Por Leonardo Sakamoto, em seu blog:
A PEC do Trabalho Escravo, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas em que esse crime for flagrado e sua destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, está para ser votada no Senado nesta semana.
Para quem acompanha a ideia, apresentada pela primeira vez no Congresso Nacional há 18 anos, pode estar se perguntando: “ah, vá! Mas não tem truque por trás dessa notícia boa?'' Tem sim, daí reside o problema.
A pressão de governo federal, parlamentares favoráveis à proposta, sociedade civil, sindicatos, artistas e intelectuais e algumas entidades que reúnem empresas conseguiu aprovar a proposta em segundo turno na Câmara, em maio do ano passado, e a pautar o tema no Senado. A matéria teve que voltar para lá pois sofreu modificações por deputados federais, em 2004, antes da aprovação em primeiro turno.
Os contrários à ideia, porém, bateram o pé: a PEC só seria colocada em votação pelos senadores caso uma regulamentação fosse discutida antes, a fim de ser aprovada logo após a votação da PEC. Ou seja, se os termos e procedimentos para o confisco fossem colocados no papel. Até aí, tudo bem.
Mas, no meio do caminho, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação, atendeu ao pedido da bancada ruralista e usou um conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição mais restrita.
É, garotada… É isso mesmo que vocês leram.
Para ajudar a entender, façamos paralelos: aceita-se punir casos de estupro. Mas só nos casos em que a vítima for ameaçada com arma de fogo. Caso contrário, não vale. Ou aceita-se punir homicídios. Desde que o bandido tenha gravado um vídeo com o assalto e postado no YouTube ou em seu Instagram. Enfim, aceitamos criar uma nova lei para punir o crime desde que seja usada a nossa definição e não aquela que está na lei vigente. Bizarro, né?
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
(Um pequeno parênteses: não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho.)
A legislação brasileira, pasmem, é de vanguarda, pois leva isso em conta. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo. Qualquer pessoa que veja as fotos de um resgate de escravos entende isso perfeitamente. Mas alguns senadores, não.
Vira e mexe ouve-se o argumento de que fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. Cascata da grossa. Afinal de contas, qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas até uma ostra saudável sabe que não são essas as autuações que configuram trabalho escravo.
Colega jornalistas de Brasília, se ouvir esse bla-bla-blá, peça para o deputado comentar sobre o teor de outras 30 autuações que o fazendeiro em questão deve ter recebido. É esse conjunto, que exclui o trabalhador de sua dignidade que configura trabalho escravo. Ou solicite-as à Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Já fizemos uma aposta: qualquer pessoa que provar que um caso de trabalho escravo se configurou apenas pelo beliche ou o copo plástico, a gente encerra os trabalhos.
Ruralistas também disseram que querem que o Brasil use a Organização Internacional do Trabalho como referência. Ótimo, podem preparar a passagem do diretor geral da organização, Guy Ryder, que fica em Genebra, na Suíça, que ele vai dizer que apoia a definição brasileira. Ou batam na porta do escritório da instituição, em Brasília, que a diretora, Laís Abramo, vai ratificar a mesma posição.
Ao mesmo tempo, os ruralistas entortaram uma declaração descontextualizada da armênia Gulnara Shahinian, relatora para formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, para afirmar que o Brasil precisa deixar claro a definição de escravidão. Outra conversa para boi dormir. Sabendo que suas palavras estavam sendo distorcidas, ela enviou um comunicado ao Brasil, apoiando o conceito brasileiro, repudiando as distorções sobre sua opinião e solicitando a aprovação da PEC, dizendo que ela é a mais importante lei brasileira para erradicar a escravidão, usando-se, é claro, o conceito existente na legislação.
