quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O rei do camarote e o mito do vencedor

Por Matheus Pichonelli, na revista CartaCapital:

“Estou há 40 anos sem fazer sexo, diz Mama Bruschetta”. “Miss Bumbum 2013: Confira as Finalistas”. “Bieber visitou baladas e casas de massagem”. “Pegadinha do enforcado causa polêmica”. “Chris Fernandes perde óculos em mergulho”. “Mulher Filé mostra demais com saia curta e rasgada”. “Bruna Marquezine mostra novo visual”. “Vitamina C, miojo e cueca: os pedidos dos artistas do Planeta Terra”. “Lady Gaga vai a premiação nos EUA com dentadura bizarra”. “Namorada de Roberto Justus faz pose em fotos na piscina; veja”. “Vote no duelo das mães saradas”. “Sinto falta de Seu Madruga, diz atriz que faz Chiquinha em Chaves”.

Na segunda-feira, 4, estas eram algumas das chamadas de três dos principais portais de notícias (repito: notícias) do País. Pela lógica entre produção e consumo, imagina-se que o grosso da audiência não esteja em qualquer biblioteca, centro cultural, diário oficial da União, portais de transparência ou página dedicada a fãs de Dostoiévski.

Não dá para saber quem nasceu primeiro na internet: clica-se muito porque o conteúdo é cruel ou o conteúdo é cruel porque clica-se muito? Tampouco dá para saber o que move o clique: se a patologia humana ou se a simples curiosidade mórbida de quem nada quer da vida a não ser acalmar o próprio espírito: “sou um fracasso, mas ao menos somos muitos”.

Para quem entra e sai da vida sem deixar uma linha para a posteridade, não deve haver exercício mais excitante do que observar a celulite da musa, a gafe da socialite, os erros de português da loira do Tchan, o barraco público-privado da atriz da novela ou a falência, moral e física, do bilionário excêntrico.

Dá gosto saber que a idiotice é um patrimônio da humanidade, mas dói saber que fazemos parte disso.

Por isso precisamos, de tempos e tempos, salvar nossa dignidade desancando a indignidade alheia. É o que possibilita ao mesmo portal escrever em destaque nobre: “Rei do Camarote vira meme na internet; entenda”. É um fenômeno dentro do fenômeno: o meme, nascido e alimentado na internet, repercute e vira tema de repercussão na própria internet, em um exercício elástico de metalinguagem com direito ao “entenda” para as almas menos favorecidas (explicar o sistema de partilha do pré-sal não deve ser mais desafiador).

O alvo da vez é um sujeito de 39 anos que se gaba de gastar cinco mil reais por noite em uma balada. Como ele, existem muitos. Mas poucos teriam a petulância ingênua de gravar em dez minutos a confissão da própria inutilidade: pra ir para a balada é preciso se vestir com as melhores roupas das melhores grifes; tem que ter um carro potente, um carro que chama atenção, que toda mulher gosta; na pista, você é mais um, na área VIP, você ganha evidência; eu pago para as pessoas servirem os meus convidados; vou pra balada com meus seguranças para garantir a minha integridade física; as pessoas têm inveja de mim, preciso ter cuidado com a minha vida e meus bens; as pessoas conhecidas, da mídia, quando frequentam o seu camarote, agregam; camarote tem que ter mulheres, se não, é como comprar um Boing e ter um piloto de teco-teco para pilotar; quem tá no camarote tem que ter o Instagram; aqui posso gastar até o infinito.

