Por Marcelo Semer, no blog Sem Juízo:
Se a intenção de artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque era se precaver contra possíveis deméritos em suas biografias, não há dúvidas que o tiro saiu pela culatra.
Associar a compositores como eles, cuja arte se relaciona de forma íntima com a liberdade arrancada a fórceps da ditadura, qualquer forma de censura, é a pior mácula que poderiam fazer às suas próprias biografias. Nem um historiador desatento ou um jornalista leviano conseguiriam provocar tamanho estrago.
Ninguém duvida que a liberdade de expressão, o direito à informação e a privacidade são valores constitucionais que exigem maleabilidade ao serem confrontados, de modo que o absolutismo de um não possa sufocar as demais garantias.
Mas a ideia de censura prévia, inerente na necessidade de autorização do biografado, presume, desde logo, o excesso da expressão. E a este ponto, a Constituição brasileira não chegou.
A questão, por certo, não se resume às biografias, pois tem sido fortemente discutida quando da proibição de publicação de artigos na imprensa.
Deve ser apreciada, no entanto, segundo a base estrutural fincada na Constituição cidadã.
No art. 5º, IV, a CF afirma que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; no inciso seguinte, assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
No inciso IX do mesmo artigo, reitera que é “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, e, quando, no inciso X, afirma serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, prevê que seja “assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Se de um lado utiliza reiteradamente o vocábulo livre para conferir o direito, por outro ressalva o agravo (pela resposta ou indenização) em razão dos excessos.
A Constituição ainda assegura a “todos o acesso à informação” (5º, inciso XIV) –que não é um direito do jornalista (mas do cidadão)- e acrescenta, em seu art. 220, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição” fora os da própria Carta.
E cuidando ainda do âmbito das comunicações, acrescenta que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação” (220, §1º). Reitera, mais uma vez, ser vedada “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (§2º).
O mínimo que podemos concluir da repetição desses dispositivos é que, por uma decisão política, a Constituição foi múltipla na proteção da liberdade de expressão (na informação, na escrita ou na arte) e todas as vezes em que tangencia a violação da honra e da privacidade prevê mecanismos de resposta e indenização –jamais de autorização ou censura prévias.
Toda expressão que colide com direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, na propagação do ódio racial, pode ser objeto de punição. Mas isso não significa que se deva tutelar previamente os discursos, sob a égide de um ilimitado princípio da presunção –que, no fim das contas, sobre quem quer que recaia o controle, inevitavelmente fará ressurgir a censura.
A eventualidade do dano não permite a cassação de um direito –porque nem a liberdade artística nem a informação são concessões que, dentro de uma democracia, devam depender de autorização.
A validade das regras restritivas do Código Civil (que exigem autorização do biografado) estão sendo submetidas ao STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade.
A ministra relatora Carmen Lúcia designou uma audiência pública para discutir o tema –muito embora a discussão, com o sensacionalismo típico da grande imprensa e o emocionalismo característico das redes sociais, acabou por torná-la mais pública ainda do que se previa.
É bom lembrar que, se de um lado o Supremo fulminou a lei de imprensa por seu legado autoritário, de outro ainda não se posicionou firmemente contra a possibilidade de censura prévia judicial. A questão, portanto, tem tudo para provocar polêmica também nos espaços forenses.
Nossos melhores artistas nos ajudaram a contornar a forte censura e nos ensinaram a conviver com as dores e as delícias da liberdade.
Seria um despropósito que por interesses corporativos colaborassem com um retrocesso.
Se a intenção de artistas como Caetano Veloso e Chico Buarque era se precaver contra possíveis deméritos em suas biografias, não há dúvidas que o tiro saiu pela culatra.
Associar a compositores como eles, cuja arte se relaciona de forma íntima com a liberdade arrancada a fórceps da ditadura, qualquer forma de censura, é a pior mácula que poderiam fazer às suas próprias biografias. Nem um historiador desatento ou um jornalista leviano conseguiriam provocar tamanho estrago.
Ninguém duvida que a liberdade de expressão, o direito à informação e a privacidade são valores constitucionais que exigem maleabilidade ao serem confrontados, de modo que o absolutismo de um não possa sufocar as demais garantias.
Mas a ideia de censura prévia, inerente na necessidade de autorização do biografado, presume, desde logo, o excesso da expressão. E a este ponto, a Constituição brasileira não chegou.
A questão, por certo, não se resume às biografias, pois tem sido fortemente discutida quando da proibição de publicação de artigos na imprensa.
Deve ser apreciada, no entanto, segundo a base estrutural fincada na Constituição cidadã.
No art. 5º, IV, a CF afirma que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; no inciso seguinte, assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.
No inciso IX do mesmo artigo, reitera que é “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, e, quando, no inciso X, afirma serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, prevê que seja “assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Se de um lado utiliza reiteradamente o vocábulo livre para conferir o direito, por outro ressalva o agravo (pela resposta ou indenização) em razão dos excessos.
A Constituição ainda assegura a “todos o acesso à informação” (5º, inciso XIV) –que não é um direito do jornalista (mas do cidadão)- e acrescenta, em seu art. 220, que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição” fora os da própria Carta.
E cuidando ainda do âmbito das comunicações, acrescenta que “nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação” (220, §1º). Reitera, mais uma vez, ser vedada “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (§2º).
O mínimo que podemos concluir da repetição desses dispositivos é que, por uma decisão política, a Constituição foi múltipla na proteção da liberdade de expressão (na informação, na escrita ou na arte) e todas as vezes em que tangencia a violação da honra e da privacidade prevê mecanismos de resposta e indenização –jamais de autorização ou censura prévias.
Toda expressão que colide com direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, na propagação do ódio racial, pode ser objeto de punição. Mas isso não significa que se deva tutelar previamente os discursos, sob a égide de um ilimitado princípio da presunção –que, no fim das contas, sobre quem quer que recaia o controle, inevitavelmente fará ressurgir a censura.
A eventualidade do dano não permite a cassação de um direito –porque nem a liberdade artística nem a informação são concessões que, dentro de uma democracia, devam depender de autorização.
A validade das regras restritivas do Código Civil (que exigem autorização do biografado) estão sendo submetidas ao STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade.
A ministra relatora Carmen Lúcia designou uma audiência pública para discutir o tema –muito embora a discussão, com o sensacionalismo típico da grande imprensa e o emocionalismo característico das redes sociais, acabou por torná-la mais pública ainda do que se previa.
É bom lembrar que, se de um lado o Supremo fulminou a lei de imprensa por seu legado autoritário, de outro ainda não se posicionou firmemente contra a possibilidade de censura prévia judicial. A questão, portanto, tem tudo para provocar polêmica também nos espaços forenses.
Nossos melhores artistas nos ajudaram a contornar a forte censura e nos ensinaram a conviver com as dores e as delícias da liberdade.
Seria um despropósito que por interesses corporativos colaborassem com um retrocesso.
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