“Temos aprendido a voar como os pássaros, a nadar como os peixes, mas não aprendemos a sensível arte de viver como irmãos.” - Martin Luther King
A sociedade brasileira é em sua grande maioria racista. Embora representem 51% da população, os negros não ocupam proporcionalmente as mesmas vagas de trabalho, não têm as mesmas oportunidades. São vítimas de um preconceito que se perpetua por séculos. São marginalizados.
A origem dessa discriminação data de algumas centenas de anos, com o sistema de escravidão instaurado no Brasil por portugueses, abolido somente em 1888, pela Lei Áurea, há 125 anos. As relações de poder entre brancos e negros era nitidamente a do colonizador e do escravo, que mais tarde se transformou na relação do patrão e do empregado, do rico e do pobre.
Um dos reflexos desse racismo é a violência contra negros, que vem aumentando nos últimos anos. No Brasil morrem mais negros do que brancos, em sua maioria jovens em situação de pobreza, que perdem a vida precocemente, entre os 20 os 25 anos.
De acordo com o Ministério da Saúde, foram registrados 49.932 homicídios em 2010. Pouco mais da metade (53,3%) das vítimas eram jovens, dos quais 76,6% negros (pretos e pardos) e 91,2% do sexo masculino.
Em 2010 morreram 132% mais negros do que brancos vítimas de homicídio. No mesmo ano, o número de jovens negros superou em 152% o número de vítimas brancas. (Mapa da Violência 2012: a Cor dos Homicídios no Brasil, de Julio Jacobo Waiselfisz. Cebela, Flacso; Brasília: Seppir/PR, 2012).
Concomitantemente, o governo federal tem intensificado e fortalecido as políticas públicas de inclusão de negros para diminuir as desigualdades raciais históricas, sobretudo a partir de 2003, com a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).
Um plano específico de prevenção ao problema da violência foi criado pela Secretaria-Geral da Presidência da República, por meio de uma ação compartilhada entre a Seppir e a Secretaria Nacional de Juventude (SNJ): o Plano Nacional de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra – Juventude Viva, que, em conjunto com estados e municípios, vem promovendo, há apenas um ano, mudanças na cultura brasileira e na sua forma de se relacionar com o negro.
O negro teve grande importância na construção do Brasil e de toda a sua riqueza e tem de ser reconhecido, e não violentado. “Um dos grandes desafios da democracia de hoje é o enfrentamento ao problema da violência contra jovens negros, homens e mulheres. São 27 mil mortes ao ano. É como se caíssem dois aviões com pessoas por semana. Temos de nos organizar, e os estados e municípios são fundamentais para o alcance das políticas públicas para quem mais necessita”, disse a coordenadora do Juventude Viva pela SNJ, Fernanda Papa.
Racismo no Brasil
Pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2008 verificou que 87% dos brasileiros reconhecem o racismo na sociedade, mas apenas 4% assumem ser racista.
“Há um paradoxo nesses números. A sociedade brasileira condena o racismo no discurso, não se declara em sua maioria racista, mas quando sondamos a presença do negro nos círculos de relações e de trabalho dessas pessoas, por exemplo, percebe-se que a recusa é grande”, observa Maria Palmira da Silva, professora de Psicologia Social, co-organizadora do livro Racismo no Brasil, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo.
A publicação reúne análises de diversos especialistas sobre os números da pesquisa. Entre as principais constatações desse trabalho está a de que vivemos numa sociedade racista, com um racismo difuso e difícil de ser identificado.
De acordo com o IBGE, o número de pessoas que se declaram negras vem aumentando. Em 2005, eram 48% e, em 2012, a porcentagem passou a 53%. “Como o racismo produz sofrimento às vítimas, há um receio delas em assumir essa condição. Quando a identidade do negro passa a ser valorizada, reconhecida, esse cenário se modifica”, explica Palmira.
Segundo a professora, o fortalecimento do debate sobre a questão do negro e o crescimento das políticas públicas estão fazendo com que o fenômeno do racismo se intensifique em alguns setores. “Importantes políticas como cotas para negros em universidades, vagas nos serviços públicos e os programas de saúde para a população negra estão contribuindo para que o negro conquiste mais espaços na sociedade, e isso provoca uma reação maior de determinados grupos racistas”, afirma Palmira.
Mapa da violência contra negros
O Brasil ocupa o 18º lugar em número de homicídios na ranking mundial de países. Das mortes, os jovens lideram a lista de vítimas, principalmente negros do sexo masculino.
Os dados nacionais são obtidos por meio do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), que, apesar de estudar a evolução dos homicídios desde 1979, vem aplicando um olhar diferenciado ao quesito raça e cor a partir de 1996. Em 2002, a identificação de raça/cor já correspondia a 92,6% dos relatórios de homicídios.
