Por Saul Leblon, no sítio Carta Maior:
A afetação conservadora adicionada às páginas da Folha, um maneirismo que pouco ou nada acrescenta ao repertório original da direita, exceto pancadas de um bate-estaca monótono, talvez cause estranhamento à memória recente de seus leitores jovens. Justifica-se.
A Folha atingiria um milhão de exemplares de circulação ao final dos anos 70, (hoje caiu a 1/3 disso) atraindo amplas franjas de leitores introduzidos à vida política na esteira das mobilizações pela redemocratização.
Atilado homem de negócios, com interesses em áreas como a criação de galinhas e o mercado financeiro, Octávio Frias, dono do jornal, havia farejado novidades no vento da história.
Versátil, tratou de sintonizar seu produto, dando-lhe roupagem ecumênica, condizente com o crepúsculo do regime ditatorial iniciado em 1964.
Nomes respeitáveis da intelectualidade e da política foram incorporados à equipe de articulistas do diário, dando à Folha uma aura de caixa de ressonância do novo ciclo democrático que pedia para nascer.
Dalmo de Abreu Dallari, Eduardo Suplicy, Almino Afonso, Fernando Henrique Cardoso, Lúcio Kowarick, Plinio de Arruda Sampaio, D. Evaristo Arns, Gerardo Mello Mourão, Franklin de Oliveira, ademais de Alberto Dines, Severo Gomes, Rafael de Almeida Magalhães, entre outros, passaram a debater no jornal as aspirações de um Brasil que não cabia mais nos limites de um regime espremido pela crise econômica e pela insatisfação popular.
A verdade, porém, é que nem sempre foi assim. E, pelo visto, tampouco o será de agora em diante.
Dez anos antes desse aggiornamento empresarial, quando a consolidação do golpe civil-militar de 64 estava em xeque nas ruas, nos meios artísticos e intelectuais, a ditadura brasileira promulgou o Ato Institucional nº 5, que aboliria de vez a liberdade de expressão, de organização e de manifestação no país.
Decretado em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 queimou as caravelas da veleidade ‘constitucional’ do regime e jogou para as calendas a promessa de rápido restabelecimento democrático vinculado à convocação de novas eleições presidenciais.
A repressão asfixiaria a tal ponto a expressão política, a partir de então, que muitos viram na opção armada o único caminho disponível à resistência.
Foi nesse divisor da história, em 1969, que Octavio Frias, pai do atual diretor editorial da Folha , Otavinho, um perdigueiro na arte de farejar o mainstream , convidou Plinio Corrêa de Oliveira para escrever regularmente no jornal.
Plínio Correa, fundador e líder da seita Tradição Família e Propriedade (a TFP), era então o símbolo mais borbulhante do ponto a que pode chegar o extremismo conservador, quando a hidrofobia não se contenta em exercitar o varejo do anti-comunismo.
A TFP era uma espécie de Tea Party radicalizada.
Suas marchas de coreografia fascista, os gigantescos estandartes medievais e as pancadas secas das fanfarras sombrias, quebradas de sopros estridentes, irrompiam pelas ruas brasileiras como autênticos mensageiros do terrorismo de Estado.
Sabia-se que aquilo era o braço cenográfico da tempestade que se avizinhava no céu do país.
Se de um lado o moralismo medieval causava desconcerto e derrisão, de outro irradiava medo pelos encadeamentos sabidos com o aparato militar-empresarial que havia empalmado o país.
Bem fornida de recursos, a organização de Plinio Correa oferecia-se como uma azeitada máquina de apoio à ditadura e aos interesses do conservadorismo.
Suas campanhas evidenciavam disciplina militar e ampla cobertura, que ademais de vasculhar o Brasil atingia outros países.
Com a esquerda reprimida e perseguida, a TFP tinha as ruas à sua disposição. Não raro, seus desfiles eram protegidos por carros policiais.
Plínio Correa tinha trânsito entre militares e o empresariado. Sua determinação de funcionar como uma espécie de guardião da doutrina da fé católica funcionava como um contraponto ao clero progressista, que perseguia com ódio inexcedível.
Muito já se discutiu a funcionalidade fascistóide dessas falanges a misturar devoção religiosa fanática, de um lado, e anticomunismo visceral de outro.
A TFP tentava ser para o Brasil o que a Opus Dei, fundada em 1928, fora para o franquismo, na exacerbação do uso da fé como escudo repressor da sociedade e da esquerda espanhola.
Plínio Correa de Oliveira avocava-se um misto de Josemaría Escrivá de Balaguer, o fundador da Opus Dei, e Joseph McCarthy, o senador americano que durante a guerra fria, nos anos 50, liderou a patrulha anticomunista nos EUA.