O tom de deboche torna custoso imaginar que a pessoa é real. Como foi custoso – e prazeroso – saber que alguém como o conde Chiquinho Scarpa atingia por nós o auge da estupidez humana ao enterrar no quintal de casa o carro de luxo pelo qual sofria ao se desgarrar. Nós, que não temos quintais nem carros de luxo para lamentar, passamos horas, dias inteiros a debater a futilidade do ato, como se ela fosse inédita, para cravar posição: sabemos que somos melhores do que isso, e isso nos revigora. Mas qual não foi a surpresa quando o mesmo Chiquinho Scarpa levantou o automóvel dos mortos para ressuscitar a velha pegadinha do Malandro: tratava-se de uma campanha de incentivo a doações de órgãos – que, como um automóvel enterrado, não têm qualquer utilidade quando seguem para debaixo da terra com tantas pessoas esperando um transplante. Pode não ter sido a mais brilhante das mensagens, mas poucos souberam usar tão bem a nossa própria hostilidade para virar assunto e, a partir deste assunto, engordar uma campanha que passaria batida em condições normais de pressão e temperatura. Isso é marketing em estado bruto, para o bem ou para o mal.

Essa mesma curiosidade mórbida ao que é vil transformou o pobre menino rico do camarote na origem dos males do Brasil quando na verdade ele é um sintoma desses males: a origem está ao seu redor, a começar pela retroalimentação do lixo caça-clique, passando pela ideia de que na vida o que importa é se diferenciar na simples multidão - como se a mega noite de sábado o livrasse do tédio ordinário das tardes de domingo.

No vídeo, o pobre menino rico se pergunta: quem não queria estar no meu lugar? “Não queremos”, disse o país inteiro que se pôs a rir do personagem. Se ele de fato existir, ele é o resultado mais ingênuo – porque se deixou flagrar – de uma multidão em nossa volta a enfiar o dedo nas nossas caras e dizer o tempo todo que é preciso ser assim e assado: é preciso ser diferenciado, é preciso ter bom gosto, é preciso ter requinte, é preciso tirar fotos nos pontos turísticos, é preciso mostrar a todos o quanto estamos dispostos a gastar nas nossas casas, nas nossas festas, nas festas de nossos filhos, nos motores de nossos carros. Que é preciso, enfim, comprar de tudo o que não é necessário para alimentar a alma e adentrar em bolhas de ar rarefeito recheadas de afetação.

Atire a primeira pedra no pobre-menino-rico quem não se encantou com um comercial recente de automóvel a mostrar um garoto ganhando uma “peça” do carro cada vez que passava de ano, tirava boas notas na escola ou, já adulto, conseguia um bom trabalho. O último componente, obtido em uma concessionária, é acompanhado de uma mensagem edificante: "porque esta conquista vem de longe".

O pobre-menino-rico é o bobo do lado de lá da tevê que acreditou na conversa. Mal sabe ele que não há conquista maior do que o cansaço físico de uma pedalada ou uma caminhada sem direção, do riso não abafado no boteco ao fim do trabalho, das alegrias dos encontros fortuitos, dos abraços gratuitos, de um e-mail não esperado, e de tudo o que a gente ganha sem precisar pagar por nada. Mas isso é para os comuns, e os comuns não rendem cliques. Para ganhar clique, é preciso levantar as asas das subcelebridades, abatê-las em voo e faturar com seus destroços.

A dor da gente não sai no jornal, dizia a música de Chico Buarque. Na internet, ela é escancarada até o limite do grotesco para atrair os urubus. Malhar o pobre menino-rico, cujo único status - o de cachorro-morto - é desconhecido por ele mesmo, não é outro ato se não cercar com cordão sanitário a nossa área VIP imaginária. Uma área VIP que só na imaginação nos protege dos monstros que ajudamos a criar e alimentar na base do clique, da miséria e do mito do vencedor.

Em tempo. Em sua crônica no domingo passado, na Folha de S.Paulo, o escritor Antonio Prata fez até aqui a mais bem-feita parodia da direita amedrontada a repetir clichês para não assumir os próprios pânicos. Foi, mais que uma aula de ironia, um sopro de esperança entre tantos cães de caça treinados e espalhados em espaço nobre da imprensa. Essa esperança foi também abatida em voo com a reação dos leitores nascidos sem o gene da ironia: uns aplaudiam a coragem em escancarar tantas verdades, outros lamentavam as falas "preconceituosas" do autor. Um país que não entende ironia não pode se queixar de seus tantos reis de camarotes projetados em escala industrial.

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