somaram a Cuba, com os países que – conforme a Unesco –, terminaram com o analfabetismo.

Os países que optaram pela integração regional e não por Tratados de Livre Comércio, expandiram suas economias, distribuíram renda, avançaram nos direitos sociais da sua população, estenderam notavelmente o mercado interno de consumo popular, diversificaram seu comércio exterior, aumentaram significativamente o comércio entre eles.

Na década anterior, a América Latina havia sido reduzida à intranscendência. Governantes subalternos – Menem, Fujimori, FHC, Carlos Andrés Perez, Carlos Salinas de Gortari – tinham aplicado mecanicamente o mesmo modelo neoliberal, enfraquecido o Estado, a soberania, as economias nacionais. Os governos dos países que assumiram os programas neoliberais não incomodavam ninguém, tinham reduzido nossos Estados a subseqüentes perdedores da globalização, que a aplaudiam, às custas da deteriorização ainda maior da situação dos povos dos nossos países.

A primeira década do novo século apresenta uma nova América Latina, com a maior quantidade de governos progressistas que o continente jamais teve. Com processos de integração regional fortalecidos – do Mercosul à Alba, do Banco do Sul à Unasul, do Conselho Sulamericano de Segurança ao Parlamento do Mercosul, entre outras iniciativas. Desenvolveu-se a Operação Milagre, que já permitiu recuperar a visão a mais de 2 milhões de pessoas, que de outra maneira não teriam possibilidade de recuperar a vista. Formaram-se novas gerações de médicos pobres na melhor medicina social do mundo – a cubana – nas Escolas Latino-americanas de Medicina.

As crises econômicas da década anterior, típicas do neoliberalismo, que debilitaram a capacidade de defesa dos Estados nacionais diante do capital especulativo, que promoveu, entre tantas outras crises, as do México de 1994, do Brasil de 1999 e da Argentina de 2001-02, devastaram as economias desses países. O Brasil de FHC deixou um país em recessão prolongada e profunda para Lula, a quem coube superar a crise com políticas de desenvolvimento econômico.

Na década que termina, os países latino-americanos que participam dos processos de integração regional – com destaque para o Brasil, a Bolívia, o Uruguai, o Equador – superaram a crise, desatada pelos países centrais do capitalismo, que ainda estão em recessão, que deverá se prolongar ainda por um bom tempo. Revelou a capacidade desses países de diversificar seu comércio exterior, de intensificar o comercio intra-regional e de seguir expandindo o mercado interno de consumo popular.

A América Latina mostra hoje ao mundo a cara – imposta pela predominância de governos progressistas – de um continente em expansão econômica, afirmando sua soberania – em questões econômicas, políticas e de segurança regional –, melhorando a situação social do povo, consolidando políticas internacionais que intervêm na decisão dos grandes temas mundiais. Foi, sem dúvida, esta primeira década do novo século, a década da América Latina, que se projeta para a segunda década como um dos exemplos de luta na superação do neoliberalismo e de construção de sociedades mais justas e solidárias.

2009: a direita em desespero – Wladimir Pomar

Não há nada de estranho acontecendo na América Latina e no Brasil. Apenas ocorreu que, depois de anos de desorganização econômica e domínio das políticas neoliberais, as forças populares, em aliança ou não com setores da pequena burguesia e da burguesia, chegaram ao governo em diferentes países da região, desde o início do século XXI.

A rigor, não houve qualquer revolução social. É evidente que se podem considerar as vitórias eleitorais do metalúrgico Lula e do indígena Evo como revoluções culturais. Dentro das regras de perpetuação no poder das antigas classes dominantes, elas colocaram no governo personalidades oriundas de classes sociais cuja ascensão política era impensável, não só para os dominadores de sempre, mas também para muitos que se proclamavam, e ainda se proclamam, revolucionários.

Em nenhum caso houve a conquista do poder de Estado, nem a bancarrota do antigo sistema de dominação econômica e social. Em todos os países em que as forças populares chegaram ao governo, não ocorreram mudanças nos demais poderes do Estado ou, quando se deram, foram tópicas. E o capitalismo permaneceu sendo o modo de produção dominante, mesmo na Venezuela, cujo governo pretende avançar na construção socialista.

