Por Paulo Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
“Jornalista que não pensa digitalmente é jornalista morto”, disse outro dia a um jovem jornalista. Antes de vir para Londres, minha convicção, compartilhada com os jornalistas com os quais eu trabalhava, era uma divisão de atenções: “um olho no papel, outro na internet”. É uma frase obsoleta, hoje. Mais adequado, agora, em minha opinião, seria: “Um olho no papel, dois na internet”. A Era Digital está aí. Como tudo, tem vantagens e desvantagens, tira e dá, e pessoalmente acho que o saldo é amplamente favorável, dado o caráter tenebroso que a mídia corporativa tomou nos últimos anos.
Mas.
Mas como um legítimo homem de papel, um jornalista que a vida toda se cercou de publicações impressas, revistas e jornais, olho com amor nostálgico, com fascínio juvenil para a Era do Papel. Ao olhar para trás, me ocorre o título magistral de um documentário sobre a historicamente inesperada vitória no Zaire de Muhammad Ali, veterano, sobre George Foreman, um jovem e invicto destruidor de lutadores: Quando Éramos Reis.
Os grandes jornalistas que vi de longe ou de perto tiveram ou têm, como eu, um amor incondicional pelo papel. Um deles, Antonio Machado de Barros, com quem trabalhei de perto por muitos anos e a quem devo o aprendizado milionário do valor do esforço, cheirava imediatamente cada revista que lhe chegava às mãos, como se ali estivesse o melhor perfume do mundo.
Era uma cena que me fez rir algumas vezes, mas que hoje, ao evocá-la, tem para mim um comovente sabor de saudade, um retrato preciso e precioso da Era do Papel, dos dias em que as redações tinham laudas e os textos eram mexidos com canetas por copis capazes de operar milagres em textos pedestres, e entre os quais o maior que vi foi outro jornalista com quem trabalhei alguns anos de perto, JR Guzzo, com sua lendária letra de normalista.
Eram dias em que as redações tinham o frenesi romântico e barulhento das máquinas de escrever, e em que os jornalistas faziam dos bares uma extensão dos jornais e das revistas em que trabalhavam. Uma extensão fatal, em muitos casos. Tarso de Castro, segundo o relato de um jornalista que trabalhou com ele na Folha Ilustrada e no Folhetim, Nei Duclós, saía no meio da tarde e ninguém sabia, na equipe, se estava no bar ou na sala do dono.
Tarso era um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro quando eu era estudante. Iconoclasta, absurdamente criativo, corajoso, ares de galã com seus cabelos compridos e traços viris, Tarso era o que todos nós, aspirantes a jornalistas, gostaríamos de ser. Sobre Paulo Francis, outro modelo glamuroso para jovens jornalistas do final dos anos 70, tinha a vantagem extraordinária do apelo sobre as mulheres.Tivera um papel decisivo no Pasquim, um jornal alternativo carioca que experimentou dias de glória na ditadura militar, e levara depois seu talento para São Paulo, como Paulo Francis, também egresso do Rio.
Do mesmo Rio brilharia no jornalismo de São Paulo, também em meados da década de 70, Alberto Dines, que trouxe o primeiro e marcante exercício de autocrítica na mídia brasileira com seu Jornal dos Jornais, aos domingos na Folha. Todos nós, jornalistas, ansiávamos pelo veredito culto de Dines aos domingos, e o tempo mostraria o quanto a crítica pode gerar hostilidades e portas fechadas. Os três, Tarso, Francis e Dines, deram à sisuda imprensa paulistana, então fanática da crença de que jornalista não é notícia, o tempero vivaz e colorido de artigos irreverentes e autorais.
Tarso somava à capacidade profissional a arte da sedução. Era tanto seu charme que ele namorou, sem falar inglês, Candice Bergen, uma das atrizes mais lindas do cinema nos anos 70. Ela tinha vindo passar uns dias no Brasil e, como uma foca que acaba de entrar numa redação e não uma estrela internacional, ficou louca por ele, com quem se comunicava na língua do amor, aquela que destrói barreiras de palavras e em que o silêncio pode ter um significado misterioso e sedutor.
Dizia, malandro, que era o “outro cabeludo” de Detalhes, de Roberto Carlos, o que este sempre negou. Tarso morreu de tanto beber aos 49 anos, e acabou se transformando, para uma geração posterior de jornalistas como eu, num exemplo do quanto a bebida pode encurtar uma carreira jornalística e a própria vida, se não for severamente controlada.
REDAÇÕES, COMO QUALQUER OUTRO AMBIENTE, sempre tiveram de tudo: heróis e covardes, religiosos e ateus, nobres e canalhas, trabalhadores e preguiçosos, e toda a vasta gama que existe entre os opostos em tudo aquilo. Hoje, no entanto, há com certeza menos alcoólatras, por força da modernização da mídia como negócio, em parte, mas também pela lembrança dolorosa de gente que se matou pela bebida, como Tarso de Castro e tantos outros. A fumaça nervosa, oriunda de múltiplos cigarros nas bocas de homens e (poucas) mulheres, era outra marca sagrada do apogeu da Era do Papel.