A TFP nunca alcançou a abrangência pretendida. Mas funcionou como uma radicalização narrativa do regime, , alimentando medos e ódios, justificando preconceitos e perseguições.
A Igreja Católica foi uma das baionetas mais afiadas do golpe de 64. Mas nunca houve monolitismo nesse apoio e, a partir da radicalização opressiva do regime, ele se estiolou.
Quando Plínio Correa foi convidado por Octávio Frias a escrever na Folha, em coluna inaugural em 1969, era notório o ativismo crescente da ala progressista da Igreja – laica e de batina - contra a ditadura.
O mesmo ocorria no polo oposto da interação empresarial-militar.
O convite de Frias a Plínio era um dente dessa engrenagem em curso.
Documentos recentemente filtrados dos arquivos do Dops, de São Paulo, mostram o estreitamento das ligações do empresariado paulista com o aparato repressivo, no período mais asfixiante da ditadura, nos anos 70.
Um dos lubrificantes desse intercurso, a azeitar as relações entre a Fiesp e o Dops, era um certo ‘Dr. Geraldo’, objeto de detalhada reportagem veiculada recentemente no insuspeito ‘O Globo’ (09-03-2013).
‘Dr. Geraldo’ frequentou semanalmente os porões da tortura em São Paulo , entre 1971 a 1978.
No registro de ingresso no bunker, onde reinava soberano o delegado Sergio Paranhos Fleury, ele assinalava a sua presença notificando ao lado do nome a procedência: ‘Fiesp’.
Geraldo Resende de Mattos, o “Dr. Geraldo”, conviveu assiduamente com as câmaras do horror, duas, três vezes por semana, no período da violência de febril, quando o comandante do II Exército em SP, general Humberto de Souza Mello, havia liberado a matança dos ‘inimigos’ do regime.
Plínio Correa de Oliveira passou a escrever na Folha no escopo dessa convergência de matança e intensificação das relações entre o aparato repressivo, as fileiras do empresariado paulista e a polarização politica dentro da Igreja católico.
A exemplo de Plínio, o ‘Dr Geraldo’ era um radical de direita.
Proprietário de fabricas de vidros e lâmpadas, seu acesso ao círculo dirigente da Fiesp, segundo ‘O Globo’, foi facilitado pelo amigo do peito, o industrial Nadir de Figueiredo, um dos fundadores e por anos o mais influentes líder da entidade, cujos presidentes dependiam de seu aval para se eleger.
Como eles, o empresário dinamarquês Albert Henning Boilesen, assassinado em abril de 1971 por um comando guerrilheiro, também diretor da Fiesp/Ciesp com apoio de Nadir Figueiredo, era outro habitué dos porões da tortura no Dops.
A principal função de Boilesen na engrenagem empresarial-militar era coletar fundos para o aparato repressivo da ditadura. Consta que tinha planos de organizar algo de contundência superior à ação do Dops e da Oban.
‘Dr. Geraldo’, por sua vez, fazia a mediação direta entre o empresariado e a linha de frente da repressão.
Plínio Correa vocalizava, através da Folha, a legitimidade da luta sem trégua contra o comunismo e a degeneração dos costumes, aqui e alhures.
A endogamia do trio era perfeita.
Em 16 de setembro de 1973, por exemplo, apenas cinco dias depois do golpe de Pinochet no Chile, o líder da TFP publicaria na ‘Folha de São Paulo’ uma coluna eufórica.
O texto não apenas celebrava o golpe de Estado (cantando o ‘Magnificat’, diz no título, em menção a um hino religioso à Maria), como justificava o banho de sangue em curso.
O que era execrado em todo o mundo humanista e democrático desfrutava de um espaço de júbilo na Folha.
‘No momento em que escrevo – sexta-feira pela manhã’-- o Chile parece estar acabando de fumegar’, começava assim o artigo de Plínio na Folha. E fuzilava: ‘... a seita comunista era no Chile como um leão solto. Pôs-se a devorar, com furioso ímpeto, os membros da nação (...) Foi indispensável, para salvar o Chile, derramar sangue do leão...’ (leia ao final desse post a íntegra do texto ‘Magnificat pelo Chile’, publicado na Folha, pouco depois do golpe contra Allende).
Boilesen, o ‘Dr Geraldo’, Plínio Correa de Oliveira, Nadir Figueiredo, entre outros, de uma longa lista de sabidos e muitos ainda não investigados, não eram ilhas perdidas, mas um articulado e vulcânico arquipélago político da extrema direita em ação no país.