Tentando essas manobras, a bancada ruralista promove “insegurança jurídica'' no campo e na cidade – expressão que o grupo de parlamentares que defende os interesses de fazendeiros tanto gosta de usar. Eles afirmam que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, porque não concordam com o conceito de trabalho escravo. Há até um manual do Ministério do Trabalho e Emprego explicando o que é e o que não é trabalho escravo, reunindo as normas e instruções normativas a respeito, que estão acessíveis a todos os empresários para download na internet. Para lê-lo, basta clicar aqui.
Mais de 3 mil propriedades foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. O país tem mais de 4,5 milhões de propriedades rurais. Mais de 44 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo de quase 18 milhões de trabalhadores no campo. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa?
A quem interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de seres humanos. E, de lambuja, manchar o nome dos nossos produtos no exterior?
O ponto é o seguinte: ninguém em sã consciência defende trabalho escravo. Mesmos as mais aguerridas lideranças ruralistas no Senado Federal repudiam isso. E, tenho certeza, no seu íntimo ficam possessos quando vêem alguns “empresários'' usando desse expediente espertinho para passar a perna nos outros que penam, mas seguem a lei. Creio que alguns desses senadores não podem se insurgir contra isso, porque representam um setor que tem bons e maus, como todo o setor econômico. Porém, nivelam por baixo, ao invés de isolar os que cometem atos criminosos.
Além disso, o que está em jogo é a propriedade da terra, considerada inviolável por parte dos seus representados – os proprietários rurais. Dessa forma, a PEC 57A/1999 é vista (através de uma análise muito simplista) como um risco à existência da própria classe ruralista e, portanto, lutar contra a sua aprovação ou pela sua aprovação enfraquecida é fundamental. Isso coloca, lado a lado, empresários que atuam dentro da lei e os que cometem crimes, os que pagam impostos e os que os sonegam, os que cumprem contratos de trabalho e aqueles que nem os têm. Os que atuam dentro das regras do mercado e os que preferem a anomia.
Se analisarmos o Código Penal brasileiro, veremos que o direito à vida e a dignidade, na média, valem menos que o direito à propriedade. Só assim, no campo simbólico, é que se pode compreender a importância do trâmite dessa proposta por ambos os lados da questão. Pois, na prática, a aplicação da lei encontrará várias dificuldades nos tribunais, sendo menos ampla do que desejam as entidades que atuam no combate ao trabalho escravo.
Governo federal e parlamentares vão tentar corrigir a proposta de regulamentação deturpada do senador Romero Jucá após a aprovação da PEC do Trabalho Escravo para que a medida não se torne um ovo de serpente. Poucas vezes a aprovação de uma medida tão simples representou tanto simbolicamente.
É só uma regulamentação, mas nela repousa a luta entre o respeito à dignidade humana e a barbárie.
Agora, se o conceito de trabalho escravo que leve em conta a dignidade do ser humano, que leve em conta ele não ser tratado como instrumento descartável de trabalho, continuar incomodando, podemos também discutir a revogação do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema. Ou, melhor, por que não revogamos de uma vez a lei assinada por Isabel em 13 de maio de 1888?
Fazer algumas emendas à Lei Áurea seria apenas um pequeno sacrifício dos trabalhadores para reduzir a “insegurança jurídica'' e impulsionar o progresso.
A PEC do Trabalho Escravo, proposta de emenda constitucional que prevê o confisco de propriedades rurais e urbanas em que esse crime for flagrado e sua destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, está para ser votada no Senado nesta semana.
Para quem acompanha a ideia, apresentada pela primeira vez no Congresso Nacional há 18 anos, pode estar se perguntando: “ah, vá! Mas não tem truque por trás dessa notícia boa?'' Tem sim, daí reside o problema.
A pressão de governo federal, parlamentares favoráveis à proposta, sociedade civil, sindicatos, artistas e intelectuais e algumas entidades que reúnem empresas conseguiu aprovar a proposta em segundo turno na Câmara, em maio do ano passado, e a pautar o tema no Senado. A matéria teve que voltar para lá pois sofreu modificações por deputados federais, em 2004, antes da aprovação em primeiro turno.