A partir dessa sistematização, os mapas da violência passaram a trazer informações mais aprofundadas sobre a questão racial a partir de 2005, quando os números demonstraram uma realidade bastante preocupante, que vem se agravando com os anos.
Entre 2002 e 2010, os mapas apontaram redução do número de vítimas de homicídios na população branca e elevação na população negra, tanto adulta como jovem. Nesta, subiu de 58,6% para 71,1%, ao passo que naquela caiu de 41% para 28,5%.
Os homicídios de negros, portanto, aumentaram quase 30% no período, com o número de mortes saltando de 26.952 para 34.983.
No caso dos jovens, recuou de 37,5% para 24,6% na população branca e passou de 62,2% para 75,1% na negra.
Casos triplicaram nos últimos dez anos
A proporção de homicídios entre negros em relação aos brancos é cada vez maior. Em 2002, a taxa de vitimização foi de 65,4%, em 2006 passou para 90,8%, e em 2010 chegou a 132,3%. Isso significa que, em 2010, para cada branco vítima de homicídio, morreram 2,3 negros pelo mesmo motivo.
O ranking dos oito estados mais preocupantes são: Alagoas (80,5%), Espírito Santo (65%), Paraíba (60,5), Pará (55,1%), Pernambuco (54,6%), Distrito Federal (52,8%), Bahia (47,3%) e Mato Grosso (39,7%). Nas Regiões Norte e Nordeste, portanto os números são os mais alarmantes.
Alagoas, o mais violento
O estado de Alagoas, lugar onde viveu e morreu Zumbi dos Palmares, registra a maior taxa de homicídios do país. De acordo com o SIM, lá são registradas 110 vítimas para cada 100 mil habitantes. Entre jovens, a taxa de alcança 275,5 e, entre negros, 332,1.
O índice de homicídios de negros é três vezes maior que em outros estados: 84,9 em cada 100 mil habitantes mortos.
Em 2010, foram 2.086 vítimas, das quais 81% eram negras e, em sua maioria (62%), jovens do sexo masculino.
“A principal causa da violência está no elevado número de jovens usuários de drogas e na grande evasão escolar. Hoje verificamos que Maceió reduziu em 24% o número de jovens negros mortos de 2012 para 2013. Parte, em razão das ações sociais voltadas a esse segmento, como capoeira, artes, educação, saúde e emprego”, explica a coordenadora do Plano Juventude Viva em Alagoas, Katia Born.
Ações afirmativas
Para enfrentar o problema, o Juventude Viva pretende levar aos jovens dos bairros de maior risco social ações na área da educação, saúde, trabalho, cultura e esporte, oferecendo uma alternativa para prevenir a violência e ampliar direitos.
“O plano nasceu de uma demanda da sociedade, eleita prioritária durante a I Conferência de Igualdade Racial, realizada em 2008, de modo a sensibilizar atores do governo federal para trazer a juventude negra para o foco da ação, reconhecendo-a como sujeito de direito que até hoje não é tratada com a devida importância”, diz a coordenadora Fernanda.
O plano visa diminuir a vulnerabilidade de jovens em situações de violência física e simbólica, a partir da criação de oportunidades de inclusão social e autonomia; da oferta de equipamentos, serviços públicos e espaços de convivência em territórios que concentram altos índices de homicídio; e do aprimoramento da atuação do Estado por meio do enfrentamento ao racismo institucional e da sensibilização de agentes públicos para a questão.
“O grande desafio é enfrentar o alto número de mortalidade de pessoas negras, desde mulheres em maternidades até a juventude negra pobre, e reverter a representação negativa sobre essa população no Brasil. Os negros não são pensados para ocupar os espaços de poder na sociedade”, afirma Felipe Freitas, coordenador do Juventude Viva pela Seppir.
O público-alvo são jovens negros de 15 a 29 anos do sexo masculino, em sua maioria de baixa escolaridade, moradores de bairros da periferia, em situação de exposição à violência, incluindo doméstica, em situação de rua, cumprindo medidas socioeducativas, egressos do sistema penitenciário e usuários de crack e outras drogas.
Pacto federativo
Estados e municípios selecionados a partir do critério de prioridade, aqueles onde os índices de violência são mais altos, estão habilitados a assinar um termo de adesão ao Plano Juventude Viva e elaborar planos nas esferas correspondentes. A relação dos municípios pode ser consultada na página Juventude Viva.
Quatro dos oito estados com maior índice de homicídios de jovens negros já assinaram o Plano Nacional de Prevenção à Violência contra a Juventude Negra: Alagoas, Paraíba, Distrito Federal e Bahia.
Muitas cidades, independentemente de o estado ter aderido, também estão participando do plano. Ao todo, são 147 municípios que podem aderir até 2014 aos quatro eixos de ação interligados às políticas locais.
Das capitais, cidades onde os casos de violência são bastante agravados, participam Maceió, João Pessoa, Brasília e São Paulo, a mais recente a firmar a parceria com o plano, em outubro de 2013.