“(...) sabe-se que foi expressivo o fluxo de dinheiro para a repressão, a partir de coletas na Fiesp e em reuniões promovidas por Gastão de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos), e o advogado Paulo Sawaia, entre outros. Empresas como Ultragaz, Ford, Volkswagen, Chrysler e Supergel auxiliaram também na infraestrutura, fornecendo carros blindados, caminhões e até refeições pré-cozidas”, diz o mencionado texto de ‘O Globo’.
A reportagem finge ignorar, mas à detalhada lista à qual não faltou incluir até refeições ‘pré-cozidas', omitiu-se o empréstimo de viaturas da ‘Folha’ para ações camufladas do aparato repressivo em São Paulo.
Quando o regime já não se sustentava no êxito econômico e a luta armada fora derrotada, Geisel/Golbery entenderam que a hora era oportuna para afrouxar o sistema político, gradualmente.
Áulicos cronistas que hoje pontificam lições de democracia ao governo do PT, encontrariam nessa brecha uma saída honrosa para limpar a trajetória profissional marcada de cumplicidade com a ditadura.
Extremistas como Nadir Figueiredo, ademais de Plínio Correa e magnatas da ditadura, como o construtor Adolfo Lindenberg, caminhariam em sentido oposto.
Articulados à alas radicais do Exército tentaram abortar a ‘abertura’.
Perderam.
Foi nesse trânsito entre dois tempos que o velho Frias farejou a tendência vencedora e abriu o jornal à opinião democrática brasileira.
Por via das dúvidas, conservaria o líder da TFP entre os seus articulistas, até 1990.
Desse posto avançado, Plínio Correa continuaria a vociferar a agenda do grupo. Teve tempo, ainda para investir contra a reforma agrária, as greves do ABC e a eleição da então petista Luiza Erundina, em São Paulo, em 1989.
Os replicantes de hoje, não tem o mesmo peso e carecem da articulação política do original.
O ponto, porém, é que a Folha sob o comando de Otavinho, aparentemente decidiu que é hora de uma nova viragem à direita, como aquela arquitetada pelo velho Frias, em 1969.
Se o filho tem o dom paterno de se antecipar aos ventos, ou apenas enfia os pés pelas mãos na trajetória reconhecida de apequenar a herança recebida, a história dirá.
O certo é que a Folha percorre uma nova mutação.
Como as anteriores, a serviço de um certo Brasil.
Nisso seu slogan é crível.
Leia, a seguir, o artigo de Plínio Correa de Oliveira sobre o golpe no Chile, publicado na Folha de São Paulo, em 16 de setembro de 1973.
*****
"Magnificat" pelo Chile
No momento em que escrevo – sexta-feira pela manhã – o Chile parece estar acabando de fumegar. Os boatos irradiados sobretudo de Buenos Aires, Havana e Moscou não logram persuadir o grande público. E o noticiário dos jornais vai apresentando um quadro contraditório, do ponto de vista sentimental. Os gestos de alegria pela vitória se mesclam com a tristeza ou até a cólera pelo sangue vertido.
O momento da reflexão fria e lúcida já chegou. E se patenteia assim, com nitidez, a linha geral dos acontecimentos. Poucas palavras bastam para defini-la. O Governo de uma grande nação sul-americana caíra nas mãos de uma seita de fanáticos, isto é, do Partido socialista-marxista. Essa seita resolvera aplicar ao Chile – custasse o que custasse – sua doutrina materialista, igualitária, dirigista e anticristã. A partir deste fato ideológico, desdobraram-se múltiplas conseqüências políticas e econômicas. Uma série de leis socialistas e confiscatórias se foram aplicando sucessivamente ao país, sem atender ao descontentamento da maioria da opinião pública. Em conseqüência, uma crise política começou a abalar os próprios fundamentos do Estado. Também a partir do fato ideológico se desenrolou, paralelamente à crise política, uma crise econômica. O pior dos patrões é o Poder Público. Sentiram-no bem os operários das cidades e dos campos, que pouco depois de "beneficiados" pela socialização, começaram a revoltar-se contra a miséria que sobre eles ia baixando. Porque mau patrão, o Estado é mau produtor. A pobreza foi se estendendo por toda a nação como uma gangrena. As crises política e econômica somaram seus efeitos e produziram um caos. Greves imensas paralisaram o país. Ele estava à beira de uma aniquilação total.
Sobrevieram então as Forças Armadas, destituíram do poder os sectários, e estão repondo o país em condições de salvar-se.
Esta é a linha geral dos fatos, e diante dela, a única atitude que cabe é aplaudir. Pois, se é verdade que o bem comum é a suprema lei, o fato puro e simples da salvação de um país que afundava, não pode deixar de ser apoiado.