Os contrários à ideia, porém, bateram o pé: a PEC só seria colocada em votação pelos senadores caso uma regulamentação fosse discutida antes, a fim de ser aprovada logo após a votação da PEC. Ou seja, se os termos e procedimentos para o confisco fossem colocados no papel. Até aí, tudo bem.
Mas, no meio do caminho, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), relator do projeto de lei para a regulamentação, atendeu ao pedido da bancada ruralista e usou um conceito diferente de trabalho escravo do que aquele que está no artigo 149 do Código Penal. Uma definição mais restrita.
É, garotada… É isso mesmo que vocês leram.
Para ajudar a entender, façamos paralelos: aceita-se punir casos de estupro. Mas só nos casos em que a vítima for ameaçada com arma de fogo. Caso contrário, não vale. Ou aceita-se punir homicídios. Desde que o bandido tenha gravado um vídeo com o assalto e postado no YouTube ou em seu Instagram. Enfim, aceitamos criar uma nova lei para punir o crime desde que seja usada a nossa definição e não aquela que está na lei vigente. Bizarro, né?
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (incompatíveis com a dignidade humana, caracterizadas pela violação de direitos fundamentais coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador), jornada exaustiva (em que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho que acarreta a danos à sua saúde ou risco de vida), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
(Um pequeno parênteses: não é apenas a ausência de liberdade que faz um trabalhador escravo, mas sim de dignidade. Todo ser humano nasce igual em direito à mesma dignidade. E, portanto, nascemos todos com os mesmos direitos fundamentais que, quando violados, nos arrancam dessa condição e nos transformam em coisas, instrumentos descartáveis de trabalho.)
A legislação brasileira, pasmem, é de vanguarda, pois leva isso em conta. Quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade, temos também caracterizado trabalho escravo. Qualquer pessoa que veja as fotos de um resgate de escravos entende isso perfeitamente. Mas alguns senadores, não.
Vira e mexe ouve-se o argumento de que fiscais do trabalho consideram como trabalho escravo a pequena distância entre beliches, a espessura de colchões, a falta de copos descartáveis. Cascata da grossa. Afinal de contas, qualquer fiscalização do governo é obrigada a aplicar multas por todos os problemas encontrados. Mas até uma ostra saudável sabe que não são essas as autuações que configuram trabalho escravo.
Colega jornalistas de Brasília, se ouvir esse bla-bla-blá, peça para o deputado comentar sobre o teor de outras 30 autuações que o fazendeiro em questão deve ter recebido. É esse conjunto, que exclui o trabalhador de sua dignidade que configura trabalho escravo. Ou solicite-as à Secretaria Nacional de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Já fizemos uma aposta: qualquer pessoa que provar que um caso de trabalho escravo se configurou apenas pelo beliche ou o copo plástico, a gente encerra os trabalhos.
Ruralistas também disseram que querem que o Brasil use a Organização Internacional do Trabalho como referência. Ótimo, podem preparar a passagem do diretor geral da organização, Guy Ryder, que fica em Genebra, na Suíça, que ele vai dizer que apoia a definição brasileira. Ou batam na porta do escritório da instituição, em Brasília, que a diretora, Laís Abramo, vai ratificar a mesma posição.
Ao mesmo tempo, os ruralistas entortaram uma declaração descontextualizada da armênia Gulnara Shahinian, relatora para formas contemporâneas de escravidão das Nações Unidas, para afirmar que o Brasil precisa deixar claro a definição de escravidão. Outra conversa para boi dormir. Sabendo que suas palavras estavam sendo distorcidas, ela enviou um comunicado ao Brasil, apoiando o conceito brasileiro, repudiando as distorções sobre sua opinião e solicitando a aprovação da PEC, dizendo que ela é a mais importante lei brasileira para erradicar a escravidão, usando-se, é claro, o conceito existente na legislação.
