Por Altamiro Borges
“Alckmin resumiu, com um simplismo e uma pressa
inadmissíveis para quem ocupa um cargo como o seu, a versão da PM de que as
mortes se deveram à resistência dos ‘julgadores’ e do ‘acusado’... Mesmo que
tenha havido de fato resistência dos suspeitos mortos, ela não basta para
explicar o que houve em Várzea Paulista. O número elevado de mortes para um
confronto como esse indica claramente que a operação foi mal planejada”, afirma
o jornalão, que conclui alertando para o risco da posição do atual governante:
“Quem não reagiu está vivo”. A frase do governador Geraldo
Alckmin (PSDB), dita logo após a operação da Ronda Ostensiva Tobias de Aguiar
(Rota) que resultou na morte de oito suspeitos de ligação com o Primeiro
Comando da Capital (PCC), na quarta-feira passada, continua causando mal-estar
em São Paulo. Até o Estadão, famoso pelo seu conservadorismo e pelo alinhamento
ao tucanato, criticou ontem (15) a postura truculenta do governador no artigo
intitulado “comportamento lamentável”.
“A posição do governador Alckmin é particularmente delicada.
E não só porque está adiantando conclusões que não podem ser tiradas antes da
apuração dos fatos. É, também, porque, ao fazer isso, como tem a PM sob seu
comando, ele está indiretamente incentivando a corporação a agir sem os
necessários cuidados, a começar pelo correto planejamento das suas operações.
Não é disso que a PM precisa para melhorar seu desempenho na luta contra o
crime. É de coragem para corrigir falhas, o que começa por reconhecê-las”.
Mas a crítica mais dura à ação da PM e à declaração
fascistóide do tucano foi publicada hoje na Folha. Ela é assinada pela
psicanalista Maria Rita Kehl, que integra a Comissão da Verdade do governo federal.
Para a reconhecida defensora dos direitos humanos, o governador Geraldo Alckmin – que muitos
esquecem que sempre manteve vínculos com a seita fascista Opus Dei – usou a
mesma retórica dos matadores da ditadura militar. Reproduzo o artigo na
íntegra:
*****
O veredicto de Geraldo Alckmin
MARIA RITA KEHL
"Quem não reagiu está vivo", disse o governador de
São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos
bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em
seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência
será rigorosamente apurada.
Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito,
quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado
pela PM que responde ao comando dele.
"Resistência seguida de morte": assim agentes das
Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer
justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela
volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a
sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto
entre 1964 e 1985.
Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer
manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca
para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes,
trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje
desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias
-tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).
Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de
milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não
conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas
de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias
totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos
"suicídios".
Herzog
A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se
preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na
cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros
"suicidados" sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o
suicídio por enforcamento com "suspensão incompleta", na expressão do
legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista
Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.
Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir
de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para
encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela
das pessoas de bem que imaginam que a suposta "mão de ferro" do
governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.
Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem
recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas -qualificação
que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam
como polícias militares- compromete a segurança de todos os cidadãos.
Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista,
cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é
preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de
invariavelmente só atirar para matar - frequentemente com mais de um tiro.
Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem
pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma
menor de idade, que acabava de ser julgado pelo "tribunal do crime"
do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os
bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que
foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.
Aliás, o "tribunal do crime" acabara de inocentar
o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do
próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da
ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e
feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica
covarde dos matadores da ditadura -"resistência seguida de morte", em
versão atualizada: "Quem não reagiu está vivo".
Camorra
Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a
diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública
do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos
de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na
rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de "resistência
seguida de morte", numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra.
Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por
aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e
desaparecidos no período militar.
Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de
ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para
saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das
ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos
cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou
495 pessoas em 2006.
Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folha de
13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os
assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou
68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da
lei?
Assassinatos
A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o
Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos
cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim
da ditadura civil-militar.
Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e
desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para
conseguir justiça. Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê
da democracia.
Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não
seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do
governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela
Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de
agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar
prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de
mando acima deles.
Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada,
quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das
chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua
autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?
Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida
depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da
polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves
violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a
eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos
e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de
traficantes?
Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo
tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução
de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as
ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil
diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.
"Chame o ladrão", cantava o samba que Chico
Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje "os
homens" não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados,
mas continuam a arrastar moradores "suspeitos" das favelas e das
periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um
baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.
Pela culatra
Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela
culatra. "Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer
comendo açúcar", teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto
em 1987.
E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de
apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que
parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O
Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação - portanto,
contra os interesses da sociedade que pretende governar.
O Estado, ao mentir, perde legitimidade - quem acredita nas
"rigorosas apurações" do governador de São Paulo? Quem já viu algum
resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante
a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho... O Estado mente - e desampara
os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem
recorrer, então?
A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das
autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da
lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua
própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais
violência para se sustentar.
Nunca tive dúvidas de que esse governador exterminador é um assassino nato. Não sei que tipo de transtorno o acomete, mas ele está no lugar certo para praticar a sua loucura.
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