A serem coerentes consigo mesmos, os esquerdistas do mundo inteiro – que vivem a apregoar a supremacia total do bem comum – ficariam sem resposta. Mas ei-los que se transformam bruscamente em defensores dos direitos individuais, e, fechando os olhos para a salvação pública, começam a entoar pelo mundo inteiro seu De profundis laico e melado, a propósito do sangue que correu. Sangue dos esquerdistas é claro. Não dos soldados!
* * *
Esse sangue vertido, também nós o deploramos. Em outros termos, quanto preferiríamos que a trajetória ideológico-política e ideológico-econômica do Chile não tivesse conduzido o país à verdadeira catástrofe que foi a ascensão da seita marxista ao poder. Quanto fez a TFP chilena para alertar os seus conterrâneos para o perigo do progressismo "católico" e do demo-cristianismo, os quais iam empurrando sorrateiramente a nação para o precipício de onde agora ela se reergue tinta de sangue. Quanto atuaram as TFPs de todo o continente sul-americano para criar condições internacionais desfavoráveis a uma colaboração com esse processo de ruína e morte. Basta lembrar, neste sentido, a enorme difusão – que vale por uma epopéia – do best-seller de Fábio Vidigal Xavier da Silveira, "Frei, o Kerensky chileno".
Nada foi capaz de obstar a que a "saparia" chilena, conluiada com o clero esquerdista, entregasse o país a Allende.
Junto cantaram, na Catedral de Santiago, com rabinos, pastores protestantes, comunistas e terroristas, o Te Deum da vitória. E em seguida a tragédia começou. Desde logo se podia prever que, como um marxista nunca entrega voluntariamente o poder, ou ela terminaria no sangue, ou liquidaria o Chile. De fato, ela terminou em sangue, com o Chile quase liquidado. Os primeiros culpados por isto, não é difícil encontrá-los. Foram os que cantaram o estranho Te Deum ecumênico.
* * *
Libertada assim de entraves, e com o supremo poder em mãos, a seita comunista era no Chile como um leão solto. Pôs-se a devorar, com furioso ímpeto, os membros da nação. Diante de ameaças dos defensores do país, nem deixou o poder, nem cessou suas devastações. Foi indispensável, para salvar o Chile, derramar sangue do leão. Pergunto: a não ser isto, o que se deveria ter feito? Deixar o país ir à garra? – Esta pergunta só pode ter como resposta um "sim" ou um "não". Peço aos melados cantores do laico De profundis que me digam se sua resposta é "sim".
Mas, dir-se-á, deposto o governo marxista, era absolutamente indispensável atirar sobre os redutos comunistas que ainda resistiam de armas na mão? – A resposta pressupõe o conhecimento de uma série de pormenores que a imprensa não noticiou ainda, e de considerações morais que não há espaço para desenvolver aqui. Entretanto, o certo é que os militantes da resistência comunista se opõem criminosamente, e de armas na mão, à salvação do país. Seu fanatismo os leva a resistir à bala quando toda resistência já é inútil. Assim, os responsáveis principais pelo sangue ora vertido no Chile, são os que intoxicaram de doutrinas marxistas e fanatizaram os resistentes. Estes, sim, a História cristãmente imparcial os tachará sempre de criminosos.
Se do lado dos restauradores da nação houve ou está havendo excessos, a História também o dirá. E com imparcialidade igualmente cristã os censurará. Aguardemos.
Mas o fato é que a História cristãmente imparcial jamais considerará em igual plano o sangue dos fanáticos que morrem agredindo o país, e o dos heróis que tombaram na defesa deste.
Perón, dotado de meios de informação presumivelmente excelentes, admitiu como certo que a morte de Allende tenha sido por suicídio. E não hesitou em qualificar o ato desesperado do malogrado presidente, como "atitude valente”, de um homem que tem vergonha e por isso se "suicida".
Seria o caso de perguntar ao octogenário apologista do suicida se lhe faltaram valentia e vergonha quando, deposto em 1955, em lugar de se suicidar, foi viver no seu opulento exílio de Madrid.
De minha parte, como católico, só posso censurar o suicídio do teimoso chefe comunista. E lamentar que lhe tenha sido de tão pouco socorro espiritual a Bíblia pressurosamente ofertada pelo cardeal Silva Henriquez.
* * *
Em síntese, expulso do Chile o comunismo, ipso facto perdeu ele terreno no continente sul-americano. Como brasileiro e amigo do Chile alegro-me. E, sem prejulgar em minha alma pormenores que possivelmente Deus e a História não aprovem, entôo interiormente o Magnificat.
Sim, o Magnificat (*) que o cardeal Silva Henriquez por certo não estará cantando.
NR (*) É um cântico entoado (ou recitado) frequentemente na liturgia dos serviços eclesiásticos cristãos.
