Reproduzo artigo de Gilson Caroni, publicado no sítio Carta Maior:
Picles não combinam com morangos, mas o jornalismo brasileiro, em anos eleitorais, é a cozinha das combinações intragáveis. Se for do agrado do paladar do patrão, titulares de carteirinha de jornalista se esmeram em preparar saladas que levam o agridoce ao paroxismo. Como já observou Alberto Dines, em artigo publicado no Observatório da Imprensa, "ampliam-se as insignificâncias, criam-se pseudofatos (os famosos factóides), e até confere-se relevância política às matérias produzidas pelos marqueteiros nos seus comerciais. É a inversão total de simples preceitos jornalísticos".
Ao ocultar os dados da mais recente pesquisa Vox Populi que, demonstrando um consistente crescimento da candidatura de Dilma Rousseff, desmente as últimas projeções do Datafolha, O Globo e Folha de S.Paulo deixam claro que, dependendo do resultado, sondagens de opinião servem para tudo. Ou para nada, de acordo com a preferência da clientela.
Se o resultado é conveniente para os candidatos das corporações, números teoricamente transitórios são utilizados como tendência definitiva. Se ocorrer o contrário, trata-se de “um retrato do momento” com alta probabilidade de ser modificado até o dia do pleito. Não peçam análise séria em exercícios de imaginação militante.
Pelos caminhos da ficção, Franz Kafka atingiu a realidade da incoerência e da solidão humana. Pelos caminhos da redação partidarizada, se chega com facilidade a uma literatura ridícula, inversamente hilária à verdade factual que pretende distorcer. É uma experiência humorística que não pode ser ignorada, sob pena de perdermos excelente oportunidade de divertimento. Vejamos dois casos recentes. São excelentes exemplos de genuflexão permanente.
Ainda no sábado (3/4), a jornalista Renata Lo Prete, editora da coluna Painel, da Folha de S.Paulo, ciente de números que só seriam divulgados à noite pela TV Bandeirantes, lançou dúvidas sobre a metodologia da sondagem que desmontava o resultado obtido pelo instituto de pesquisa da família Frias:
"Chama a atenção, no questionário de pesquisa Vox Populi sobre a sucessão presidencial com campo em 30 e 31 de março, a inclusão de pergunta relativa aos cargos que os candidatos já ocuparam, quebrando o fluxo das respostas espontânea e estimulada sobre intenção de voto. Esse tipo de procedimento é conhecido por distorcer resultados".
É questionável se a ordem da apresentação dos temas (menção espontânea, conhecimento dos candidatos, menção estimulada) pode ou não influenciar nas respostas ao último quesito. Justamente por isso é leviano insinuar, como faz a colunista, que tal procedimento tenha produzido qualquer distorção na pesquisa do Vox Populi.
Consultar especialistas não faria mal algum se Lo Prete não soubesse o que querem seus senhores. Seria interessante lembrar que a lisura do processo eleitoral compreende principalmente a lisura da imprensa que o acompanha. E nesse ponto não resta dúvida que, para patrões e seus escribas, eleições ainda são um jogo que não pressupõe qualquer relação com amadurecimento democrático e cidadania ampliada.
Outro exemplo do burlesco travestido de análise pode ser encontrado no jornal O Globo. Em sua coluna de sexta-feira, 2/04, Merval Pereira oferece trechos memoráveis que merecem ser destacados. O servilismo, esteja ou não a serviço de fanfarras eleitorais, oferece imagens que nem de longe configuram um desenho ético ou qualquer propósito respeitável.
Tentando demonstrar traços de subalternidade na postura da ex-ministra Dilma Rousseff, o colunista não titubeia: "Ela chegou a usar 28 vezes o tratamento de ' senhor' ao se referir ao presidente Lula no seu discurso de despedida, o que é um sinal de subserviência não candidata com o papel de candidata à Presidência da República"
É compreensível o espanto de Merval. Afinal, trabalha em uma organização que obriga jornalista a chamar patrão de colega. Mas, tirando a força do hábito, qual seria o tratamento adequado a ser dispensado a um presidente? Para responder, bastava uma consulta aos acadêmicos que sistematizam suas reflexões diárias. Mas o tempo das manobras não permite perda de tempo com esse tipo de questão.
Em seguida, misturando números, épocas e fatos, o sincero partícipe das convicções de quem lhe paga o sal, entra em transe e soçobra diante da falta de senso lógico que ilumina os seus escritos: “Lula não tem se mostrado tão bom de voto quanto sua popularidade atual indica. Perdeu duas vezes no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso, o que certamente é sua maior frustração, e venceu duas vezes no segundo turno".
Impressionante! A popularidade de 2010 não foi capaz de eleger Lula em 1994 e 1998! Se Franz Kafka estivesse entre nós certamente abriria um largo sorriso ao ler o que vai na alma do jornalista global.Repetindo Odradeck, personagem de um breve conto seu, diria que "o conjunto se apresenta sem sentido, mas no seu gênero é completo"
Renata Lo Prete, Merval Pereira e Datafolha não ganhariam apenas sentido. A semelhança alucinante entre as receitas aventadas por eles e os detalhes que deformam os homens na literatura kafkaniana ganharia contorno definitivo.
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domingo, 4 de abril de 2010
Samir Amin e os modelos de desenvolvimento
Em recente entrevista ao jornal italiano Il Manifesto, o economista egípcio Samir Amin, um dos maiores intelectuais da atualidade, falou do seu novo livro “A life looking forward” – ainda não traduzido no Brasil. A entrevista é instigante e polêmica. Reproduzo-a abaixo:
Com a crise econômico-financeira, interrogamo-nos novamente sobre os limites da globalização neoliberal e, mais em geral, sobre os limites do capitalismo. Pode nos explicar em que sentido, como o senhor escreve em "The World We Wish to See", "o desenvolvimento mundial do capitalismo sempre foi polarizante", e o imperialismo representa não "uma fase do capitalismo, mas sim a característica permanente da sua expansão global"?
No início, adotei a tese de Lenin, segundo a qual o capitalismo dos monopólios constitui uma nova fase na história do capitalismo, anunciada no fim do século XIX, e o capitalismo se tornou uma forma de imperialismo apenas a partir daquela data. Em seguida, porém, acabei elaborando a ideia do caráter originariamente polarizante – portanto, de algum modo imperialista – do capitalismo desde as suas origens.
Considero, de fato, que a acumulação em escala mundial sempre existiu, de modo não exclusivo, mas prevalente, uma acumulação por expropriação. Uma expropriação que não se refere apenas à "acumulação primitiva" analisada por Marx e referida nas origens do capitalismo, mas que é sim um traço permanente na história do capitalismo realmente existente, a partir da época mercantilista. Aquele longo período de transição em que o papel central na mundialização, organizada em torno à conquista das Américas e à obtenção de escravos, assume a forma evidente e indiscutível da acumulação por expropriação. Essa acumulação se estende depois ao longo de todo o século XIX e se radicaliza com a formação dos monopólios, que favorecem a exportação de capital em uma escala muito mais ampla, "instalando" segmentos do sistema capitalista mundializado nas colônias "de além mar", nas semicolônias, nas colônias da América Latina.
De outro lado, o fato de a polarização ser imanente ao desenvolvimento mundializado do capitalismo, acompanhando-o desde as origens, é demonstrado por um simples dado: até aproximadamente 1820, o PIB per capita da China era superior ao PIB médio da Europa avançada. Entre 1820 e 1900, passa-se ao invés de uma relação 1-1 a uma relação 1-20, e, de 1900 ao ano 2000, de 1-20 a 1-50.
Ainda em "Oltre il capitalismo senile", o senhor escrevia que, justamente por causa do seu "calcanhar de Aquiles" – a dimensão financeira –, o sistema capitalista estaria preparando "uma iminente catástrofe financeira". Ora, a iminência é realidade: o que o senhor entende quando defende que a crise atual é "a crise do capitalismo imperialista dos oligopólios", organicamente ligados à financeirização do sistema?
Prosseguindo na direção da pesquisa inaugurada pelo livro de Sweezy e Baran de 1966, "Monopoly Capital" – a primeira formulação coerente da transformação qualitativa do capitalismo ocorrida no final do século XIX com a instituição dos monopólios – localizei o impacto de duas grandes ondas no processo de monopolização: a primeira, tem início no final do século XIX e se estende até 1945, a segunda começa nos anos 60 do século passado e, portanto, não coincide de fato com a crise financeira de 2008.
Nessa segunda onda, o grau de monopolização assume um relevo sem comparações, o que me leva a considerar que o capitalismo contemporâneo é um capitalismo dos oligopólios generalizados, mundializados e financeirizados. Oligopólios generalizados porque controlam a economia no seu conjunto (além do âmbito político e cultural), até aqueles setores não diretamente monopolizados. E mundializados também por efeito das políticas liberais e neoliberais dos anos 80, 90 e 2000.
Agora, no que se refere à financeirização, também da "esquerda", boa parte das análises sobre o sistema financeiro tendem a separar a financeirização, artificial e negativa, do bom capitalismo produtivo. Não é assim: os dois aspectos vão lado a lado. Os oligopólios são financeirizados justamente no sentido de que não há de um lado um setor financeirizado, o dos bancos, dos seguros, dos fundos de pensão, e de outro um setor produtivo sadio. Pelo contrário, são os próprios oligopólios que são proprietários das grandes empresas produtivas e, ao mesmo tempo, das grandes instituições financeiras. E, por sua vez, esses oligopólios têm necessidade da expansão financeira para assegurarem o domínio sobre a economia e sobre a sociedade inteira.
A "sobreposição", como Baran já defendia, é total. E tem razíes em um sistema que leva por si mesmo à estagnação relativa, particularmente marcada a partir de 1970, quando nos países da Tríade imperialista (EUA, Europa e Japão) verificou-se uma drástica redução das taxas de lucro, de crescimento e de investimento. É essa estagnação – um excesso de superávit com relação à possibilidade de expansão do capital para ampliar e incrementar os investimentos produtivos – que alimenta as bolhas financeiras, que não são o produto de derivações ou desregulamentações, mas sim uma exigência imanente do sistema capitalista contemporâneo: a financeirização é a única maneira à disposição dos capitalistas dos oligopólios generalizados e mundializados para superar a tendência profunda e intrínseca à estagnação.
Por isso, estou convencido de que só nos resta, como alternativa, sair desse capitalismo em crise. Ou, mais modestamente, começar a se dirigir à saída, rumo a outro modelo de desenvolvimento, cuja fisionomia ainda não está clara e para cuja definição serão necessários 50, 100 anos.
Em um recente artigo, o senhor afirma que uma mundialização negociada passa pelo "desengajamento" para a construção de uma economia nacional autocentrada, mas não autárquica. Uma economia que – o senhor escreve em "A Life Looking Forward" – "encontraria sérios obstáculos se não fosse reforçada por formas de integração regional capazes de aumentar seu efeito positivo". Como combinar estratégias de desengajamento do sistema global com a construção de blocos regionais?
Não existem alternativas praticáveis ao desenvolvimento autocentrado, que subordinem as relações externas às exigências de transformação interna, as mais progressistas possíveis. Não se trata de simples autarquia, mas da subversão da lógica atual: em vez de se adequar, em vez de se curvar às tendências dominantes em escala mundial, é preciso agir para que sejam essas tendências se adequem às exigências internas. Esse é o sentido que eu atribuo às iniciativas independentes por parte dos países do Sul do mundo. As razões para fazer isso são evidentes na maior parte dos casos. Talvez não para os três novos gigantes econômicos: China, Índia e Brasil, que, cada um por si, podem contar com um peso equivalente ao de uma grande região, e que por isso pareceria que não têm necessidade de se confiar a acordos sub-regionais e inter-regionais.
Porém, esses países também acusam déficits, basta pensar na escassez dos recursos naturais, energéticos em primeiro lugar, dos quais têm necessidade. E isso vale com maior razão para as outras regiões, para os países do sudeste asiático, do mundo árabe, da África subsaariana, da América Latina espanhola. Em todos esses casos, os acordos sub-regionais servem para instituir, por via negociada, formas de complementariedade, que se articulem em mais planos.
Por exemplo, o das tecnologias: hoje, os países do Sul são capazes – nem todos da mesma forma – de desenvolver capacidade tecnológica sem ter que necessariamente submeter-se ao protecionismo do direito industrial promovido pela Organização Mundial do Comércio. O mesmo deveria ocorrer com as infraestruturas, para a localização de estratégias de complementariedade industrial, a partir das indústrias de base, obviamente, mas também para as indústrias do grande consumo, para o acesso aos recursos naturais.
A propósito dos recursos naturais: o senhor defende que, "longe de estar resolvida, a 'questão agrária' está mais do que nunca no centro dos desafios que a humanidade deverá enfrentar no século XX". Por que o senhor considera que o capitalismo, "pela sua própria natureza, é incapaz de resolvê-la" e por que acredita que ele sabe apenas oferecer a perspectiva de um planeta de favelas?