Nas condições em que ocorreram as vitórias eleitorais das forças populares, dificilmente poderia ser diferente. As massas populares deram a seus representantes o mandato de consertar, dentro das regras pseudo-democráticas existentes, as mazelas mais evidentes de seus países, a exemplo da miséria, fome, falta de forças produtivas industriais desenvolvidas, criminalização dos movimentos populares, extrema concentração da riqueza e ausência de soberania nacional.

As massas populares ainda não estão convencidas de que é necessário destruir o antigo sistema estatal e construir um novo, em que os direitos de participação democrática (não apenas eleitoral) possam ser exercidos pela maioria da população. Esta realidade, em que as massas populares conseguiram eleger partidos populares para o governo central, é um problema prático e teórico novo na realidade latino-americana. Como novo é o fato de que esses governos populares terão que desenvolver as forças produtivas com o concurso e também com os problemas e o caos do mercado e da economia capitalista.

Este tem sido o horror dos setores da esquerda que não abandonaram o voluntarismo e acreditam que podem solucionar as questões sem levar em conta a realidade concreta. Não concordam que os governos democráticos e populares, do Brasil e de outros países da América Latina, tenham se tornado, ou estejam se tornando, bons administradores do capitalismo, num contexto histórico muito peculiar. E mal percebem que uma das principais características desse ano que está findando consiste no crescente desespero da direita burguesa contra essa situação ambígua.

As tentativas de desestabilização dos governos de esquerda, através de todos os meios imagináveis (e também inimagináveis), foram a tônica da ação da direita política desses países durante 2009, em Honduras culminando com um golpe de Estado. Para essa direita não importa que o sistema capitalista esteja sendo bem administrado e obtendo lucros.

Ela não aceita que governos dirigidos pela esquerda se diferenciem dos governos das antigas classes dominantes. Abomina como populistas as políticas e medidas de redistribuição menos desigual da renda e de tratamento dos movimentos sociais como movimentos legítimos, sem criminalizá-los. Também não aceita que a antiga subserviência ao Império esteja sendo substituída por políticas externas soberanas. Nem que o Estado, partilhado por estranhos, interfira de forma crescente em seus negócios, inclusive construindo novas empresas estatais.

Ela parece haver se convencido, ao contrário de alguns setores da própria esquerda, de que as políticas acima, combinadas com o apoio à economia familiar e a movimentos produtivos solidários, gerenciados pelos próprios trabalhadores, possam resultar, mais cedo ou mais tarde, no crescimento da mobilização popular e em mudanças indesejáveis para as classes dominantes que, perdurando por mais tempo, podem estimular tendências e consciência socialistas.

As vitórias da esquerda no Equador, Paraguai, Uruguai e Bolívia estão açulando o desespero da direita brasileira e latino-americana. O ataque da Folha de São Paulo, de cunho fascista, na tentativa de desqualificar Lula como principal cabo eleitoral de Dilma Rousseff, é apenas a parte visível do iceberg do reacionarismo da direita em relação a seu governo. Aliás, o mesmo reacionarismo que tentou desmembrar a Bolívia, vive inventando motivos para derrubar Chávez, militariza a Colômbia, busca emparedar Lugo e colocou Zelaya na geladeira.

Essa direita brasileira e latino-americana está sendo estimulada pelos fundamentalistas do Partido Republicano dos Estados Unidos, que consideram qualquer mudança à direita, no tabuleiro centro e sul-americano, uma ajuda à sua agressividade contra o governo Obama. Sonham com a reconquista direitista dos governos latino-americanos, para pressionar o governo Obama a ser menos frouxo com os impérios do mal.

Em tais condições, não será surpresa se 2009 for tido como preâmbulo de uma forte contra-ofensiva contra governos que uma parte da esquerda classifica de direitistas ou centristas.

Um comentário:

  1. Continuo achando que separar democratas e republicanos como se diferentes fossem para efeito de raciocínio, é um grande erro. Sou grato. Feliz 2010

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