Tentando essas manobras, a bancada ruralista promove “insegurança jurídica'' no campo e na cidade – expressão que o grupo de parlamentares que defende os interesses de fazendeiros tanto gosta de usar. Eles afirmam que não há clareza sobre o conceito de trabalho escravo, porque não concordam com o conceito de trabalho escravo. Há até um manual do Ministério do Trabalho e Emprego explicando o que é e o que não é trabalho escravo, reunindo as normas e instruções normativas a respeito, que estão acessíveis a todos os empresários para download na internet. Para lê-lo, basta clicar aqui.
Mais de 3 mil propriedades foram fiscalizadas por denúncias de trabalho escravo desde 1995, quando o Brasil criou o seu sistema de combate ao crime. O país tem mais de 4,5 milhões de propriedades rurais. Mais de 44 mil pessoas ganharam a liberdade desde então, em um universo de quase 18 milhões de trabalhadores no campo. Se a grande maioria de empresários, no campo e na cidade, segue a lei e não utiliza trabalho escravo, a quem interessa tornar a legislação mais frouxa?
A quem interessa proteger quem promove a concorrência desleal e o dumping social, cortando custos ilegalmente para ganhar competitividade através da exploração de seres humanos. E, de lambuja, manchar o nome dos nossos produtos no exterior?
O ponto é o seguinte: ninguém em sã consciência defende trabalho escravo. Mesmos as mais aguerridas lideranças ruralistas no Senado Federal repudiam isso. E, tenho certeza, no seu íntimo ficam possessos quando vêem alguns “empresários'' usando desse expediente espertinho para passar a perna nos outros que penam, mas seguem a lei. Creio que alguns desses senadores não podem se insurgir contra isso, porque representam um setor que tem bons e maus, como todo o setor econômico. Porém, nivelam por baixo, ao invés de isolar os que cometem atos criminosos.
Além disso, o que está em jogo é a propriedade da terra, considerada inviolável por parte dos seus representados – os proprietários rurais. Dessa forma, a PEC 57A/1999 é vista (através de uma análise muito simplista) como um risco à existência da própria classe ruralista e, portanto, lutar contra a sua aprovação ou pela sua aprovação enfraquecida é fundamental. Isso coloca, lado a lado, empresários que atuam dentro da lei e os que cometem crimes, os que pagam impostos e os que os sonegam, os que cumprem contratos de trabalho e aqueles que nem os têm. Os que atuam dentro das regras do mercado e os que preferem a anomia.
Se analisarmos o Código Penal brasileiro, veremos que o direito à vida e a dignidade, na média, valem menos que o direito à propriedade. Só assim, no campo simbólico, é que se pode compreender a importância do trâmite dessa proposta por ambos os lados da questão. Pois, na prática, a aplicação da lei encontrará várias dificuldades nos tribunais, sendo menos ampla do que desejam as entidades que atuam no combate ao trabalho escravo.
Governo federal e parlamentares vão tentar corrigir a proposta de regulamentação deturpada do senador Romero Jucá após a aprovação da PEC do Trabalho Escravo para que a medida não se torne um ovo de serpente. Poucas vezes a aprovação de uma medida tão simples representou tanto simbolicamente.
É só uma regulamentação, mas nela repousa a luta entre o respeito à dignidade humana e a barbárie.
Agora, se o conceito de trabalho escravo que leve em conta a dignidade do ser humano, que leve em conta ele não ser tratado como instrumento descartável de trabalho, continuar incomodando, podemos também discutir a revogação do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema. Ou, melhor, por que não revogamos de uma vez a lei assinada por Isabel em 13 de maio de 1888?
Fazer algumas emendas à Lei Áurea seria apenas um pequeno sacrifício dos trabalhadores para reduzir a “insegurança jurídica'' e impulsionar o progresso.
ResponderExcluirO Dr. Ronaldo Caiada estava se metendo com o Mais Médicos...devia ter estudado mais esta questão de sua bancada.