A acumulação por expropriação que caracteriza o capitalismo histórico, o que, no início do século XIX foi se cristalizando em torno ao triângulo Londres-Amsterdã-Paris, não se refere apenas aos povos das Américas, mas também aos agricultores europeus. O modelo é o das "enclosures" da Grã-Bretanha, a expropriação dos agricultores ingleses e irlandeses, que sofreram, os primeiros da Europa, uma forma de apropriação privada da terra, depois generalizada ao continente europeu.
Esse modelo histórico teria tido consequências explosivas se não fosse acompanhado por aquele enorme "aparato de segurança" e "válvula de escape" constituída pelo sistema das migrações às Américas: os processos migratórios permitiram que a Europa construísse em outro lugar uma outra Europa, senão mais importante em termos de população do que a do continente.
Mas se considerarmos os outros continentes, a Ásia, a África, a América Latina, onde hoje vivem 75% da população mundial, da qual metade é agrícola, nos damos conta de que esse sistema é inaceitável e ineficaz. Como demonstra o recente nascimento de um planeta de favelas: os agricultores expulsos das terras não podem ser "absorvidos" pelos mecanismos da moderna industrialização e não podem recorrer de modo maciço às migrações. A solução à questão agrária proposta pelo modelo capitalista requereria que se concedesse à Ásia, à África e à América Latina pelo menos outras quatro Américas.
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Com a crise econômico-financeira, interrogamo-nos novamente sobre os limites da globalização neoliberal e, mais em geral, sobre os limites do capitalismo. Pode nos explicar em que sentido, como o senhor escreve em "The World We Wish to See", "o desenvolvimento mundial do capitalismo sempre foi polarizante", e o imperialismo representa não "uma fase do capitalismo, mas sim a característica permanente da sua expansão global"?
No início, adotei a tese de Lenin, segundo a qual o capitalismo dos monopólios constitui uma nova fase na história do capitalismo, anunciada no fim do século XIX, e o capitalismo se tornou uma forma de imperialismo apenas a partir daquela data. Em seguida, porém, acabei elaborando a ideia do caráter originariamente polarizante – portanto, de algum modo imperialista – do capitalismo desde as suas origens.
Considero, de fato, que a acumulação em escala mundial sempre existiu, de modo não exclusivo, mas prevalente, uma acumulação por expropriação. Uma expropriação que não se refere apenas à "acumulação primitiva" analisada por Marx e referida nas origens do capitalismo, mas que é sim um traço permanente na história do capitalismo realmente existente, a partir da época mercantilista. Aquele longo período de transição em que o papel central na mundialização, organizada em torno à conquista das Américas e à obtenção de escravos, assume a forma evidente e indiscutível da acumulação por expropriação. Essa acumulação se estende depois ao longo de todo o século XIX e se radicaliza com a formação dos monopólios, que favorecem a exportação de capital em uma escala muito mais ampla, "instalando" segmentos do sistema capitalista mundializado nas colônias "de além mar", nas semicolônias, nas colônias da América Latina.
De outro lado, o fato de a polarização ser imanente ao desenvolvimento mundializado do capitalismo, acompanhando-o desde as origens, é demonstrado por um simples dado: até aproximadamente 1820, o PIB per capita da China era superior ao PIB médio da Europa avançada. Entre 1820 e 1900, passa-se ao invés de uma relação 1-1 a uma relação 1-20, e, de 1900 ao ano 2000, de 1-20 a 1-50.
Ainda em "Oltre il capitalismo senile", o senhor escrevia que, justamente por causa do seu "calcanhar de Aquiles" – a dimensão financeira –, o sistema capitalista estaria preparando "uma iminente catástrofe financeira". Ora, a iminência é realidade: o que o senhor entende quando defende que a crise atual é "a crise do capitalismo imperialista dos oligopólios", organicamente ligados à financeirização do sistema?
Prosseguindo na direção da pesquisa inaugurada pelo livro de Sweezy e Baran de 1966, "Monopoly Capital" – a primeira formulação coerente da transformação qualitativa do capitalismo ocorrida no final do século XIX com a instituição dos monopólios – localizei o impacto de duas grandes ondas no processo de monopolização: a primeira, tem início no final do século XIX e se estende até 1945, a segunda começa nos anos 60 do século passado e, portanto, não coincide de fato com a crise financeira de 2008.
Nessa segunda onda, o grau de monopolização assume um relevo sem comparações, o que me leva a considerar que o capitalismo contemporâneo é um capitalismo dos oligopólios generalizados, mundializados e financeirizados. Oligopólios generalizados porque controlam a economia no seu conjunto (além do âmbito político e cultural), até aqueles setores não diretamente monopolizados. E mundializados também por efeito das políticas liberais e neoliberais dos anos 80, 90 e 2000.
Agora, no que se refere à financeirização, também da "esquerda", boa parte das análises sobre o sistema financeiro tendem a separar a financeirização, artificial e negativa, do bom capitalismo produtivo. Não é assim: os dois aspectos vão lado a lado. Os oligopólios são financeirizados justamente no sentido de que não há de um lado um setor financeirizado, o dos bancos, dos seguros, dos fundos de pensão, e de outro um setor produtivo sadio. Pelo contrário, são os próprios oligopólios que são proprietários das grandes empresas produtivas e, ao mesmo tempo, das grandes instituições financeiras. E, por sua vez, esses oligopólios têm necessidade da expansão financeira para assegurarem o domínio sobre a economia e sobre a sociedade inteira.
A "sobreposição", como Baran já defendia, é total. E tem razíes em um sistema que leva por si mesmo à estagnação relativa, particularmente marcada a partir de 1970, quando nos países da Tríade imperialista (EUA, Europa e Japão) verificou-se uma drástica redução das taxas de lucro, de crescimento e de investimento. É essa estagnação – um excesso de superávit com relação à possibilidade de expansão do capital para ampliar e incrementar os investimentos produtivos – que alimenta as bolhas financeiras, que não são o produto de derivações ou desregulamentações, mas sim uma exigência imanente do sistema capitalista contemporâneo: a financeirização é a única maneira à disposição dos capitalistas dos oligopólios generalizados e mundializados para superar a tendência profunda e intrínseca à estagnação.
Por isso, estou convencido de que só nos resta, como alternativa, sair desse capitalismo em crise. Ou, mais modestamente, começar a se dirigir à saída, rumo a outro modelo de desenvolvimento, cuja fisionomia ainda não está clara e para cuja definição serão necessários 50, 100 anos.
Em um recente artigo, o senhor afirma que uma mundialização negociada passa pelo "desengajamento" para a construção de uma economia nacional autocentrada, mas não autárquica. Uma economia que – o senhor escreve em "A Life Looking Forward" – "encontraria sérios obstáculos se não fosse reforçada por formas de integração regional capazes de aumentar seu efeito positivo". Como combinar estratégias de desengajamento do sistema global com a construção de blocos regionais?
Não existem alternativas praticáveis ao desenvolvimento autocentrado, que subordinem as relações externas às exigências de transformação interna, as mais progressistas possíveis. Não se trata de simples autarquia, mas da subversão da lógica atual: em vez de se adequar, em vez de se curvar às tendências dominantes em escala mundial, é preciso agir para que sejam essas tendências se adequem às exigências internas. Esse é o sentido que eu atribuo às iniciativas independentes por parte dos países do Sul do mundo. As razões para fazer isso são evidentes na maior parte dos casos. Talvez não para os três novos gigantes econômicos: China, Índia e Brasil, que, cada um por si, podem contar com um peso equivalente ao de uma grande região, e que por isso pareceria que não têm necessidade de se confiar a acordos sub-regionais e inter-regionais.
Porém, esses países também acusam déficits, basta pensar na escassez dos recursos naturais, energéticos em primeiro lugar, dos quais têm necessidade. E isso vale com maior razão para as outras regiões, para os países do sudeste asiático, do mundo árabe, da África subsaariana, da América Latina espanhola. Em todos esses casos, os acordos sub-regionais servem para instituir, por via negociada, formas de complementariedade, que se articulem em mais planos.
Por exemplo, o das tecnologias: hoje, os países do Sul são capazes – nem todos da mesma forma – de desenvolver capacidade tecnológica sem ter que necessariamente submeter-se ao protecionismo do direito industrial promovido pela Organização Mundial do Comércio. O mesmo deveria ocorrer com as infraestruturas, para a localização de estratégias de complementariedade industrial, a partir das indústrias de base, obviamente, mas também para as indústrias do grande consumo, para o acesso aos recursos naturais.
A propósito dos recursos naturais: o senhor defende que, "longe de estar resolvida, a 'questão agrária' está mais do que nunca no centro dos desafios que a humanidade deverá enfrentar no século XX". Por que o senhor considera que o capitalismo, "pela sua própria natureza, é incapaz de resolvê-la" e por que acredita que ele sabe apenas oferecer a perspectiva de um planeta de favelas?
A acumulação por expropriação que caracteriza o capitalismo histórico, o que, no início do século XIX foi se cristalizando em torno ao triângulo Londres-Amsterdã-Paris, não se refere apenas aos povos das Américas, mas também aos agricultores europeus. O modelo é o das "enclosures" da Grã-Bretanha, a expropriação dos agricultores ingleses e irlandeses, que sofreram, os primeiros da Europa, uma forma de apropriação privada da terra, depois generalizada ao continente europeu.
Esse modelo histórico teria tido consequências explosivas se não fosse acompanhado por aquele enorme "aparato de segurança" e "válvula de escape" constituída pelo sistema das migrações às Américas: os processos migratórios permitiram que a Europa construísse em outro lugar uma outra Europa, senão mais importante em termos de população do que a do continente.
Mas se considerarmos os outros continentes, a Ásia, a África, a América Latina, onde hoje vivem 75% da população mundial, da qual metade é agrícola, nos damos conta de que esse sistema é inaceitável e ineficaz. Como demonstra o recente nascimento de um planeta de favelas: os agricultores expulsos das terras não podem ser "absorvidos" pelos mecanismos da moderna industrialização e não podem recorrer de modo maciço às migrações. A solução à questão agrária proposta pelo modelo capitalista requereria que se concedesse à Ásia, à África e à América Latina pelo menos outras quatro Américas.
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Merval Pereira, o Freud de O Globo
Reproduzo o irônico artigo de Brizola Neto, publicado no seu excelente blog:
O Conselho Nacional de Psicologia devia dar um título honorário – ou uma queixa por exercício ilegal da profissão – ao colunista Merval Pereira, por sua coluna deste sábado em O Globo.
Eu, que não sou psicólogo e também não sou aspirante a lorde inglês, dei foi boas risadas.
Vejam que pérolas do “jornalismo”:
“Ela (Dilma) chegou a usar 28 vezes o tratamento de “senhor” ao se referir ao presidente Lula em seu discurso de despedida do ministério, o que é um sinal de subserviência não com o papel de candidata à presidência da República”.
Como é que se trata o presidente da República numa cerimônia oficial e pública? “Aí, xará“? “Mano“? “Cara“? “Ô, psit“?
Ou ela deveria chamá-lo de “Doutor”, como Merval e outros chamavam Roberto Marinho, que era tão diplomado quanto Lula?
Mas tem mais:
“Pois ele (Lula) não está escondendo a dificuldade com que está lidando com a perspectiva do fim do poder”.
Aí, xará, senti firmeza…Dignóstico legal, profundo, resultado de horas de análise. Qual seria o dignóstico do Dr. Sigmund Merval sobre os arreganhos de Fernando Henrique que, para desespero de José Serra, tenta ser uma voz de oposição – reconheça-se a sua honestidade – a Lula? Merval – não posso chamar de senhor Merval para não ser submisso – deveria ler sobre a “Síndrome do Ninho Vazio”, que acomete pais quando os filhos criam asas e se vão, tucaninhos donos de seus próprios bicos.
Mas você pensa que acabou?
“Encarar a alternância de poder como uma derrota é uma maneira de querer continuar no poder eternamente (…)”
Uai, um presidente, um governador, um prefeito é vitorioso se a oposição ganha a eleição? Não é derrota? Pode não ser o fim do mundo, pode não ser o desastre que, neste caso, é… Mas que é derrota, é! Nada a ver com não aceitar o resultado, a manifestação do eleitor. Mas achar que perder eleição é vitória e não derrota, é caso de ir pro divã ou, então, para o palanque do adversário.
"O presidente Lula está parecendo até aqueles funcionários que não querem se aposentar, mesmo que a lei os obrigue a isso"
Pronto, aí está a terapêutica mervalina para o futuro ex-presidente: ir jogar truco em São Bernardo. Mas não vai dar certo, truco é jogo gritado, se passa a mão no queixo para marcar o Rei barbudo e se manda o Zap (quatro de paus, obrigado) na testa…
Melhor não, Dr. Merval. O senhor, como psicólogo, deveria saber que a ociosidade é má conselheira. Lula vai ter muito trabalho ajudando Dilma a enfrentar os colunistas que querem descartar o Lula, porque acham que a Dama é fraca no truco e perderá para os valetes de Serra.
“Se Dilma vencer, vai querer tutelá-la. Se vencer Serra, Lula vai comandar uma oposição ferrenha contra aquele que o tirou do poder.”
Ué, “aquele que o tirou do poder”? Não era aposentadoria, não era “vitória da alternância de poder”?