A afetação conservadora adicionada às páginas da Folha, um maneirismo que pouco ou nada acrescenta ao repertório original da direita, exceto pancadas de um bate-estaca monótono, talvez cause estranhamento à memória recente de seus leitores jovens. Justifica-se.
A Folha atingiria um milhão de exemplares de circulação ao final dos anos 70, (hoje caiu a 1/3 disso) atraindo amplas franjas de leitores introduzidos à vida política na esteira das mobilizações pela redemocratização.
Atilado homem de negócios, com interesses em áreas como a criação de galinhas e o mercado financeiro, Octávio Frias, dono do jornal, havia farejado novidades no vento da história.
Versátil, tratou de sintonizar seu produto, dando-lhe roupagem ecumênica, condizente com o crepúsculo do regime ditatorial iniciado em 1964.
Nomes respeitáveis da intelectualidade e da política foram incorporados à equipe de articulistas do diário, dando à Folha uma aura de caixa de ressonância do novo ciclo democrático que pedia para nascer.
Dalmo de Abreu Dallari, Eduardo Suplicy, Almino Afonso, Fernando Henrique Cardoso, Lúcio Kowarick, Plinio de Arruda Sampaio, D. Evaristo Arns, Gerardo Mello Mourão, Franklin de Oliveira, ademais de Alberto Dines, Severo Gomes, Rafael de Almeida Magalhães, entre outros, passaram a debater no jornal as aspirações de um Brasil que não cabia mais nos limites de um regime espremido pela crise econômica e pela insatisfação popular.
A verdade, porém, é que nem sempre foi assim. E, pelo visto, tampouco o será de agora em diante.
Dez anos antes desse aggiornamento empresarial, quando a consolidação do golpe civil-militar de 64 estava em xeque nas ruas, nos meios artísticos e intelectuais, a ditadura brasileira promulgou o Ato Institucional nº 5, que aboliria de vez a liberdade de expressão, de organização e de manifestação no país.
Decretado em 13 de dezembro de 1968, o AI-5 queimou as caravelas da veleidade ‘constitucional’ do regime e jogou para as calendas a promessa de rápido restabelecimento democrático vinculado à convocação de novas eleições presidenciais.
A repressão asfixiaria a tal ponto a expressão política, a partir de então, que muitos viram na opção armada o único caminho disponível à resistência.
Foi nesse divisor da história, em 1969, que Octavio Frias, pai do atual diretor editorial da Folha , Otavinho, um perdigueiro na arte de farejar o mainstream , convidou Plinio Corrêa de Oliveira para escrever regularmente no jornal.
Plínio Correa, fundador e líder da seita Tradição Família e Propriedade (a TFP), era então o símbolo mais borbulhante do ponto a que pode chegar o extremismo conservador, quando a hidrofobia não se contenta em exercitar o varejo do anti-comunismo.
A TFP era uma espécie de Tea Party radicalizada.
Suas marchas de coreografia fascista, os gigantescos estandartes medievais e as pancadas secas das fanfarras sombrias, quebradas de sopros estridentes, irrompiam pelas ruas brasileiras como autênticos mensageiros do terrorismo de Estado.
Sabia-se que aquilo era o braço cenográfico da tempestade que se avizinhava no céu do país.
Se de um lado o moralismo medieval causava desconcerto e derrisão, de outro irradiava medo pelos encadeamentos sabidos com o aparato militar-empresarial que havia empalmado o país.
Bem fornida de recursos, a organização de Plinio Correa oferecia-se como uma azeitada máquina de apoio à ditadura e aos interesses do conservadorismo.
Suas campanhas evidenciavam disciplina militar e ampla cobertura, que ademais de vasculhar o Brasil atingia outros países.
Com a esquerda reprimida e perseguida, a TFP tinha as ruas à sua disposição. Não raro, seus desfiles eram protegidos por carros policiais.
Plínio Correa tinha trânsito entre militares e o empresariado. Sua determinação de funcionar como uma espécie de guardião da doutrina da fé católica funcionava como um contraponto ao clero progressista, que perseguia com ódio inexcedível.
Muito já se discutiu a funcionalidade fascistóide dessas falanges a misturar devoção religiosa fanática, de um lado, e anticomunismo visceral de outro.
A TFP tentava ser para o Brasil o que a Opus Dei, fundada em 1928, fora para o franquismo, na exacerbação do uso da fé como escudo repressor da sociedade e da esquerda espanhola.
Plínio Correa de Oliveira avocava-se um misto de Josemaría Escrivá de Balaguer, o fundador da Opus Dei, e Joseph McCarthy, o senador americano que durante a guerra fria, nos anos 50, liderou a patrulha anticomunista nos EUA.