“O grande legado que o Juventude Viva traz é colocar na ordem do dia a violência contra a juventude negra como um problema de toda a sociedade brasileira. Um problema que responde a um passivo de dívida de séculos que temos com essa população”, avalia Fernanda.
Violência institucionalizada
O preconceito racial está presente em todos os setores da nossa sociedade, inclusive nas instituições, fator que tem contribuído para a intensificação das políticas afirmativas e a capacitação de gestores públicos sobre a questão.
“O racismo institucional é aquele que se dá pelo funcionamento sistemático de uma instituição, para além da conduta individual daqueles que dela participam. Assim, uma instituição como a polícia, a escola, o hospital, o Parlamento pode funcionar de maneira racista e discriminatória, mesmo mudando seus componentes individuais”, explica o professor de criminologia da Uneb e Uefs (Bahia) Riccardo Cappi.
Segundo dados não oficiais divulgados em 2009 pela Justiça Global, a polícia seria responsável pela morte de 20% dos negros no Brasil.
Um documento do comando da Polícia Militar de Campinas, no interior de São Paulo, assinado recentemente pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, veio a público e chocou autoridades e defensores dos direitos humanos. O texto orientava os policiais que atuam no bairro Taquaral, região nobre daquela cidade, a abordar com rigor pessoas “em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra”.
“Temos uma polícia que, ainda hoje, provoca mortes em demasia, especialmente de jovens negros. Sabe-se que a proporção de mortos da sociedade civil e da polícia em confronto é de 20 para 1. Um número acima do que foi estipulado pela ONU (10 para 1)”, pontua Cappi.
O secretário Nacional de Assuntos Legislativos, Marivaldo Pereira, disse que é importante não demonizar nenhuma instituição, como a polícia, por exemplo, no entanto as práticas abusivas devem ser combatidas. “A polícia é um órgão fundamental para a sociedade. Mas tem de combater a disseminação de práticas discriminatórias dentro das instituições, impedindo que o jovem negro seja vítima constante de violência”, afirma o professor.
Auto de Resistência
Um instrumento criado na ditadura militar, conhecido como Auto de Resistência, deu à polícia plenos poderes para atuar em práticas de repressão sem a necessidade de investigação das mortes. “Com isso, qualquer pessoa pode ser julgada pela própria polícia e receber sentença de morte”, diz o secretário Pereira.
A resolução 08/2012, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, vem combatendo essa forma de violência com o impedimento do uso da expressão “auto de resistência” nos registros policiais, boletins de ocorrência e inquéritos policiais. Com isso, seria possível identificar as causas de todas das mortes cometidas por policiais em trabalho, sem exceção, inibindo assim práticas de extermínio, execução extrajudicial e a injustiça também contra outros policiais.
Tramita no Congresso Nacional, ainda, o Projeto de Lei nº 4471/12, de autoria do deputado federal Paulo Teixeira (PT), que altera o Código Penal e põe fim aos “autos de resistência”, uma antiga demanda do movimento negro, fundamental no enfrentamento da impunidade nos casos de violência cometidos pelo Estado.
O projeto está na agenda de votação da Câmara dos Deputados desde agosto e, quando aprovado, garantirá, se não o fim da violência, ao menos a investigação da causa das mortes.
“O projeto pode ser visto como essencial para a preservação da legitimidade das instituições perante a população e abre a perspectiva de controle social para qualquer órgão público. Qualquer uso de violência pela autoridade policial terá de ser apurado. Isso vai permitir que a população separe uma minoria de funcionários de uma maioria que executa sua função adequadamente”, explica Pereira.
Acesso à Justiça
Diversas ações estão sendo voltadas para mudar a realidade social do negro no Brasil e emancipá-lo com os mesmos direitos e espaços na sociedade e no âmbito do poder. Nesse aspecto, é importante que esse segmento tenha seus direitos garantidos, principalmente nos casos de violência.
O Protocolo de Atuação para a Redução da Barreira de Acesso à Justiça para a Juventude Negra em Situação de Violência foi assinado entre o Ministério da Justiça e a Presidência da República em outubro e, agora, estimula-se também a adesão dos estados e municípios.
“Não bastam as políticas afirmativas de garantia de inclusão dos negros na sociedade, precisamos também ter ações que operem para alterar os mecanismos que o racismo produz e interditam a ascensão das pessoas negras”, afirma o coordenador Freitas.
Para a coordenadora da SNJ estamos diante de um problema urgente que precisa ser enfrentado por toda a sociedade. “A privação à vida é uma das maiores violências que um ser humano pode passar. Esse não é um problema da juventude, é um problema da sociedade brasileira, que infelizmente se revela, em sua parte mais perversa, contra a juventude negra que está morrendo. Não podemos mais não olhar para esse fato”, conclui Fernanda Papa.
Vou ficar com isto
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