Lula não vai comandar “uma oposição ferrenha”. Nem vai exercer tutela. Isso é vício de quem só enxerga as relações humanas como de “chefe” e subordinado. Coisa de quem não tem causa, da qual todos somos servos, e não há posição de maior altivez do que ser servo de idéias. Fica quilômetros acima da de ser lorde na corte dos poderosos.
Mas é natural que se pense assim. Quem se formou no ambiente da subserviência ao poder não consegue ver senão a ambição como motor do comportamento humano.
Freud, o verdadeiro, explica.
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O Conselho Nacional de Psicologia devia dar um título honorário – ou uma queixa por exercício ilegal da profissão – ao colunista Merval Pereira, por sua coluna deste sábado em O Globo.
Eu, que não sou psicólogo e também não sou aspirante a lorde inglês, dei foi boas risadas.
Vejam que pérolas do “jornalismo”:
“Ela (Dilma) chegou a usar 28 vezes o tratamento de “senhor” ao se referir ao presidente Lula em seu discurso de despedida do ministério, o que é um sinal de subserviência não com o papel de candidata à presidência da República”.
Como é que se trata o presidente da República numa cerimônia oficial e pública? “Aí, xará“? “Mano“? “Cara“? “Ô, psit“?
Ou ela deveria chamá-lo de “Doutor”, como Merval e outros chamavam Roberto Marinho, que era tão diplomado quanto Lula?
Mas tem mais:
“Pois ele (Lula) não está escondendo a dificuldade com que está lidando com a perspectiva do fim do poder”.
Aí, xará, senti firmeza…Dignóstico legal, profundo, resultado de horas de análise. Qual seria o dignóstico do Dr. Sigmund Merval sobre os arreganhos de Fernando Henrique que, para desespero de José Serra, tenta ser uma voz de oposição – reconheça-se a sua honestidade – a Lula? Merval – não posso chamar de senhor Merval para não ser submisso – deveria ler sobre a “Síndrome do Ninho Vazio”, que acomete pais quando os filhos criam asas e se vão, tucaninhos donos de seus próprios bicos.
Mas você pensa que acabou?
“Encarar a alternância de poder como uma derrota é uma maneira de querer continuar no poder eternamente (…)”
Uai, um presidente, um governador, um prefeito é vitorioso se a oposição ganha a eleição? Não é derrota? Pode não ser o fim do mundo, pode não ser o desastre que, neste caso, é… Mas que é derrota, é! Nada a ver com não aceitar o resultado, a manifestação do eleitor. Mas achar que perder eleição é vitória e não derrota, é caso de ir pro divã ou, então, para o palanque do adversário.
"O presidente Lula está parecendo até aqueles funcionários que não querem se aposentar, mesmo que a lei os obrigue a isso"
Pronto, aí está a terapêutica mervalina para o futuro ex-presidente: ir jogar truco em São Bernardo. Mas não vai dar certo, truco é jogo gritado, se passa a mão no queixo para marcar o Rei barbudo e se manda o Zap (quatro de paus, obrigado) na testa…
Melhor não, Dr. Merval. O senhor, como psicólogo, deveria saber que a ociosidade é má conselheira. Lula vai ter muito trabalho ajudando Dilma a enfrentar os colunistas que querem descartar o Lula, porque acham que a Dama é fraca no truco e perderá para os valetes de Serra.
“Se Dilma vencer, vai querer tutelá-la. Se vencer Serra, Lula vai comandar uma oposição ferrenha contra aquele que o tirou do poder.”
Ué, “aquele que o tirou do poder”? Não era aposentadoria, não era “vitória da alternância de poder”?
Lula não vai comandar “uma oposição ferrenha”. Nem vai exercer tutela. Isso é vício de quem só enxerga as relações humanas como de “chefe” e subordinado. Coisa de quem não tem causa, da qual todos somos servos, e não há posição de maior altivez do que ser servo de idéias. Fica quilômetros acima da de ser lorde na corte dos poderosos.
Mas é natural que se pense assim. Quem se formou no ambiente da subserviência ao poder não consegue ver senão a ambição como motor do comportamento humano.
Freud, o verdadeiro, explica.
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A antiga imprensa, enfim, assume partido
Reproduzo artigo de Jorge Furtado, publicado em seu blog:
Quem estava prestando atenção já percebeu faz tempo: a antiga imprensa brasileira virou um partido político, incorporando as sessões paulistas do PSDB (Serra) e do PMDB (Quércia), e o DEM (ex-PFL, ex-Arena).
A boa novidade é que finalmente eles admitiram ser o que são, através das palavras sinceras de Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional dos Jornais e executiva do jornal Folha de S. Paulo, em declaração ao jornal O Globo:
“Obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada.”
A presidente da Associação Nacional dos Jornais constata, como ela mesma assinala, o óbvio: seus associados “estão fazendo de fato a posição oposicionista (sic) deste país”. Por que agem assim? Porque “a oposição está profundamente fragilizada”.
A presidente da associação/partido não esclarece porque a oposição “deste país” estaria “profundamente fragilizada”, apesar de ter, como ela mesma reconhece, o irrestrito apoio dos seus associados (os jornais).
A presidente da associação/partido não questiona a moralidade de seus filiados assumirem a “posição oposicionista deste país” enquanto, aos seus leitores, alegam praticar jornalismo. Também não questiona o fato de serem a oposição ao governo “deste país” mas não aos governos do seu estado (São Paulo).
Propriedades privadas, gozando de muitas isenções de impostos para que possam melhor prestar um serviço público fundamental, o de informar a sociedade com a liberdade e o equilíbrio que o bom jornalismo exige, os jornais proclamam-se um partido, isto é, uma “organização social que se fundamenta numa concepção política ou em interesses políticos e sociais comuns e que se propõe alcançar o poder”.
O partido da imprensa se propõe a alcançar o poder com o seu candidato, José Serra. Trata-se, na verdade, de uma retomada: Serra, FHC e seu partido, a imprensa, estiveram no poder por oito anos. Deixaram o governo com desemprego, juros, dívida pública, inflação e carga tributária em alta, crescimento econômico pífio e índices muito baixos de aprovação popular. No governo do partido da imprensa, a criminosa desigualdade social brasileira permaneceu inalterada e os índices de criminalidade (homicídios) tiveram forte crescimento.
O partido da imprensa assumiu a “posição oposicionista” a um governo que hoje conta com enorme aprovação popular. A comparação de desempenho entre os governos do Partido dos Trabalhadores (Lula, Dilma) e do partido da imprensa (FHC, Serra) é extraordinariamente favorável ao primeiro: não há um único índice social ou econômico em que o governo Lula (Dilma) não seja muito superior ao governo FHC (Serra), a lista desta comparação chega a ser enfadonha.
Serra é, portanto, o candidato do partido da imprensa, que reúne os interesses da direita brasileira e faz oposição ao governo Lula. Dilma é a candidata da situação, da esquerda, representando vários partidos, defendendo a continuidade do governo Lula.
Agora que tudo ficou bem claro, você pode continuar (ou não) lendo seu jornal, sabendo que ele trabalha explicitamente a favor de uma candidatura e de um partido que, como todo partido, almeja o poder.
*****
Annita Dunn, diretora de Comunicações da Casa Branca, à rede de televisão CNN e aos repórteres do The New York Times:
“A rede Fox News opera, praticamente, ou como o setor de pesquisas ou como o setor de comunicações do Partido Republicano" (...) "não precisamos fingir que [a Fox] seria empresa comercial de comunicações do mesmo tipo que a CNN. A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico. Quando o presidente [Barack Obama] fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa, propriamente dita. O presidente já sabe que estará como num debate com o partido da oposição”.
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Quem estava prestando atenção já percebeu faz tempo: a antiga imprensa brasileira virou um partido político, incorporando as sessões paulistas do PSDB (Serra) e do PMDB (Quércia), e o DEM (ex-PFL, ex-Arena).
A boa novidade é que finalmente eles admitiram ser o que são, através das palavras sinceras de Maria Judith Brito, presidente da Associação Nacional dos Jornais e executiva do jornal Folha de S. Paulo, em declaração ao jornal O Globo:
“Obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada.”
A presidente da Associação Nacional dos Jornais constata, como ela mesma assinala, o óbvio: seus associados “estão fazendo de fato a posição oposicionista (sic) deste país”. Por que agem assim? Porque “a oposição está profundamente fragilizada”.
A presidente da associação/partido não esclarece porque a oposição “deste país” estaria “profundamente fragilizada”, apesar de ter, como ela mesma reconhece, o irrestrito apoio dos seus associados (os jornais).
A presidente da associação/partido não questiona a moralidade de seus filiados assumirem a “posição oposicionista deste país” enquanto, aos seus leitores, alegam praticar jornalismo. Também não questiona o fato de serem a oposição ao governo “deste país” mas não aos governos do seu estado (São Paulo).
Propriedades privadas, gozando de muitas isenções de impostos para que possam melhor prestar um serviço público fundamental, o de informar a sociedade com a liberdade e o equilíbrio que o bom jornalismo exige, os jornais proclamam-se um partido, isto é, uma “organização social que se fundamenta numa concepção política ou em interesses políticos e sociais comuns e que se propõe alcançar o poder”.
O partido da imprensa se propõe a alcançar o poder com o seu candidato, José Serra. Trata-se, na verdade, de uma retomada: Serra, FHC e seu partido, a imprensa, estiveram no poder por oito anos. Deixaram o governo com desemprego, juros, dívida pública, inflação e carga tributária em alta, crescimento econômico pífio e índices muito baixos de aprovação popular. No governo do partido da imprensa, a criminosa desigualdade social brasileira permaneceu inalterada e os índices de criminalidade (homicídios) tiveram forte crescimento.
O partido da imprensa assumiu a “posição oposicionista” a um governo que hoje conta com enorme aprovação popular. A comparação de desempenho entre os governos do Partido dos Trabalhadores (Lula, Dilma) e do partido da imprensa (FHC, Serra) é extraordinariamente favorável ao primeiro: não há um único índice social ou econômico em que o governo Lula (Dilma) não seja muito superior ao governo FHC (Serra), a lista desta comparação chega a ser enfadonha.
Serra é, portanto, o candidato do partido da imprensa, que reúne os interesses da direita brasileira e faz oposição ao governo Lula. Dilma é a candidata da situação, da esquerda, representando vários partidos, defendendo a continuidade do governo Lula.
Agora que tudo ficou bem claro, você pode continuar (ou não) lendo seu jornal, sabendo que ele trabalha explicitamente a favor de uma candidatura e de um partido que, como todo partido, almeja o poder.
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Annita Dunn, diretora de Comunicações da Casa Branca, à rede de televisão CNN e aos repórteres do The New York Times:
“A rede Fox News opera, praticamente, ou como o setor de pesquisas ou como o setor de comunicações do Partido Republicano" (...) "não precisamos fingir que [a Fox] seria empresa comercial de comunicações do mesmo tipo que a CNN. A rede Fox está em guerra contra Barack Obama e a Casa Branca, [e] não precisamos fingir que o modo como essa organização trabalha seria o modo que dá legitimidade ao trabalho jornalístico. Quando o presidente [Barack Obama] fala à Fox, já sabe que não falará à imprensa, propriamente dita. O presidente já sabe que estará como num debate com o partido da oposição”.
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A Globo e a ditadura, segundo Walter Clark
Reproduzo artigo de Argemiro Ferreira, publicado em seu indispensável blog:
Ainda que não tivesse sido esse o objetivo de sua autobiografia, na qual relatou há 19 anos a incrível trajetória que o transformara no todo-poderoso senhor, por mais de uma década, da quarta rede comercial de televisão do mundo, Walter Clark acabou por oferecer no livro - “O Campeão de Audiência”, tendo o jornalista Gabriel Priolli como co-autor, Editora Best Seller, 1991 - uma contribuição importante para a compreensão das relações muito especiais entre a TV Globo e o regime militar à sombra do qual floresceu.
Além de rejeitar a conhecida imagem da emissora como uma espécie de porta-voz do “Brasil Grande” do ditador Médici, ele garantia nunca ter visto Roberto Marinho "se humilhar diante de quem quer que fosse, milico ou não, presidente da República ou não. Ao contrário, é uma altivez que fica sempre no limite da arrogância."
Clark referia-se à suposta independência do dono da Globo por "manter em torno de si homens de esquerda em cargos importantes" (citava Franklin de Oliveira, Evandro Carlos de Andrade e Henrique Caban) - inclusive depois que o SNI ampliou a pressão contra os dois últimos, com acusações contidas numa fita de vídeo que o dono da Globo fora convocado a assistir em companhia de Clark e Armando Nogueira. Explicitamente, admitia apenas que o regime "incomodava" a Globo, que enfrentou "o mesmo gosto amargo da censura, das intimidações, das impossibilidades que todo mundo sentiu: imprensa, rádio, televisão, as artes, a universidade, a cultura".