Hoje é possível dizer que a Era Digital chegou, quase despercebida, às redações em meados dos anos 80, quando os computadores substituíram as máquinas de escrever. Não foi uma transição fácil para mim, lembro, mesmo não tendo ainda 30 anos. Era editor, e estava acostumado a mexer nos textos das laudas com a caneta. O quanto esse mundo é antigo me foi lembrado outro dia numa conversa com Pedro, meu filho, 20 e poucos anos.
Falei em lauda e ele perguntou o que era. Transições sempre são difíceis. Durante anos ouvi dizer que alguns editorialistas do Estadão escreviam à mão, as costas convictamente voltadas para as Olivettis que chegaram e partiram das redações. Nunca soube se era verdade ou não. Se era verdade, talvez este conservadorismo pétreo explique parte dos editoriais que tanto marcam o Estadão. A imagem definitiva que tenho destes tempos é uma foto em branco e preto de meu pai, Continental sem filtro na boca, gravata afrouxada e sem paletó, escrevendo em sua Underwood na redação.
Toda mudança dá e tira. O computador tirou, nas redações, o emprego dos valorosos datilógrafos, os mestres do teclado que passavam a limpo os textos alterados com caneta antes que estes baixassem à gráfica. O trabalho deles era duro, sob intensa pressão, em horários avançados na madrugada quando se tratava de revista semanal de informações. Presenciei na Veja um episódio que jamais esqueceria. Um datilógrafo, no afã de entregar antes que fosse tarde demais um texto, deixou escreveu “homen”, no título de uma nota sobre o prêmio de Homem do Ano concedido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos.
Ele era o último reduto antes da gráfica, onde o processo industrial era automático demais para que se fizesse qualquer nova revisão. Quem fora premiado era o dono da empresa, Victor Civita, e previsivelmente para aquele bom datilógrafo não haveria fechamento seguinte. Chega a ser injusto que, entre tantas cenas de abnegação nas madrugadas de homens e mulheres datilografando nossos textos editados, seja exatamente aquela a que mais me tenha marcado.
“Um olho no papel, dois na internet” é a frase que estava gravada no meu cérebro quando fui ser correspondente em Londres, em 2009. Dessa frase, dessa visão de jornalismo, nasceria o DCM.
Hoje, tenho vários olhos na internet e nenhum no papel. E, para os jovens, jornais e revistas simplesmente não existem.
Mas, no meu coração de jornalista filho de jornalista, os dias do papel sempre terão uma lembrança hipnótica, aqueles tempos estridentes, tumultuados, sofridos, bêbados, épicos em que jornais e revistas eram reis.
Mas.
Mas como um legítimo homem de papel, um jornalista que a vida toda se cercou de publicações impressas, revistas e jornais, olho com amor nostálgico, com fascínio juvenil para a Era do Papel. Ao olhar para trás, me ocorre o título magistral de um documentário sobre a historicamente inesperada vitória no Zaire de Muhammad Ali, veterano, sobre George Foreman, um jovem e invicto destruidor de lutadores: Quando Éramos Reis.
Os grandes jornalistas que vi de longe ou de perto tiveram ou têm, como eu, um amor incondicional pelo papel. Um deles, Antonio Machado de Barros, com quem trabalhei de perto por muitos anos e a quem devo o aprendizado milionário do valor do esforço, cheirava imediatamente cada revista que lhe chegava às mãos, como se ali estivesse o melhor perfume do mundo.
Era uma cena que me fez rir algumas vezes, mas que hoje, ao evocá-la, tem para mim um comovente sabor de saudade, um retrato preciso e precioso da Era do Papel, dos dias em que as redações tinham laudas e os textos eram mexidos com canetas por copis capazes de operar milagres em textos pedestres, e entre os quais o maior que vi foi outro jornalista com quem trabalhei alguns anos de perto, JR Guzzo, com sua lendária letra de normalista.
Eram dias em que as redações tinham o frenesi romântico e barulhento das máquinas de escrever, e em que os jornalistas faziam dos bares uma extensão dos jornais e das revistas em que trabalhavam. Uma extensão fatal, em muitos casos. Tarso de Castro, segundo o relato de um jornalista que trabalhou com ele na Folha Ilustrada e no Folhetim, Nei Duclós, saía no meio da tarde e ninguém sabia, na equipe, se estava no bar ou na sala do dono.
Tarso era um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro quando eu era estudante. Iconoclasta, absurdamente criativo, corajoso, ares de galã com seus cabelos compridos e traços viris, Tarso era o que todos nós, aspirantes a jornalistas, gostaríamos de ser. Sobre Paulo Francis, outro modelo glamuroso para jovens jornalistas do final dos anos 70, tinha a vantagem extraordinária do apelo sobre as mulheres.Tivera um papel decisivo no Pasquim, um jornal alternativo carioca que experimentou dias de glória na ditadura militar, e levara depois seu talento para São Paulo, como Paulo Francis, também egresso do Rio.