A TFP nunca alcançou a abrangência pretendida. Mas funcionou como uma radicalização narrativa do regime, , alimentando medos e ódios, justificando preconceitos e perseguições.
A Igreja Católica foi uma das baionetas mais afiadas do golpe de 64. Mas nunca houve monolitismo nesse apoio e, a partir da radicalização opressiva do regime, ele se estiolou.
Quando Plínio Correa foi convidado por Octávio Frias a escrever na Folha, em coluna inaugural em 1969, era notório o ativismo crescente da ala progressista da Igreja – laica e de batina - contra a ditadura.
O mesmo ocorria no polo oposto da interação empresarial-militar.
O convite de Frias a Plínio era um dente dessa engrenagem em curso.
Documentos recentemente filtrados dos arquivos do Dops, de São Paulo, mostram o estreitamento das ligações do empresariado paulista com o aparato repressivo, no período mais asfixiante da ditadura, nos anos 70.
Um dos lubrificantes desse intercurso, a azeitar as relações entre a Fiesp e o Dops, era um certo ‘Dr. Geraldo’, objeto de detalhada reportagem veiculada recentemente no insuspeito ‘O Globo’ (09-03-2013).
‘Dr. Geraldo’ frequentou semanalmente os porões da tortura em São Paulo , entre 1971 a 1978.
No registro de ingresso no bunker, onde reinava soberano o delegado Sergio Paranhos Fleury, ele assinalava a sua presença notificando ao lado do nome a procedência: ‘Fiesp’.
Geraldo Resende de Mattos, o “Dr. Geraldo”, conviveu assiduamente com as câmaras do horror, duas, três vezes por semana, no período da violência de febril, quando o comandante do II Exército em SP, general Humberto de Souza Mello, havia liberado a matança dos ‘inimigos’ do regime.
Plínio Correa de Oliveira passou a escrever na Folha no escopo dessa convergência de matança e intensificação das relações entre o aparato repressivo, as fileiras do empresariado paulista e a polarização politica dentro da Igreja católico.
A exemplo de Plínio, o ‘Dr Geraldo’ era um radical de direita.
Proprietário de fabricas de vidros e lâmpadas, seu acesso ao círculo dirigente da Fiesp, segundo ‘O Globo’, foi facilitado pelo amigo do peito, o industrial Nadir de Figueiredo, um dos fundadores e por anos o mais influentes líder da entidade, cujos presidentes dependiam de seu aval para se eleger.
Como eles, o empresário dinamarquês Albert Henning Boilesen, assassinado em abril de 1971 por um comando guerrilheiro, também diretor da Fiesp/Ciesp com apoio de Nadir Figueiredo, era outro habitué dos porões da tortura no Dops.
A principal função de Boilesen na engrenagem empresarial-militar era coletar fundos para o aparato repressivo da ditadura. Consta que tinha planos de organizar algo de contundência superior à ação do Dops e da Oban.
‘Dr. Geraldo’, por sua vez, fazia a mediação direta entre o empresariado e a linha de frente da repressão.
Plínio Correa vocalizava, através da Folha, a legitimidade da luta sem trégua contra o comunismo e a degeneração dos costumes, aqui e alhures.
A endogamia do trio era perfeita.
Em 16 de setembro de 1973, por exemplo, apenas cinco dias depois do golpe de Pinochet no Chile, o líder da TFP publicaria na ‘Folha de São Paulo’ uma coluna eufórica.
O texto não apenas celebrava o golpe de Estado (cantando o ‘Magnificat’, diz no título, em menção a um hino religioso à Maria), como justificava o banho de sangue em curso.
O que era execrado em todo o mundo humanista e democrático desfrutava de um espaço de júbilo na Folha.
‘No momento em que escrevo – sexta-feira pela manhã’-- o Chile parece estar acabando de fumegar’, começava assim o artigo de Plínio na Folha. E fuzilava: ‘... a seita comunista era no Chile como um leão solto. Pôs-se a devorar, com furioso ímpeto, os membros da nação (...) Foi indispensável, para salvar o Chile, derramar sangue do leão...’ (leia ao final desse post a íntegra do texto ‘Magnificat pelo Chile’, publicado na Folha, pouco depois do golpe contra Allende).
Boilesen, o ‘Dr Geraldo’, Plínio Correa de Oliveira, Nadir Figueiredo, entre outros, de uma longa lista de sabidos e muitos ainda não investigados, não eram ilhas perdidas, mas um articulado e vulcânico arquipélago político da extrema direita em ação no país.