Claramente na defensiva, o autor mostrava-se ressentido com os que o culpavam - na própria Globo, e mais até do que Marinho - pela submissão ao regime militar. Mas ao passar das opiniões subjetivas aos fatos concretos, acabava por confirmar o que pretendia desmentir: a docilidade das emissoras de televisão, em parte resultante do caráter precário das concessões de canais pelo governo, tinha uma longa história e já o atropelara antes, na TV Rio.
Essa emissora, na qual também foi autoridade máxima (com o título nominal de "diretor comercial"), Clark submeteu-se, sem reação, ao assalto dos lacerdistas - liderados pelo empresário Abrahão Medina, fazendo valer a condição de patrocinador de programas - no episódio da tomada do Forte de Copacabana, em 1964. Posteriormente, conseguiu o prodígio de entregar-se tanto ao governo estadual como ao federal, até mesmo depois do desafio do governador Carlos Lacerda ao presidente Castello Branco. Clark confessou ter retirado do ar programas de Carlos Heitor Cony e Roberto Campos para satisfazer o coronel Gustavo Borges, chefe de Polícia do Rio, que o chantageava com a ameaça de mudar o horário da novela “O Direito de Nascer”, líder de audiência.
Não por acaso, a experiência da Globo acabaria por extremar a tendência à acomodação, a ponto de Clark contratar um ex-diretor da Censura ("o Otati") para "ler tudo que ia para o ar" e, pior ainda, uma "assessoria especial" para cortejar o poder, formada pelo general Paiva Chaves, pelo civil linha dura Edgardo Manoel Erickson ("pelego dos milicos", conforme disse) e mais "uns cinco ou seis funcionários". O episódio que aparentemente o convenceu a ir tão longe chegava a ser cômico: um certo coronel Lourenço, do Dentel, tinha tirado a estação do ar em 1969, convocando Clark ao ministério da Guerra, porque Ibrahim Sued, na esperança de agradar ao Planalto, divulgara uma intriga plantada pelo grupo do general Jaime Portela, então na conspiração do "governo paralelo" juntamente com d. Yolanda Costa e Silva. Ibrahim foi preso e Clark aprendeu a lição depois de levar pito de um certo coronel Athos, "homem de Sílvio Frota".
Além da suposta altivez de Marinho, impressionaram Clark a "integridade", a "honestidade" e o "patriotismo" do general Garrastazu Médici, que depois de 1974 passara a frequentar seu gabinete na Globo para ver futebol aos domingos. Muita gente apanhava e morria nos cárceres da ditadura, mas para ele isso não podia, de forma alguma, ser coisa de Médici: "Tenho a impressão de que ele não se envolveu com nenhum excesso, nenhuma violência do regime". De quem era, então, a responsabilidade? "Foi coisa dos caras da Segunda Seção do Exército, do SNI, do Cenimar, do Cisa, a turma da segurança. E era tudo na faixa de major, tenente-coronel".
Pronto a absolver os poderosos, frequentadores de seu gabinete (até mesmo o general Ednardo D'Ávila‚ chamado no livro de "figura agradável"), e a condenar apenas o guarda da esquina, obscuro, Clark comete o disparate de afirmar que "a censura e as pressões não eram feitas pelos generais", mas por "gente como o Augusto", beque do Vasco que virou agente do DOPS. Mas se era assim, por que submeter-se a eles?
O autor recorreu ainda a outra desculpa para justificar o adesismo e o ufanismo tão escancarados na ocasião pela rede dos Marinho: "A Globo não fazia diferente dos outros". E mais: "Se o Estadão não conseguia enfrentar o regime, se a “Veja” não conseguia, como é que a Globo, sendo uma concessão do Estado, conseguiria resistir à censura, às pressões?" O problema, para os críticos de Clark dentro da própria emissora, é que ela, como ele, parecia preferir aquela filosofia de que se o estupro é inevitável a solução é relaxar e aproveitar.
Daí os comerciais da AERP (Clark alega que foram feitos para evitar uma "Voz do Brasil" na televisão, projeto de um certo coronel Aguiar), as coberturas patrióticas de eventos militares (Olimpíadas do Exército e o resto), as baboseiras ufanistas de Amaral Neto. "Era o preço que pagávamos para fazer outras coisas", alegou. Não se deu ao trabalhar de explicar que coisas eram essas. E ele mesmo admitiu na autobiografia que o apregoado Padrão Globo de Qualidade "acabou passando por vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram"?
A Globo devia ao regime, como ficou claro no relato de Clark, até mesmo a introdução da TV a cores - imposta pelo ministro das Comunicações, coronel Higino Corsetti, sabe Deus para atender a que lobby multinacional. Mas a intimidade promíscua com o regime foi mais longe, a ponto de compartilhar com o SNI os serviços clandestinos do "despachante" encarregado de liberar contrabandos na Alfândega: para a empresa, equipamentos de TV; para os militares da espionagem oficial, sofisticados aparelhos de escuta ilegal. Graças a isso, Clark podia desfrutar estranhas sessões de lazer como a conversa com um tal general Antônio Marques, pressuroso em exibir foto tirada no escuro de um cinema (com equipamento infravermelho) e identificar o personagem em cena comprometedora como Dom Ivo Lorsheiter, progressista odiado pela linha dura militar.
O autor defendeu no livro tudo o que fez para "afagar o regime" (expressão dele) e investiu contra os que o acusavam de "puxar o saco dos militares" (também expressão dele). Para fazer autocensura, revelou, tinha importantes aliados internos, com destaque especial para o papel do diretor de jornalismo, Armando Nogueira. Por "questão de realismo", por exemplo, Armando e ele tomavam "muito cuidado" para não trombar "com o regime e nem com Roberto Marinho".
Mas o leitor tropeça nas contradições da narrativa, entre elas a ambiguidade em relação ao ex-amigo J. B. (Boni) de Oliveira Sobrinho - acusado de fazer vista grossa quando Dias Gomes e outros enfiavam "coisas nos textos que certamente iam dar problemas", mas também de cumplicidade com os militares para destruir o próprio Clark ("lá por 1976, Laís, a mulher do Boni, foi me denunciar para o pessoal do SNI, que ela conhecia, dizendo que eu era um toxicômano perigoso").
Não é preciso inteligência privilegiada para perceber que o jogo de cumplicidade com o regime confundia-se com a luta interna pelo poder dentro da Globo, arbitrada por Marinho e envolvendo não apenas Clark e Boni, mas também o segundo escalão - Joe Wallach, Arce (José Ulisses Alvarez Arce) e, em especial, o diretor de jornalismo Armando Nogueira, pintado no livro como incompetente, preguiçoso e traiçoeiro. Em meio à guerra, as reuniões do conselho de direção nas manhãs de segunda-feira tornaram-se um inferno, em generalizado clima de intriga e discórdia, com todo mundo brigando com todo mundo.
O dinheiro farto que todos ganhavam, contou Clark, "era como veneno, especialmente nas mãos das mulheres". Munidas de talões de cheque, elas estrelavam "um festival de nouveau-richismo, pretensão e falta de educação". Acusado de consumir drogas, Clark defendeu-se generalizando a prática: "a cocaína era chique nas festas intelecto-sociais, e o seu consumo, bastante disseminado", mas "resolveram me transformar em drogado".
Quando Marinho decidiu tomar "o brinquedo de volta" - ou seja, recuperar a Globo, que "tinha emprestado para uns garotos mais moços brincarem" - uma das mãos firmemente agarradas ao tapete de Clark, segundo o livro, foi a do ministro da Justiça, Armando Falcão, "tipo deletério, que adorava fazer intrigas, dizer que éramos todos comunistas, drogados, os piores elementos". No relato aparece um Roberto Marinho bem mais coerente na aliança com o regime do que o autor chega a reconhecer explicitamente - tanto que o episódio no qual Clark é afinal defenestrado mistura, de forma reveladora, a disputa pelo poder no regime militar com aquela que se processava na Globo, escancarando as relações perigosas entre o governo e a rede de televisão consolidada à sombra do autoritarismo.
O autor nega que o motivo de sua saída tenha sido, ao contrário do que se propalou na época, seu comportamento pouco ortodoxo - em razão de excessos alcoólicos - numa festinha com poderosos de Brasília. O livro atribuiu a demissão a queda de braço com o regime, que exigia a expulsão pela Rede Globo da afiliada paranaense de Paulo Pimentel, político que rompera com o antigo protetor, ministro Ney Braga, e ainda era desafeto do chefe do SNI, general João Baptista Figueiredo, já a caminho da presidência.
Se assim foi, faltou a Clark reconhecer ter sido demitido na primeira vez em que ousou contrariar o regime. "Eu argumentava - escreveu ele - que o governo tinha o poder concedente dos canais de rádio e TV e, se quisesse atingir o Paulo (Pimentel), que cassasse sua concessão e enfrentasse o desgaste político". Mas Marinho, pragmático, pensava diferente - talvez sintonizado, naquele sombrio ano de 1977, com o clima gerado por mais uma demonstração de força do regime, o Pacote de Abril.
Clark nem sequer notou a semelhança desse episódio com tantos outros que marcaram a aliança promíscua da Globo com o poder - e nos quais ela se limitara a acatar a vontade do regime. Alguns de tais episódios, envolvendo a TV e autoridades militares, desfilaram ao longo de “Campeão de Audiência”: o ataque do general Muricy a um documentário da CBS (para ele, “subversivo”) sobre o Vietnã (ironicamente, comprado pelo americano Wallach, representante do grupo Time-Life); o Jornal Nacional, no seu terceiro dia de sua existência, proibido por um coronel (Manoel Tavares) do gabinete do general Lira Tavares (membro da Junta que tomara o poder) de noticiar o sequestro do embaixador dos EUA e a doença de Costa e Silva, os dois principais assuntos; o aviso do general Sizeno Sarmento de que as músicas “Caminhando” e “América, América” estavam proibidas de ganhar o Festival Internacional da Canção; a ordem do general Orlando Geisel para as patriotadas de Amaral Neto serem incluídas no horário nobre; a prisão do próprio Clark pelo DOPS no dia do Ato 5, por ordem do coronel Luís França e em represália por ter ele discutido com o motorista do militar num incidente de trânsito.
Enfim, a especialidade da Globo parecia ser a de acomodar-se a qualquer situação. A acomodação prevaleceu também no dia da queda de Clark. E ele aceitou sem discutir o prêmio de consolação (US$ 2 milhões) oferecido por Marinho. Limitou-se a encomendar a carta de demissão (“em alto estilo...literário”) ao amigo Otto Lara Resende, suficientemente versátil para também escrever em seguida a resposta na qual o dono da Globo agradeceu os serviços prestados pelo demissionário (cinco anos depois Otto aceitaria ainda outra missão: o prefácio de “Campeão de Audiência”).
A demissão é uma espécie de anticlímax da autobiografia, na qual o autor assumiu compulsivamente a responsabilidade pelas iniciativas bem sucedidas da Globo, declarou-se partidário de programas de qualidade (mas o salto de audiência veio com os popularescos de baixo nível, apresentados por Raul Longras, Dercy Gonçalves, Chacrinha, etc, não muito distantes da atual pornografia BBB) e atribuiu o mal feito a outros - entre eles, os que mantiveram o faturamento milionário e a liderança absoluta de audiência nos anos seguintes, enquanto o próprio Clark, que na Globo tinha o maior salário do mundo e frequentava presidentes e ministros, descia ao fundo do poço, de fracasso em fracasso (como diretor de duas TVs, logo demitido, e produtor de dois filmes nos quais não se reconheceu sua contribuição, além de um espetáculo teatral altamente deficitário).
"Em 14 anos, depois de minha saída, o que houve de realmente novo?" - perguntou o autor naquele ano de 1991, referindo-se à Globo. Pouca coisa, talvez. Hoje, com a perda crescente de audiência para os concorrentes e sem os privilégios garantidos em 20 anos de ditadura militar, ela está condenada a conformar-se com as regras da democracia e da competição. E passa a valer para a Globo a amarga reflexão pessoal de Clark no livro: “Não se deve cultivar excessivamente o poder, pendurar-se emocionalmente nele, porque um belo dia o poder acaba, e o dia seguinte é terrível".
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A decadência da imprensa brasileira
Reproduzo artigo do sociólogo Emir Sader, publicado no sítio Carta Maior:
A imprensa brasileira teve momentos da historia do país em que desempenhou papel determinante. Basta recordar o peso que teve nas mobilizações de desestabilização que levaram ao golpe de 1964, em que jornais como O Estado de Sao Paulo, a Tribuna da Imprensa, o Correio da Manhã, entre outros, tiveram o papel, pela primeira vez, de condutores ideológicos e políticos das forcas opositoras.
Setores da imprensa tiveram também um papel positivo na campanha das diretas, quando outros tentavam esconder a amplitude do movimento e seu verdadeiro significado.
Assistimos hoje à decadência generalizada dessa mesma imprensa, que martela, cotidianamente, praticamente de forma total e monótona, ataques contra o governo Lula, logrando, no entanto, que apenas 5% da população rejeite o governo, enquanto mais de 80% o apóie. Nunca a imprensa brasileira esteve tão distante e contraposta à opinião do povo brasileiro. Daí seu isolamento e decadência, pelo menos sob sua forma atual.