Do mesmo Rio brilharia no jornalismo de São Paulo, também em meados da década de 70, Alberto Dines, que trouxe o primeiro e marcante exercício de autocrítica na mídia brasileira com seu Jornal dos Jornais, aos domingos na Folha. Todos nós, jornalistas, ansiávamos pelo veredito culto de Dines aos domingos, e o tempo mostraria o quanto a crítica pode gerar hostilidades e portas fechadas. Os três, Tarso, Francis e Dines, deram à sisuda imprensa paulistana, então fanática da crença de que jornalista não é notícia, o tempero vivaz e colorido de artigos irreverentes e autorais.
Tarso somava à capacidade profissional a arte da sedução. Era tanto seu charme que ele namorou, sem falar inglês, Candice Bergen, uma das atrizes mais lindas do cinema nos anos 70. Ela tinha vindo passar uns dias no Brasil e, como uma foca que acaba de entrar numa redação e não uma estrela internacional, ficou louca por ele, com quem se comunicava na língua do amor, aquela que destrói barreiras de palavras e em que o silêncio pode ter um significado misterioso e sedutor.
Dizia, malandro, que era o “outro cabeludo” de Detalhes, de Roberto Carlos, o que este sempre negou. Tarso morreu de tanto beber aos 49 anos, e acabou se transformando, para uma geração posterior de jornalistas como eu, num exemplo do quanto a bebida pode encurtar uma carreira jornalística e a própria vida, se não for severamente controlada.
REDAÇÕES, COMO QUALQUER OUTRO AMBIENTE, sempre tiveram de tudo: heróis e covardes, religiosos e ateus, nobres e canalhas, trabalhadores e preguiçosos, e toda a vasta gama que existe entre os opostos em tudo aquilo. Hoje, no entanto, há com certeza menos alcoólatras, por força da modernização da mídia como negócio, em parte, mas também pela lembrança dolorosa de gente que se matou pela bebida, como Tarso de Castro e tantos outros. A fumaça nervosa, oriunda de múltiplos cigarros nas bocas de homens e (poucas) mulheres, era outra marca sagrada do apogeu da Era do Papel.
Hoje é possível dizer que a Era Digital chegou, quase despercebida, às redações em meados dos anos 80, quando os computadores substituíram as máquinas de escrever. Não foi uma transição fácil para mim, lembro, mesmo não tendo ainda 30 anos. Era editor, e estava acostumado a mexer nos textos das laudas com a caneta. O quanto esse mundo é antigo me foi lembrado outro dia numa conversa com Pedro, meu filho, 20 e poucos anos.
Falei em lauda e ele perguntou o que era. Transições sempre são difíceis. Durante anos ouvi dizer que alguns editorialistas do Estadão escreviam à mão, as costas convictamente voltadas para as Olivettis que chegaram e partiram das redações. Nunca soube se era verdade ou não. Se era verdade, talvez este conservadorismo pétreo explique parte dos editoriais que tanto marcam o Estadão. A imagem definitiva que tenho destes tempos é uma foto em branco e preto de meu pai, Continental sem filtro na boca, gravata afrouxada e sem paletó, escrevendo em sua Underwood na redação.
Toda mudança dá e tira. O computador tirou, nas redações, o emprego dos valorosos datilógrafos, os mestres do teclado que passavam a limpo os textos alterados com caneta antes que estes baixassem à gráfica. O trabalho deles era duro, sob intensa pressão, em horários avançados na madrugada quando se tratava de revista semanal de informações. Presenciei na Veja um episódio que jamais esqueceria. Um datilógrafo, no afã de entregar antes que fosse tarde demais um texto, deixou escreveu “homen”, no título de uma nota sobre o prêmio de Homem do Ano concedido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos.
Ele era o último reduto antes da gráfica, onde o processo industrial era automático demais para que se fizesse qualquer nova revisão. Quem fora premiado era o dono da empresa, Victor Civita, e previsivelmente para aquele bom datilógrafo não haveria fechamento seguinte. Chega a ser injusto que, entre tantas cenas de abnegação nas madrugadas de homens e mulheres datilografando nossos textos editados, seja exatamente aquela a que mais me tenha marcado.
“Um olho no papel, dois na internet” é a frase que estava gravada no meu cérebro quando fui ser correspondente em Londres, em 2009. Dessa frase, dessa visão de jornalismo, nasceria o DCM.
Hoje, tenho vários olhos na internet e nenhum no papel. E, para os jovens, jornais e revistas simplesmente não existem.
Mas, no meu coração de jornalista filho de jornalista, os dias do papel sempre terão uma lembrança hipnótica, aqueles tempos estridentes, tumultuados, sofridos, bêbados, épicos em que jornais e revistas eram reis.
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