“(...) sabe-se que foi expressivo o fluxo de dinheiro para a repressão, a partir de coletas na Fiesp e em reuniões promovidas por Gastão de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Itaú e Scania), Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos), e o advogado Paulo Sawaia, entre outros. Empresas como Ultragaz, Ford, Volkswagen, Chrysler e Supergel auxiliaram também na infraestrutura, fornecendo carros blindados, caminhões e até refeições pré-cozidas”, diz o mencionado texto de ‘O Globo’.
A reportagem finge ignorar, mas à detalhada lista à qual não faltou incluir até refeições ‘pré-cozidas', omitiu-se o empréstimo de viaturas da ‘Folha’ para ações camufladas do aparato repressivo em São Paulo.
Quando o regime já não se sustentava no êxito econômico e a luta armada fora derrotada, Geisel/Golbery entenderam que a hora era oportuna para afrouxar o sistema político, gradualmente.
Áulicos cronistas que hoje pontificam lições de democracia ao governo do PT, encontrariam nessa brecha uma saída honrosa para limpar a trajetória profissional marcada de cumplicidade com a ditadura.
Extremistas como Nadir Figueiredo, ademais de Plínio Correa e magnatas da ditadura, como o construtor Adolfo Lindenberg, caminhariam em sentido oposto.
Articulados à alas radicais do Exército tentaram abortar a ‘abertura’.
Perderam.
Foi nesse trânsito entre dois tempos que o velho Frias farejou a tendência vencedora e abriu o jornal à opinião democrática brasileira.
Por via das dúvidas, conservaria o líder da TFP entre os seus articulistas, até 1990.
Desse posto avançado, Plínio Correa continuaria a vociferar a agenda do grupo. Teve tempo, ainda para investir contra a reforma agrária, as greves do ABC e a eleição da então petista Luiza Erundina, em São Paulo, em 1989.
Os replicantes de hoje, não tem o mesmo peso e carecem da articulação política do original.
O ponto, porém, é que a Folha sob o comando de Otavinho, aparentemente decidiu que é hora de uma nova viragem à direita, como aquela arquitetada pelo velho Frias, em 1969.
Se o filho tem o dom paterno de se antecipar aos ventos, ou apenas enfia os pés pelas mãos na trajetória reconhecida de apequenar a herança recebida, a história dirá.
O certo é que a Folha percorre uma nova mutação.
Como as anteriores, a serviço de um certo Brasil.
Nisso seu slogan é crível.
Leia, a seguir, o artigo de Plínio Correa de Oliveira sobre o golpe no Chile, publicado na Folha de São Paulo, em 16 de setembro de 1973.
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"Magnificat" pelo Chile
No momento em que escrevo – sexta-feira pela manhã – o Chile parece estar acabando de fumegar. Os boatos irradiados sobretudo de Buenos Aires, Havana e Moscou não logram persuadir o grande público. E o noticiário dos jornais vai apresentando um quadro contraditório, do ponto de vista sentimental. Os gestos de alegria pela vitória se mesclam com a tristeza ou até a cólera pelo sangue vertido.
O momento da reflexão fria e lúcida já chegou. E se patenteia assim, com nitidez, a linha geral dos acontecimentos. Poucas palavras bastam para defini-la. O Governo de uma grande nação sul-americana caíra nas mãos de uma seita de fanáticos, isto é, do Partido socialista-marxista. Essa seita resolvera aplicar ao Chile – custasse o que custasse – sua doutrina materialista, igualitária, dirigista e anticristã. A partir deste fato ideológico, desdobraram-se múltiplas conseqüências políticas e econômicas. Uma série de leis socialistas e confiscatórias se foram aplicando sucessivamente ao país, sem atender ao descontentamento da maioria da opinião pública. Em conseqüência, uma crise política começou a abalar os próprios fundamentos do Estado. Também a partir do fato ideológico se desenrolou, paralelamente à crise política, uma crise econômica. O pior dos patrões é o Poder Público. Sentiram-no bem os operários das cidades e dos campos, que pouco depois de "beneficiados" pela socialização, começaram a revoltar-se contra a miséria que sobre eles ia baixando. Porque mau patrão, o Estado é mau produtor. A pobreza foi se estendendo por toda a nação como uma gangrena. As crises política e econômica somaram seus efeitos e produziram um caos. Greves imensas paralisaram o país. Ele estava à beira de uma aniquilação total.
Sobrevieram então as Forças Armadas, destituíram do poder os sectários, e estão repondo o país em condições de salvar-se.
Esta é a linha geral dos fatos, e diante dela, a única atitude que cabe é aplaudir. Pois, se é verdade que o bem comum é a suprema lei, o fato puro e simples da salvação de um país que afundava, não pode deixar de ser apoiado.