As organizações Globo, que só possuiam um jornal sem nenhuma importância, no Rio, antes do golpe, tiveram na ditadura sua grande alavanca, mas, ao mesmo tempo, o golpe insuperável de falta de credibilidade. Ficaram com a marca da ditadura, por mais que tentassem se reciclar, importando colunistas, usando a audiência da televisão para tentar conseguir mais público.
Atualmente dispõe de um trio que atenta contra qualquer credibilidade, que dá a tônica do jornal: Merval Pereira, Ali Kamel e Miriam Leitão. Todos os três se caracterizam por serem as vozes do dono, por sua postura propagandística, sem nenhum interesse no que dizem, nem brilho ou criatividade no que escrevem. São funcionários burocráticos da empresa, que exercem, da maneira que conseguem, seu burocrático papel de opositres, buscando catar supostas fraquezas do governo, que é seu único objetivo.
Nenhum tipo de análise, nenhuma nuance, nenhuma idéia. Para um jornal que precisaría desesperadamente de credibilidade, eles são um tiro no pé, uma confirmação da falta de credibilidade do jornal. O resto do jornal – das manchetes de primeira página às colunas de notícias – padece desse freio da rígida linha editorial, fazendo um jornal sem graça, sem interesse, sem repercussão.
No Rio de Janeiro, o conjunto dos órgãos da empresa, mesmo atuando fortemente a favor de algum candidato, perdem sempre. Lula ganhou nas duas últimas eleições no Rio; os Garotinhos, Sergio Cabral, Paes, mesmo Cesar Maia, se elegeram sem o apoio do jornal, que os atacava. Hoje, contra a vontade majoritária da grande maioria dos brasileiros, ficam de novo, acintosamente, na contramão da opinião do povo e do país, incluído claramente o povo do Rio de Janeiro, que sabe separar programas de diversão que lhe gosta ver, das inverdades que diz o jornal e os noticiários de rádio e televisão da Globo.
Diminuem sua tiragem, perdem público abertamente para a internet, para os jornais gratuitos, para os jornais populares vendidos. Melancolicamente, se arrasta o jornal, na fúria antilulista, sem repercussão política alguma.
O Estadão sempre foi o jornal conservador por excelência, com certa discrição, boa cobertura internacional, posições claramente direitistas. Conforme foi perdendo público para a FSP, que aparecia mais atraente para os jovens, mais ligada à oposicao à ditadura, tratou de rejuvenescer. Como jornal mais organicamente ligado às entidades empresariais, tem uma avaliação mais equilibrada da política econômica, valorizando seus avanços, no marco das críticas tradicionais do liberalismo dos “gastos excessivos do Estado”.
Além do papel do Estado na economia, suas maiores preocupações e críticas ao governo são na política internacional. Sua predileção, em tudo e por tudo, com os EUA, fica ferida com as alianças com os países do Sul do mundo e com os da América Latina em particular. A política externa soberana do Brasil os incomoda profundamente, transformando-se num dos temas mais usuais e violentos dos editorais.
O outro são os movimentos sociais, em particular o MST, que causa ojeriza ao Estadão, pela defesa intransigente do direito à propriedade privada, pilar do sistema capitalista. (O jornal foi praticamente o órgão oficial das passeatas de preparação do golpe de 64, na defesa da “liberdade, da família e da propriedade”, valores aos quais continua fiel.) A liberdade, que inclui centralmente a de “imprensa” (privada, diga-se), protagonizada pela SIP – Sociedade Interamericana de Prensa -, órgão da Guerra Fria, cenário a que o jornal, rançoso, ainda se sente apegado. Os editoriais, sempre, e atualmente Dora Kramer, são os momentos mais patéticos do jornal, saudoso da Guerra Fria.
A FSP é o jornal que mais teve oscilações de imagem. Era um jornal sem nenhum peso até o golpe e mesmo durante boa parte da ditadura militar. O Estadão era o grande jornal de São Paulo. A FSP apoiou ativamente a preparação do golpe militar, sua realização e a instauração da ditadura, cumpriu tudo o que a ditadura determinava, com noticiários que escondiam os sequestros, desaparecimentos, execuções, publicando as versões oficiais, emprestando carros da empresa para a Oban.
Foi ao longo dos anos 80, quando levou Claudio Abramo do Estadão, que a FSP, pela primeira vez, ganhou prestígio, buscando espaço próprio na oposição liberal à ditadura. Pretendeu ser o órgão da “sociedade civil” contra o “Estado autoritário”, conforme a ideología hegemônica na oposição, advinda da teoria do autoritarismo de FHC. (A FSP tirava, todo ano, uma foto no teto do seu prédio na Barão de Limeira, com os que ela considerava os representantes da “sociedade civil”, de empresários a líderes sindicais, como que para expresar físicamente esse vínculo organizado com os setores que se opunham, em graus distintos, à ditadura.)
Consolidou essa imagen emprestando suas páginas para uma certo pluralismo, com um cronista semanal – Florestan Fernandes, Marilena Chaui, entre os mais conhecidos – do PT, e distintos políticos, intelectuais e líderes sociais escrevendo na sua página de opinião.
Desde a eleição de FHC, entrou em decadência, perdendo totalmente a credibilidade que o diferenciava. Colunistas com vínculos pessoais com os tucanos, como Clovis Rossi, Eliane Catanhede, outros, decadentes, como Jânio de Freitas, se arrastam melancolicamente na decadência geral do jornal, o que mais despencou na tiragem e o que mais se transformou nas duas últimas décadas. O filho do Frias pai conduz o jornal pelo abismo da intranscendência e do rancor, se parecendo cada vez mais com a Tribuna da Imprensa da época de Carlos Lacerda.
A Veja se assume, grotescamente, como o Diario Oficial da extrema direita, com paquidermes como colunistas, sensacionlismo de capa, projetando-se como má espécie de bushismo brasileiro. Com dificuldade para conciliar sua imagem de revista de generalidades com esse papel de brucutu da imprensa nacional, foi perdendo aceleradamente tiragem, o que aumenta a crise financeira que levou a empresa a pendurar-se em capitais externos.
Poderia ser menos afetada pela crise generalizada da imprensa, por ser uma revista semanal. Mas a brutalidade da sua orientação política a fez incorporar-se de cheio nessa queda. Terá papel ainda mais truculento na campanha eleitoral, jogando tudo para tentar barrar a vitória do governo, esperando-se os golpes mais sujos da campanha da empresa dos Civita.
No conjunto, o cenário da imprensa brasileira – com a única exceção da Carta Capital, entre as publicações diárias e semanais – é deprimente e decadente. Uma vitória de Dilma – que os apavora, seria ficar mais quatro ou oito anos nessa posição de dirigentes opositores -, trará dilemas difíceis para essas empresas. É possível que uma ou outra busque reciclar-se para adaptar-se a novos tempos, em que inclusive tem que contar com o fim de toda uma geração de políticos estreitamente associados a ela, como FHC, Serra, Jereissatti, etc. Isso, associado a uma intensificação da crise econômica das empresas, deve colocar dilemas cruciais para órgãos que assumiram atitudes suicidas, contra a vontade expressa da maioria do povo brasileiro e pagam preço caro por isso.
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A imprensa brasileira teve momentos da historia do país em que desempenhou papel determinante. Basta recordar o peso que teve nas mobilizações de desestabilização que levaram ao golpe de 1964, em que jornais como O Estado de Sao Paulo, a Tribuna da Imprensa, o Correio da Manhã, entre outros, tiveram o papel, pela primeira vez, de condutores ideológicos e políticos das forcas opositoras.
Setores da imprensa tiveram também um papel positivo na campanha das diretas, quando outros tentavam esconder a amplitude do movimento e seu verdadeiro significado.
Assistimos hoje à decadência generalizada dessa mesma imprensa, que martela, cotidianamente, praticamente de forma total e monótona, ataques contra o governo Lula, logrando, no entanto, que apenas 5% da população rejeite o governo, enquanto mais de 80% o apóie. Nunca a imprensa brasileira esteve tão distante e contraposta à opinião do povo brasileiro. Daí seu isolamento e decadência, pelo menos sob sua forma atual.
As organizações Globo, que só possuiam um jornal sem nenhuma importância, no Rio, antes do golpe, tiveram na ditadura sua grande alavanca, mas, ao mesmo tempo, o golpe insuperável de falta de credibilidade. Ficaram com a marca da ditadura, por mais que tentassem se reciclar, importando colunistas, usando a audiência da televisão para tentar conseguir mais público.
Atualmente dispõe de um trio que atenta contra qualquer credibilidade, que dá a tônica do jornal: Merval Pereira, Ali Kamel e Miriam Leitão. Todos os três se caracterizam por serem as vozes do dono, por sua postura propagandística, sem nenhum interesse no que dizem, nem brilho ou criatividade no que escrevem. São funcionários burocráticos da empresa, que exercem, da maneira que conseguem, seu burocrático papel de opositres, buscando catar supostas fraquezas do governo, que é seu único objetivo.
Nenhum tipo de análise, nenhuma nuance, nenhuma idéia. Para um jornal que precisaría desesperadamente de credibilidade, eles são um tiro no pé, uma confirmação da falta de credibilidade do jornal. O resto do jornal – das manchetes de primeira página às colunas de notícias – padece desse freio da rígida linha editorial, fazendo um jornal sem graça, sem interesse, sem repercussão.
No Rio de Janeiro, o conjunto dos órgãos da empresa, mesmo atuando fortemente a favor de algum candidato, perdem sempre. Lula ganhou nas duas últimas eleições no Rio; os Garotinhos, Sergio Cabral, Paes, mesmo Cesar Maia, se elegeram sem o apoio do jornal, que os atacava. Hoje, contra a vontade majoritária da grande maioria dos brasileiros, ficam de novo, acintosamente, na contramão da opinião do povo e do país, incluído claramente o povo do Rio de Janeiro, que sabe separar programas de diversão que lhe gosta ver, das inverdades que diz o jornal e os noticiários de rádio e televisão da Globo.
Diminuem sua tiragem, perdem público abertamente para a internet, para os jornais gratuitos, para os jornais populares vendidos. Melancolicamente, se arrasta o jornal, na fúria antilulista, sem repercussão política alguma.
O Estadão sempre foi o jornal conservador por excelência, com certa discrição, boa cobertura internacional, posições claramente direitistas. Conforme foi perdendo público para a FSP, que aparecia mais atraente para os jovens, mais ligada à oposicao à ditadura, tratou de rejuvenescer. Como jornal mais organicamente ligado às entidades empresariais, tem uma avaliação mais equilibrada da política econômica, valorizando seus avanços, no marco das críticas tradicionais do liberalismo dos “gastos excessivos do Estado”.
Além do papel do Estado na economia, suas maiores preocupações e críticas ao governo são na política internacional. Sua predileção, em tudo e por tudo, com os EUA, fica ferida com as alianças com os países do Sul do mundo e com os da América Latina em particular. A política externa soberana do Brasil os incomoda profundamente, transformando-se num dos temas mais usuais e violentos dos editorais.
O outro são os movimentos sociais, em particular o MST, que causa ojeriza ao Estadão, pela defesa intransigente do direito à propriedade privada, pilar do sistema capitalista. (O jornal foi praticamente o órgão oficial das passeatas de preparação do golpe de 64, na defesa da “liberdade, da família e da propriedade”, valores aos quais continua fiel.) A liberdade, que inclui centralmente a de “imprensa” (privada, diga-se), protagonizada pela SIP – Sociedade Interamericana de Prensa -, órgão da Guerra Fria, cenário a que o jornal, rançoso, ainda se sente apegado. Os editoriais, sempre, e atualmente Dora Kramer, são os momentos mais patéticos do jornal, saudoso da Guerra Fria.
A FSP é o jornal que mais teve oscilações de imagem. Era um jornal sem nenhum peso até o golpe e mesmo durante boa parte da ditadura militar. O Estadão era o grande jornal de São Paulo. A FSP apoiou ativamente a preparação do golpe militar, sua realização e a instauração da ditadura, cumpriu tudo o que a ditadura determinava, com noticiários que escondiam os sequestros, desaparecimentos, execuções, publicando as versões oficiais, emprestando carros da empresa para a Oban.
Foi ao longo dos anos 80, quando levou Claudio Abramo do Estadão, que a FSP, pela primeira vez, ganhou prestígio, buscando espaço próprio na oposição liberal à ditadura. Pretendeu ser o órgão da “sociedade civil” contra o “Estado autoritário”, conforme a ideología hegemônica na oposição, advinda da teoria do autoritarismo de FHC. (A FSP tirava, todo ano, uma foto no teto do seu prédio na Barão de Limeira, com os que ela considerava os representantes da “sociedade civil”, de empresários a líderes sindicais, como que para expresar físicamente esse vínculo organizado com os setores que se opunham, em graus distintos, à ditadura.)
Consolidou essa imagen emprestando suas páginas para uma certo pluralismo, com um cronista semanal – Florestan Fernandes, Marilena Chaui, entre os mais conhecidos – do PT, e distintos políticos, intelectuais e líderes sociais escrevendo na sua página de opinião.
Desde a eleição de FHC, entrou em decadência, perdendo totalmente a credibilidade que o diferenciava. Colunistas com vínculos pessoais com os tucanos, como Clovis Rossi, Eliane Catanhede, outros, decadentes, como Jânio de Freitas, se arrastam melancolicamente na decadência geral do jornal, o que mais despencou na tiragem e o que mais se transformou nas duas últimas décadas. O filho do Frias pai conduz o jornal pelo abismo da intranscendência e do rancor, se parecendo cada vez mais com a Tribuna da Imprensa da época de Carlos Lacerda.
A Veja se assume, grotescamente, como o Diario Oficial da extrema direita, com paquidermes como colunistas, sensacionlismo de capa, projetando-se como má espécie de bushismo brasileiro. Com dificuldade para conciliar sua imagem de revista de generalidades com esse papel de brucutu da imprensa nacional, foi perdendo aceleradamente tiragem, o que aumenta a crise financeira que levou a empresa a pendurar-se em capitais externos.
Poderia ser menos afetada pela crise generalizada da imprensa, por ser uma revista semanal. Mas a brutalidade da sua orientação política a fez incorporar-se de cheio nessa queda. Terá papel ainda mais truculento na campanha eleitoral, jogando tudo para tentar barrar a vitória do governo, esperando-se os golpes mais sujos da campanha da empresa dos Civita.
No conjunto, o cenário da imprensa brasileira – com a única exceção da Carta Capital, entre as publicações diárias e semanais – é deprimente e decadente. Uma vitória de Dilma – que os apavora, seria ficar mais quatro ou oito anos nessa posição de dirigentes opositores -, trará dilemas difíceis para essas empresas. É possível que uma ou outra busque reciclar-se para adaptar-se a novos tempos, em que inclusive tem que contar com o fim de toda uma geração de políticos estreitamente associados a ela, como FHC, Serra, Jereissatti, etc. Isso, associado a uma intensificação da crise econômica das empresas, deve colocar dilemas cruciais para órgãos que assumiram atitudes suicidas, contra a vontade expressa da maioria do povo brasileiro e pagam preço caro por isso.
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Miguel Urbano e o anticomunismo da mídia
Reproduzo artigo do legendário jornalista Miguel Urbano Rodrigues, publicado no sítio português O Diário com o título “a barbárie fascista do III Reich e o apagamento da História”:
A morte de um delinquente cubano, mascarado de preso político, após prolongada greve da fome, e a entrada em greve da fome de outro cubano são há semanas tema de editoriais e reportagens na mídia internacional. O segundo, em liberdade, exige, tal como o fez o primeiro, a libertação de todos os “presos políticos cubanos”.
Os dois cidadãos que desafiaram o governo de Havana com tão inédita reivindicação foram imediatamente guindados a heróis pela comunicação social, de Washington a Paris, de Londres a Otawa. Simultaneamente, chovem sobre Cuba violentas críticas, acusando o seu governo de ditadura desumana e desrespeitadora dos direitos humanos.
Os mesmos órgãos de comunicação social que participam dessa campanha anti-cubana, de âmbito mundial, raramente dedicam um mínimo de atenção aos crimes, esses sim, muito reais diariamente praticados no Afeganistão e no Iraque pelas forças dos EUA e da NATO que ocupam esses países. Quanto à tortura de prisioneiros em Guantánamo e aos horrores do presídio de Abu Ghrabi são temas há muito esquecidos pelos grandes jornais e emissoras de televisão do Ocidente.
O denominador comum nesta campanha anti-cubana é um anti-comunismo transparente. Tudo serve aos analistas e politólogos de serviço para deturpar os fatos, de modo a despejaram calúnias contra a Ilha, com tempero de ataques a Fidel, Marx e Lenine.
O objetivo desta gritaria reacionária é, afinal, o mesmo das campanhas que visam criminalizar o comunismo, equiparando-o ao fascismo.
Nestes tempos em que na República Checa tentam proibir o Partido Comunista, e em Riga a direita desfila prestando homenagem aos letões que combateram nas SS de Hitler contra a União Soviética, a imprensa “bem pensante”, que se apresenta como democrática e anti-comunista, mantém um silêncio praticamente total sobre os crimes do fascismo.
Se a Alemanha da Sra. Merkel é o motor da União Europeia, para que recordar o que foi o III Reich, desaparecido há 65 anos? O apagamento da História é imprescindível à sua falsificação.
Mensagens e sonhos de Hitler
O achado pelo exército dos EUA nos últimos dias da guerra de 485 toneladas dos arquivos do Ministério dos Estrangeiros do III Reich, em castelos e cavernas das montanhas de Harz, permitiu o conhecimento de documentação muito valiosa sobre a História contemporânea da Alemanha. Outros arquivos ainda mais importantes permaneceram sepultados até 1955 num depósito do exército norte-americano, na Virgínia.
Foi após cinco anos de estudo de parte dessa documentação que o jornalista William Schirer escreveu a sua obra The Rise and Fall of the Third Reich, editada em 1960 em Nova York, e cuja tradução brasileira em quatro tomos foi publicada em 1963 pela Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
Não conheço outro trabalho que, a partir dos arquivos secretos alemães, ilumine tão ampla e minuciosamente a ascensão e o desmoronamento do nazismo e a personalidade de Hitler.
William Shriver que viveu na Alemanha como correspondente do Chicago Tribune de 1926 a 1941, foi um observador privilegiado da História nesse período.
Quando a sua obra me chegou às mãos eu acabava de ler uma tradução do Mein Kampf (A Minha Luta), de Adolph Hitler, definido pelo Ministério da Educação nazi como “a infalível estrela polar pedagógica”.
Como foi possível, perguntava-me, que tenha chegado a chanceler do Reich (chamado pelo marechal Hindenburgo) um tresloucado ex-cabo austríaco que durante onze anos iria impor despoticamente a sua vontade a um povo de velha cultura, conduzindo a humanidade a uma hecatombe (mais de 40 milhões de mortos, dos quais 20 soviéticos e 8 alemães)?
Shriver, um liberal americano do qual me distancio ideologicamente, ajudou-me a entender melhor Hitler e a marcha para o abismo da Alemanha. Empurrou-me, aliás, para uma releitura do Mein Kampf.
No seu único livro – o mais vendido no país durante anos – Hitler expõe, afinal, numa linguagem primária, a sua concepção louca e megalômana do mundo e esboça o projeto que o levaria ao poder, à guerra e à destruição da Alemanha.
Na sua opinião, “o Estado Tribal deve agir de modo a que tudo gire em torno da raça (…) providenciar para que apenas às pessoas sadias seja conferido o direito de procriar”.
Caberia aos arianos (os alemães seriam o seu ramo mais puro) dominar o mundo, mas as decisões seriam tomadas por um só homem. Somente ele (Hitler), liderando o povo predestinado, “poderá exercer a autoridade e o direito de commando”.
A Nova Ordem
O que parecia uma impossibilidade absoluta aconteceu. E não é surpreendente que, ao tomar o poder com a aprovação do Reichstag, Hitler tenha principiado a levar à prática, a Nova Ordem que idealizara. A destruição da cultura alemã e mundial, acumulada durante séculos, surgiu-lhe como necessidade.
As fogueiras de obras clássicas foram realizadas nas praças públicas com o aplauso da juventude nazi e a indiferença do novo Exército, a Wehrmacht. Os livros de autores como Heine, Thomas Mann, Einstein, Freud, Proust, Gide, Zola, H.G.Wells foram queimados perante multidões entusiasmadas. Dirigindo-se aos estudantes, Goebells, ministro da Propaganda comentou: “Estas chamas não só iluminam o final de uma velha era, mas lançam luzes sobre a nova”.
Nas universidades os programas de nazificação incluíram o ensino daquilo a que chamavam “a física alemã, a química alemã, a matemática alemã”. Na revista Deutsche Mathematik um editorial proclamou que a recusa de considerar a matemática racialmente continha “os germes da destruição da ciência alemã”.
Para Hitler, os judeus e os eslavos, sobretudo os polacos e os russos, eram uma “escória humana”. Para os primeiros concebeu a solução final, ou seja o extermínio. Quanto aos eslavos, via neles um género de escravos de novo tipo.
O general Halder, que era então o chefe do Estado Maior General da Wehrmacht, registrou no seu diário, publicado após a guerra – uma conversa que manteve dias após a invasão da Polônia com o general Eduard Wagner – que discutira com Hitler o futuro daquele país.
“Deve-se impedir, informou Wagner que a classe culta se estabeleça como classe dirigente. Deve-se manter um baixo padrão de vida. Escravos baratos…”.
Heydrich, o lugar-tenente de Himmler, comunicou ao general Wagner que era preciso “limpar a casa dos judeus, e da classe culta, da nobreza e do clero”.
Hanz Frank, nomeado governador da área do país não anexada ao Reich, declarou ao tomar posse do cargo: “Os polacos deverão ser escravos do Reich alemão”. E, dirigindo-se a um jornalista nazi, afirmou: “Se eu ordenasse que fossem afixados cartazes por cada sete polacos fuzilados não haveria florestas suficientes na Polónia para a fabricação de papel para esses cartazes”.
Em l943, em Poznan, na Polônia, Himmler, num discurso oficial, declarou aos jovens oficiais das SS: “Se 10.000 mulheres russas caírem exaustas ao cavarem fossos anti-tanques, interessa-me somente que esses fossos sejam terminados para a Alemanha”.
Em 2 de Outubro de 1940, Hitler, num relatório secreto, escreveu: “Deve haver apenas um senhor para os polacos, um alemão (…) Todos os representantes da classe culta polaca, têm, portanto, de ser exterminados. Isso parece crueldade, mas é a lei da vida”.
Foi, porém, na URSS que a barbárie nazi atingiu o auge.
Em 16 de Julho de 1941, poucas semanas após a invasão, Hitler, no seu quartel-general, dirigindo-se os marechais do Reich, declarou: “Toda a Região do Báltico terá de ser incorporada à Alemanha. Todos os estrangeiros terão de ser evacuados da Crimeia que será colonizada somente por alemães e se transformará em território do Reich... O Fuehrer arrasará Leningrado e entrega-la-á depois aos finlandeses”.
Falando com Ciano, genro de Mussolini, Goering afirmou: “Este ano morrerão de fome na Rússia entre vinte a trinta milhões de pessoas”.
Em Setembro de 44 trabalhavam para o Reich sete milhões e meio de estrangeiros, submetidos a um regime de escravidão. Nas deportações para trabalhos forçados as mulheres eram separadas dos maridos e os filhos dos pais. Generais da Wehrmacht colaboravam no sequestro de crianças que eram enviadas para a Alemanha.
Num campo da Krup, na Renânia, os franceses que o ocuparam em 1945 encontraram trabalhadores que dormiam em canis, mictórios e antigos fornos. É útil recordar que as autoridades americanas permitiram anos depois que a família de Gustav Krup von Bohlen – julgado como criminoso de guerra em Nuremberg – recuperasse anos depois a sua imensa fortuna.
Os prisioneiros de guerra soviéticos foram tratados como animais. Dois milhões morreram no cativeiro alemão, de fome, frio e doenças. Segundo Rosenberg, o filósofo oficial do nazismo, “quanto mais prisioneiros morrerem melhor para nós”.
Os campos de extermínio
Em todos os países ocupados, a Wehrmacht, e sobretudo as SS, cometeram crimes monstruosos, massacrando milhões de pessoas. Tornaram-se símbolos da barbárie nazi duas aldeias, a checa Lidice, e a francesa Oradour sur Glane. Em ambas os moradores foram abatidos como gado.
Não há estatísticas sobre a dimensão do massacre de civis nos países ocupados, mas somente na União Soviética o total de vítimas é avaliado em alguns milhões. As novas gerações quase desconhecem a história verdadeira dos campos de extermínio, Vernichtunggslager, porque o tema é incômodo para as classes dominantes dos EUA e da União Europeia, que preferem falsificar a história da URSS nas suas campanhas anti-comunistas.
Somente na Polônia foram instalados cinco - Aushwitz, Treblinka, Belsec, Sibibor e Chelmno – que adquiriram sinistra celebridade. Visitei Aushwitz em 1981 e, transcorridas quase três décadas, guardo lembrança inapagável das horas de angústia que passei no campo medonho, hoje transformado em museu.
Quantos foram assassinados ali? Não há estatísticas confiáveis porque os registros foram destruídos quando as vanguardas do Exército Vermelho se aproximavam. R. Hoess, ex-comandante do campo, ao depor em Nuremberg, como criminoso, avaliou em 3 milhões o total dos prisioneiros ali mortos.
Recordo que ao regressar a Varsóvia, na lenta viagem noturna, não consegui trocar mais de meia dúzia de palavras com o tradutor que me acompanhava.
Aushwitz é inimaginável. Semanas depois, quando escrevi um artigo sobre aquela jornada no templo dos horrores nazis senti uma dificuldade enorme em encontrar palavras para expressar emoções e ideias. Porque Aushwitz, museu que ilumina facetas obscuras da degradação humana, coloca-nos perante a quase impossibilidade de palavras criadas por humanos transmitirem o que se sente ao descobrir o que ali aconteceu.