A serem coerentes consigo mesmos, os esquerdistas do mundo inteiro – que vivem a apregoar a supremacia total do bem comum – ficariam sem resposta. Mas ei-los que se transformam bruscamente em defensores dos direitos individuais, e, fechando os olhos para a salvação pública, começam a entoar pelo mundo inteiro seu De profundis laico e melado, a propósito do sangue que correu. Sangue dos esquerdistas é claro. Não dos soldados!
* * *
Esse sangue vertido, também nós o deploramos. Em outros termos, quanto preferiríamos que a trajetória ideológico-política e ideológico-econômica do Chile não tivesse conduzido o país à verdadeira catástrofe que foi a ascensão da seita marxista ao poder. Quanto fez a TFP chilena para alertar os seus conterrâneos para o perigo do progressismo "católico" e do demo-cristianismo, os quais iam empurrando sorrateiramente a nação para o precipício de onde agora ela se reergue tinta de sangue. Quanto atuaram as TFPs de todo o continente sul-americano para criar condições internacionais desfavoráveis a uma colaboração com esse processo de ruína e morte. Basta lembrar, neste sentido, a enorme difusão – que vale por uma epopéia – do best-seller de Fábio Vidigal Xavier da Silveira, "Frei, o Kerensky chileno".
Nada foi capaz de obstar a que a "saparia" chilena, conluiada com o clero esquerdista, entregasse o país a Allende.
Junto cantaram, na Catedral de Santiago, com rabinos, pastores protestantes, comunistas e terroristas, o Te Deum da vitória. E em seguida a tragédia começou. Desde logo se podia prever que, como um marxista nunca entrega voluntariamente o poder, ou ela terminaria no sangue, ou liquidaria o Chile. De fato, ela terminou em sangue, com o Chile quase liquidado. Os primeiros culpados por isto, não é difícil encontrá-los. Foram os que cantaram o estranho Te Deum ecumênico.
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Libertada assim de entraves, e com o supremo poder em mãos, a seita comunista era no Chile como um leão solto. Pôs-se a devorar, com furioso ímpeto, os membros da nação. Diante de ameaças dos defensores do país, nem deixou o poder, nem cessou suas devastações. Foi indispensável, para salvar o Chile, derramar sangue do leão. Pergunto: a não ser isto, o que se deveria ter feito? Deixar o país ir à garra? – Esta pergunta só pode ter como resposta um "sim" ou um "não". Peço aos melados cantores do laico De profundis que me digam se sua resposta é "sim".
Mas, dir-se-á, deposto o governo marxista, era absolutamente indispensável atirar sobre os redutos comunistas que ainda resistiam de armas na mão? – A resposta pressupõe o conhecimento de uma série de pormenores que a imprensa não noticiou ainda, e de considerações morais que não há espaço para desenvolver aqui. Entretanto, o certo é que os militantes da resistência comunista se opõem criminosamente, e de armas na mão, à salvação do país. Seu fanatismo os leva a resistir à bala quando toda resistência já é inútil. Assim, os responsáveis principais pelo sangue ora vertido no Chile, são os que intoxicaram de doutrinas marxistas e fanatizaram os resistentes. Estes, sim, a História cristãmente imparcial os tachará sempre de criminosos.
Se do lado dos restauradores da nação houve ou está havendo excessos, a História também o dirá. E com imparcialidade igualmente cristã os censurará. Aguardemos.
Mas o fato é que a História cristãmente imparcial jamais considerará em igual plano o sangue dos fanáticos que morrem agredindo o país, e o dos heróis que tombaram na defesa deste.
Perón, dotado de meios de informação presumivelmente excelentes, admitiu como certo que a morte de Allende tenha sido por suicídio. E não hesitou em qualificar o ato desesperado do malogrado presidente, como "atitude valente”, de um homem que tem vergonha e por isso se "suicida".
Seria o caso de perguntar ao octogenário apologista do suicida se lhe faltaram valentia e vergonha quando, deposto em 1955, em lugar de se suicidar, foi viver no seu opulento exílio de Madrid.
De minha parte, como católico, só posso censurar o suicídio do teimoso chefe comunista. E lamentar que lhe tenha sido de tão pouco socorro espiritual a Bíblia pressurosamente ofertada pelo cardeal Silva Henriquez.
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Em síntese, expulso do Chile o comunismo, ipso facto perdeu ele terreno no continente sul-americano. Como brasileiro e amigo do Chile alegro-me. E, sem prejulgar em minha alma pormenores que possivelmente Deus e a História não aprovem, entôo interiormente o Magnificat.
Sim, o Magnificat (*) que o cardeal Silva Henriquez por certo não estará cantando.
NR (*) É um cântico entoado (ou recitado) frequentemente na liturgia dos serviços eclesiásticos cristãos.
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