Diariamente nas câmaras de gás eram abatidos 6.000 prisioneiros.
O aspecto do lugar não é o que tinha em 1944.
Antes, relvados com flores encimavam as câmaras.
Uma náusea quase me fez vomitar quando o guia, falando com lentidão, informou que uma orquestra de belas jovens vestidas de branco e azul recebia os prisioneiros à entrada das câmaras executando trechos de operetas vienenses e francesas.
Era ao som dessas melodias que as vítimas cruzavam a porta na convicção de que iriam tomar “um duche”.
Fechada a porta, serventes de turno abriam os respiradouros, invisíveis nos relvados, e os cristais de Zyklon B (acido prússico), produzido por empresas associadas da gigante da indústria química I B Farben, eram introduzidos na câmara e transformavam-se no gás letal.
Quando os carrascos SS, que observavam tudo por vigias envidraçadas, concluíam que a matança, rápida, findara, a porta era aberta.
Prisioneiros – abatidos posteriormente – removiam os cadáveres. Em Aushwitz, ao contrário de outros campos, as SS pretendiam evitar “por motivos humanitários” que os prisioneiros soubessem que iriam ser gaseados.
Shriver cita o depoimento de Reitlinger, uma testemunha da “operação de limpeza”.
“A primeira tarefa deles consistia em remover o sangue e as fezes antes de separar e arrastar com cordas e ganchos aqueles corpos agarrados uns aos outros, prelúdio da busca ao ouro e da remoção dos dentes e cabelos, considerados materiais estratégicos pelos alemães. Depois, o transporte, em elevador ou vagão, para os fornos, o moinho que os reduzia a cinzas muito finas e o caminhão que as espalhava nas águas do Sola”.
As cinzas, contudo, também eram utilizadas como fertilizantes. O ouro dos dentes era depositado no Reichsbank, numa conta especial das SS.
A construção dos fornos crematórios, segundo ampla documentação existente nos arquivos do Reich, era atribuída por concurso às empresas que sabiam a que fim eles se destinavam.
Mas quando o número de execuções aumentou, as câmaras de gás e os fornos não podiam ultrapassar a capacidade máxima para que estavam programadas. As SS recorreram então, paralelamente, a fuzilamentos em massa. Os cadáveres eram depois lançados em grandes fossas, aí queimados, e, depois, bulldozers, cobriam tudo com terra.
É insignificante hoje o número de jovens que nos países da União Europeia e nos EUA tem uma noção, mesmo superficial, do que foram os campos de extermínio do III Reich. Os programas de História nas escolas, com poucas exceções, são omissos a respeito do assunto. O apagamento da memória no tocante aos crimes do fascismo é a regra.
Mas sobreviventes da minha geração, prestes a desaparecer, aqueles que visitaram Aushwitz, não podem esquecer o que ali viram e ouviram evocar.
Em noites de insônia revejo-me a caminhar pelas salas do museu de horrores. Impossível esquecer os espaços envidraçados onde se acumulavam milhares de sapatos das crianças que as SS gaseavam, e os cabelos de mulheres, cortados minutos antes de serem introduzidas nas câmaras da morte. Recordo então também, com nitidez, a macabra exposição de objetos e “produtos” que alguns prisioneiros eram ali obrigados a fabricar, como margarina confeccionada com gordura humana, abat-jours de candeeiros cuja matéria foi a pele de pessoas exterminadas no campo.
Impossível – repito – esquecer.
Conspirações
É um facto que na Alemanha houve desde a ascensão de Hitler ao Poder gente que se opôs ao nazismo. Mas na prática somente os comunistas o combateram frontalmente. O preço dessa resistência foi aliás muito alto. Thalmann, o secretário-geral do Partido, morreu num campo de concentração. Na burguesia, o nível da conspiração contra o regime foi sempre baixo, o que explica o desconhecimento pela Gestapo das atividades de altas personalidades que, mesmo antes de Munique, se reuniam com os objetivos de derrubar Hitler para evitar a guerra.
Mas foi somente após Stalingrado que nas Forças Armadas surgiu uma organização conspirativa que se propunha a eliminar Hitler. A ela aderiram marechais e generais da Wehrmacht e o próprio chefe de estado-maior general, o general Halder.
Muitos desses oficiais tinham durante anos apoiado Hitler sem restrições. Quando a derrota do Reich lhes apareceu como inevitável, concluíram que somente eliminando Hitler se impediria a destruição total do país. Acreditavam ingenuamente que poderiam negociar uma paz satisfatória pelo menos com a Grã-Bretanha e os EUA.
O atentado contra o Fuhrer, em 20 Julho de 1944, no Quartel-general de Rastenburg, na Prússia Oriental, foi preparado minuciosamente com muita antecedência. Mas fracassou devido a um imprevisto, porque a pasta que continha a bomba foi desviada do lugar onde o coronel Stauffenberg a tinha colocado, perto de Hitler.
A Alemanha entrara na agonia e o próprio Quartel-general foi apressadamente transferido para Berlim.
Mas a repressão assumiu proporções gigantescas, sem precedentes na breve história do Reich. Atingiu três marechais Witzleben, Kluge e Rommel – e o general Beck, ex-chefe do Estado-maior. O primeiro foi enforcado, os outros foram obrigados a suicidar-se. Os chamados Tribunais do Povo condenaram à força ou ao fuzilamento, em julgamentos de farsa, milhares de militares e civis implicados na conspiração.
Segundo uma fonte citada por William Shriver, a Gestapo prendeu 7.000 pessoas e da lista de condenados à morte constam 4.980 nomes, entre os quais os do almirante Canaris, chefe da Abwehr, e os de dezenas de generais e oficias superiores.
Na opinião de todos os historiadores do Reich, a perturbação mental de Hitler, que se acentuara após as últimas derrotas militares, agravou-se muito a partir do atentado de julho.
Epílogo da tragédia
Nas últimas semanas da guerra, todos os hierarcas do Reich estavam conscientes de que a guerra estava perdida e prestes a findar com a tomada de Berlim. Excepto Hitler. Doente, desesperado, mergulhara num estado de histeria permanente, imaginando planos loucos de vitória. Acreditava que as V1 e V2, as bombas voadoras, destruiriam Londres (as rampas de lançamento já haviam sido destruídas pela Royal Air Force) e que os primeiros aviões de combate a jato varreriam dos céus a aviação anglo-americana (a maioria desses caças pioneiros foram destruídos no solo pelos bombardeamentos).
Hitler emitia as ordens mais estapafúrdias, admitindo inclusive que o cerco de Berlim findaria com a chegada do exército do general Steiner (que já se desintegrara). Mas ninguém, então, o escutava.
Nos últimos dias acusou de traição Goering e Himmler. A 30 de Abril suicidou-se no bunker da chancelaria.
Como foi possível – insisto – que tal homem tomasse o poder na Alemanha, instaurasse nela um regime de terror e desencadeasse a mais mortífera guerra da História?
Como é possível – coloco a questão – que governantes e intelectuais que se apresentam como paladinos da liberdade e da democracia se empenhem hoje em deformar e falsificar a História, esforçando-se por apagar a memória do fascismo reichiano, enquanto tudo fazem para satanizar o socialismo (e o comunismo), única alternativa à barbárie do capitalismo em crise?
Como é possível que os governos e a grande mídia da Europa assistam com indiferença à ascensão na Holanda, na Áustria e nos países bálticos de organizações fascistas e despejem calúnias contra os trabalhadores gregos que lutam nas ruas em defesa dos seus direitos?
Como é possível que dezenas de milhões de norte-americanos manifestem apreço pela política do governo neofascista da Colômbia, aceitem passivamente o bloqueio a Cuba e expressem simpatia pela histérica campanha contra a Ilha socialista transformada, de repente, em assunto do dia?
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A morte de um delinquente cubano, mascarado de preso político, após prolongada greve da fome, e a entrada em greve da fome de outro cubano são há semanas tema de editoriais e reportagens na mídia internacional. O segundo, em liberdade, exige, tal como o fez o primeiro, a libertação de todos os “presos políticos cubanos”.
Os dois cidadãos que desafiaram o governo de Havana com tão inédita reivindicação foram imediatamente guindados a heróis pela comunicação social, de Washington a Paris, de Londres a Otawa. Simultaneamente, chovem sobre Cuba violentas críticas, acusando o seu governo de ditadura desumana e desrespeitadora dos direitos humanos.
Os mesmos órgãos de comunicação social que participam dessa campanha anti-cubana, de âmbito mundial, raramente dedicam um mínimo de atenção aos crimes, esses sim, muito reais diariamente praticados no Afeganistão e no Iraque pelas forças dos EUA e da NATO que ocupam esses países. Quanto à tortura de prisioneiros em Guantánamo e aos horrores do presídio de Abu Ghrabi são temas há muito esquecidos pelos grandes jornais e emissoras de televisão do Ocidente.
O denominador comum nesta campanha anti-cubana é um anti-comunismo transparente. Tudo serve aos analistas e politólogos de serviço para deturpar os fatos, de modo a despejaram calúnias contra a Ilha, com tempero de ataques a Fidel, Marx e Lenine.
O objetivo desta gritaria reacionária é, afinal, o mesmo das campanhas que visam criminalizar o comunismo, equiparando-o ao fascismo.
Nestes tempos em que na República Checa tentam proibir o Partido Comunista, e em Riga a direita desfila prestando homenagem aos letões que combateram nas SS de Hitler contra a União Soviética, a imprensa “bem pensante”, que se apresenta como democrática e anti-comunista, mantém um silêncio praticamente total sobre os crimes do fascismo.
Se a Alemanha da Sra. Merkel é o motor da União Europeia, para que recordar o que foi o III Reich, desaparecido há 65 anos? O apagamento da História é imprescindível à sua falsificação.
Mensagens e sonhos de Hitler
O achado pelo exército dos EUA nos últimos dias da guerra de 485 toneladas dos arquivos do Ministério dos Estrangeiros do III Reich, em castelos e cavernas das montanhas de Harz, permitiu o conhecimento de documentação muito valiosa sobre a História contemporânea da Alemanha. Outros arquivos ainda mais importantes permaneceram sepultados até 1955 num depósito do exército norte-americano, na Virgínia.
Foi após cinco anos de estudo de parte dessa documentação que o jornalista William Schirer escreveu a sua obra The Rise and Fall of the Third Reich, editada em 1960 em Nova York, e cuja tradução brasileira em quatro tomos foi publicada em 1963 pela Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro.
Não conheço outro trabalho que, a partir dos arquivos secretos alemães, ilumine tão ampla e minuciosamente a ascensão e o desmoronamento do nazismo e a personalidade de Hitler.
William Shriver que viveu na Alemanha como correspondente do Chicago Tribune de 1926 a 1941, foi um observador privilegiado da História nesse período.
Quando a sua obra me chegou às mãos eu acabava de ler uma tradução do Mein Kampf (A Minha Luta), de Adolph Hitler, definido pelo Ministério da Educação nazi como “a infalível estrela polar pedagógica”.
Como foi possível, perguntava-me, que tenha chegado a chanceler do Reich (chamado pelo marechal Hindenburgo) um tresloucado ex-cabo austríaco que durante onze anos iria impor despoticamente a sua vontade a um povo de velha cultura, conduzindo a humanidade a uma hecatombe (mais de 40 milhões de mortos, dos quais 20 soviéticos e 8 alemães)?
Shriver, um liberal americano do qual me distancio ideologicamente, ajudou-me a entender melhor Hitler e a marcha para o abismo da Alemanha. Empurrou-me, aliás, para uma releitura do Mein Kampf.
No seu único livro – o mais vendido no país durante anos – Hitler expõe, afinal, numa linguagem primária, a sua concepção louca e megalômana do mundo e esboça o projeto que o levaria ao poder, à guerra e à destruição da Alemanha.
Na sua opinião, “o Estado Tribal deve agir de modo a que tudo gire em torno da raça (…) providenciar para que apenas às pessoas sadias seja conferido o direito de procriar”.
Caberia aos arianos (os alemães seriam o seu ramo mais puro) dominar o mundo, mas as decisões seriam tomadas por um só homem. Somente ele (Hitler), liderando o povo predestinado, “poderá exercer a autoridade e o direito de commando”.
A Nova Ordem
O que parecia uma impossibilidade absoluta aconteceu. E não é surpreendente que, ao tomar o poder com a aprovação do Reichstag, Hitler tenha principiado a levar à prática, a Nova Ordem que idealizara. A destruição da cultura alemã e mundial, acumulada durante séculos, surgiu-lhe como necessidade.
As fogueiras de obras clássicas foram realizadas nas praças públicas com o aplauso da juventude nazi e a indiferença do novo Exército, a Wehrmacht. Os livros de autores como Heine, Thomas Mann, Einstein, Freud, Proust, Gide, Zola, H.G.Wells foram queimados perante multidões entusiasmadas. Dirigindo-se aos estudantes, Goebells, ministro da Propaganda comentou: “Estas chamas não só iluminam o final de uma velha era, mas lançam luzes sobre a nova”.
Nas universidades os programas de nazificação incluíram o ensino daquilo a que chamavam “a física alemã, a química alemã, a matemática alemã”. Na revista Deutsche Mathematik um editorial proclamou que a recusa de considerar a matemática racialmente continha “os germes da destruição da ciência alemã”.
Para Hitler, os judeus e os eslavos, sobretudo os polacos e os russos, eram uma “escória humana”. Para os primeiros concebeu a solução final, ou seja o extermínio. Quanto aos eslavos, via neles um género de escravos de novo tipo.
O general Halder, que era então o chefe do Estado Maior General da Wehrmacht, registrou no seu diário, publicado após a guerra – uma conversa que manteve dias após a invasão da Polônia com o general Eduard Wagner – que discutira com Hitler o futuro daquele país.
“Deve-se impedir, informou Wagner que a classe culta se estabeleça como classe dirigente. Deve-se manter um baixo padrão de vida. Escravos baratos…”.
Heydrich, o lugar-tenente de Himmler, comunicou ao general Wagner que era preciso “limpar a casa dos judeus, e da classe culta, da nobreza e do clero”.
Hanz Frank, nomeado governador da área do país não anexada ao Reich, declarou ao tomar posse do cargo: “Os polacos deverão ser escravos do Reich alemão”. E, dirigindo-se a um jornalista nazi, afirmou: “Se eu ordenasse que fossem afixados cartazes por cada sete polacos fuzilados não haveria florestas suficientes na Polónia para a fabricação de papel para esses cartazes”.
Em l943, em Poznan, na Polônia, Himmler, num discurso oficial, declarou aos jovens oficiais das SS: “Se 10.000 mulheres russas caírem exaustas ao cavarem fossos anti-tanques, interessa-me somente que esses fossos sejam terminados para a Alemanha”.
Em 2 de Outubro de 1940, Hitler, num relatório secreto, escreveu: “Deve haver apenas um senhor para os polacos, um alemão (…) Todos os representantes da classe culta polaca, têm, portanto, de ser exterminados. Isso parece crueldade, mas é a lei da vida”.
Foi, porém, na URSS que a barbárie nazi atingiu o auge.
Em 16 de Julho de 1941, poucas semanas após a invasão, Hitler, no seu quartel-general, dirigindo-se os marechais do Reich, declarou: “Toda a Região do Báltico terá de ser incorporada à Alemanha. Todos os estrangeiros terão de ser evacuados da Crimeia que será colonizada somente por alemães e se transformará em território do Reich... O Fuehrer arrasará Leningrado e entrega-la-á depois aos finlandeses”.
Falando com Ciano, genro de Mussolini, Goering afirmou: “Este ano morrerão de fome na Rússia entre vinte a trinta milhões de pessoas”.
Em Setembro de 44 trabalhavam para o Reich sete milhões e meio de estrangeiros, submetidos a um regime de escravidão. Nas deportações para trabalhos forçados as mulheres eram separadas dos maridos e os filhos dos pais. Generais da Wehrmacht colaboravam no sequestro de crianças que eram enviadas para a Alemanha.
Num campo da Krup, na Renânia, os franceses que o ocuparam em 1945 encontraram trabalhadores que dormiam em canis, mictórios e antigos fornos. É útil recordar que as autoridades americanas permitiram anos depois que a família de Gustav Krup von Bohlen – julgado como criminoso de guerra em Nuremberg – recuperasse anos depois a sua imensa fortuna.
Os prisioneiros de guerra soviéticos foram tratados como animais. Dois milhões morreram no cativeiro alemão, de fome, frio e doenças. Segundo Rosenberg, o filósofo oficial do nazismo, “quanto mais prisioneiros morrerem melhor para nós”.
Os campos de extermínio
Em todos os países ocupados, a Wehrmacht, e sobretudo as SS, cometeram crimes monstruosos, massacrando milhões de pessoas. Tornaram-se símbolos da barbárie nazi duas aldeias, a checa Lidice, e a francesa Oradour sur Glane. Em ambas os moradores foram abatidos como gado.
Não há estatísticas sobre a dimensão do massacre de civis nos países ocupados, mas somente na União Soviética o total de vítimas é avaliado em alguns milhões. As novas gerações quase desconhecem a história verdadeira dos campos de extermínio, Vernichtunggslager, porque o tema é incômodo para as classes dominantes dos EUA e da União Europeia, que preferem falsificar a história da URSS nas suas campanhas anti-comunistas.
Somente na Polônia foram instalados cinco - Aushwitz, Treblinka, Belsec, Sibibor e Chelmno – que adquiriram sinistra celebridade. Visitei Aushwitz em 1981 e, transcorridas quase três décadas, guardo lembrança inapagável das horas de angústia que passei no campo medonho, hoje transformado em museu.
Quantos foram assassinados ali? Não há estatísticas confiáveis porque os registros foram destruídos quando as vanguardas do Exército Vermelho se aproximavam. R. Hoess, ex-comandante do campo, ao depor em Nuremberg, como criminoso, avaliou em 3 milhões o total dos prisioneiros ali mortos.
Recordo que ao regressar a Varsóvia, na lenta viagem noturna, não consegui trocar mais de meia dúzia de palavras com o tradutor que me acompanhava.
Aushwitz é inimaginável. Semanas depois, quando escrevi um artigo sobre aquela jornada no templo dos horrores nazis senti uma dificuldade enorme em encontrar palavras para expressar emoções e ideias. Porque Aushwitz, museu que ilumina facetas obscuras da degradação humana, coloca-nos perante a quase impossibilidade de palavras criadas por humanos transmitirem o que se sente ao descobrir o que ali aconteceu.
Diariamente nas câmaras de gás eram abatidos 6.000 prisioneiros.
O aspecto do lugar não é o que tinha em 1944.
Antes, relvados com flores encimavam as câmaras.
Uma náusea quase me fez vomitar quando o guia, falando com lentidão, informou que uma orquestra de belas jovens vestidas de branco e azul recebia os prisioneiros à entrada das câmaras executando trechos de operetas vienenses e francesas.
Era ao som dessas melodias que as vítimas cruzavam a porta na convicção de que iriam tomar “um duche”.
Fechada a porta, serventes de turno abriam os respiradouros, invisíveis nos relvados, e os cristais de Zyklon B (acido prússico), produzido por empresas associadas da gigante da indústria química I B Farben, eram introduzidos na câmara e transformavam-se no gás letal.
Quando os carrascos SS, que observavam tudo por vigias envidraçadas, concluíam que a matança, rápida, findara, a porta era aberta.
Prisioneiros – abatidos posteriormente – removiam os cadáveres. Em Aushwitz, ao contrário de outros campos, as SS pretendiam evitar “por motivos humanitários” que os prisioneiros soubessem que iriam ser gaseados.
Shriver cita o depoimento de Reitlinger, uma testemunha da “operação de limpeza”.
“A primeira tarefa deles consistia em remover o sangue e as fezes antes de separar e arrastar com cordas e ganchos aqueles corpos agarrados uns aos outros, prelúdio da busca ao ouro e da remoção dos dentes e cabelos, considerados materiais estratégicos pelos alemães. Depois, o transporte, em elevador ou vagão, para os fornos, o moinho que os reduzia a cinzas muito finas e o caminhão que as espalhava nas águas do Sola”.
As cinzas, contudo, também eram utilizadas como fertilizantes. O ouro dos dentes era depositado no Reichsbank, numa conta especial das SS.
A construção dos fornos crematórios, segundo ampla documentação existente nos arquivos do Reich, era atribuída por concurso às empresas que sabiam a que fim eles se destinavam.
Mas quando o número de execuções aumentou, as câmaras de gás e os fornos não podiam ultrapassar a capacidade máxima para que estavam programadas. As SS recorreram então, paralelamente, a fuzilamentos em massa. Os cadáveres eram depois lançados em grandes fossas, aí queimados, e, depois, bulldozers, cobriam tudo com terra.
É insignificante hoje o número de jovens que nos países da União Europeia e nos EUA tem uma noção, mesmo superficial, do que foram os campos de extermínio do III Reich. Os programas de História nas escolas, com poucas exceções, são omissos a respeito do assunto. O apagamento da memória no tocante aos crimes do fascismo é a regra.
Mas sobreviventes da minha geração, prestes a desaparecer, aqueles que visitaram Aushwitz, não podem esquecer o que ali viram e ouviram evocar.
Em noites de insônia revejo-me a caminhar pelas salas do museu de horrores. Impossível esquecer os espaços envidraçados onde se acumulavam milhares de sapatos das crianças que as SS gaseavam, e os cabelos de mulheres, cortados minutos antes de serem introduzidas nas câmaras da morte. Recordo então também, com nitidez, a macabra exposição de objetos e “produtos” que alguns prisioneiros eram ali obrigados a fabricar, como margarina confeccionada com gordura humana, abat-jours de candeeiros cuja matéria foi a pele de pessoas exterminadas no campo.
Impossível – repito – esquecer.
Conspirações
É um facto que na Alemanha houve desde a ascensão de Hitler ao Poder gente que se opôs ao nazismo. Mas na prática somente os comunistas o combateram frontalmente. O preço dessa resistência foi aliás muito alto. Thalmann, o secretário-geral do Partido, morreu num campo de concentração. Na burguesia, o nível da conspiração contra o regime foi sempre baixo, o que explica o desconhecimento pela Gestapo das atividades de altas personalidades que, mesmo antes de Munique, se reuniam com os objetivos de derrubar Hitler para evitar a guerra.
Mas foi somente após Stalingrado que nas Forças Armadas surgiu uma organização conspirativa que se propunha a eliminar Hitler. A ela aderiram marechais e generais da Wehrmacht e o próprio chefe de estado-maior general, o general Halder.
Muitos desses oficiais tinham durante anos apoiado Hitler sem restrições. Quando a derrota do Reich lhes apareceu como inevitável, concluíram que somente eliminando Hitler se impediria a destruição total do país. Acreditavam ingenuamente que poderiam negociar uma paz satisfatória pelo menos com a Grã-Bretanha e os EUA.
O atentado contra o Fuhrer, em 20 Julho de 1944, no Quartel-general de Rastenburg, na Prússia Oriental, foi preparado minuciosamente com muita antecedência. Mas fracassou devido a um imprevisto, porque a pasta que continha a bomba foi desviada do lugar onde o coronel Stauffenberg a tinha colocado, perto de Hitler.
A Alemanha entrara na agonia e o próprio Quartel-general foi apressadamente transferido para Berlim.
Mas a repressão assumiu proporções gigantescas, sem precedentes na breve história do Reich. Atingiu três marechais Witzleben, Kluge e Rommel – e o general Beck, ex-chefe do Estado-maior. O primeiro foi enforcado, os outros foram obrigados a suicidar-se. Os chamados Tribunais do Povo condenaram à força ou ao fuzilamento, em julgamentos de farsa, milhares de militares e civis implicados na conspiração.
Segundo uma fonte citada por William Shriver, a Gestapo prendeu 7.000 pessoas e da lista de condenados à morte constam 4.980 nomes, entre os quais os do almirante Canaris, chefe da Abwehr, e os de dezenas de generais e oficias superiores.
Na opinião de todos os historiadores do Reich, a perturbação mental de Hitler, que se acentuara após as últimas derrotas militares, agravou-se muito a partir do atentado de julho.
Epílogo da tragédia
Nas últimas semanas da guerra, todos os hierarcas do Reich estavam conscientes de que a guerra estava perdida e prestes a findar com a tomada de Berlim. Excepto Hitler. Doente, desesperado, mergulhara num estado de histeria permanente, imaginando planos loucos de vitória. Acreditava que as V1 e V2, as bombas voadoras, destruiriam Londres (as rampas de lançamento já haviam sido destruídas pela Royal Air Force) e que os primeiros aviões de combate a jato varreriam dos céus a aviação anglo-americana (a maioria desses caças pioneiros foram destruídos no solo pelos bombardeamentos).
Hitler emitia as ordens mais estapafúrdias, admitindo inclusive que o cerco de Berlim findaria com a chegada do exército do general Steiner (que já se desintegrara). Mas ninguém, então, o escutava.
Nos últimos dias acusou de traição Goering e Himmler. A 30 de Abril suicidou-se no bunker da chancelaria.
Como foi possível – insisto – que tal homem tomasse o poder na Alemanha, instaurasse nela um regime de terror e desencadeasse a mais mortífera guerra da História?
Como é possível – coloco a questão – que governantes e intelectuais que se apresentam como paladinos da liberdade e da democracia se empenhem hoje em deformar e falsificar a História, esforçando-se por apagar a memória do fascismo reichiano, enquanto tudo fazem para satanizar o socialismo (e o comunismo), única alternativa à barbárie do capitalismo em crise?
Como é possível que os governos e a grande mídia da Europa assistam com indiferença à ascensão na Holanda, na Áustria e nos países bálticos de organizações fascistas e despejem calúnias contra os trabalhadores gregos que lutam nas ruas em defesa dos seus direitos?
Como é possível que dezenas de milhões de norte-americanos manifestem apreço pela política do governo neofascista da Colômbia, aceitem passivamente o bloqueio a Cuba e expressem simpatia pela histérica campanha contra a Ilha socialista transformada, de repente, em assunto do dia?
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