segunda-feira, 28 de abril de 2014

Muito mais que um tiroteio

Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa:

O assunto entra na pauta comum da violência na região metropolitana da capital paulista, mas a morte do médico Ricardo Assanome, de apenas 27 anos, ocorrida na noite de sábado (26/4) no interior de uma delegacia na cidade de Santo André, merece mais atenção da imprensa do que o mero registro de praxe.

O crime revela muito mais do que o despreparo de policiais, a falta de segurança dentro da própria delegacia e a ausência de regras para o porte de armas entre agentes públicos: é provavelmente o retrato muito claro de que há alguma coisa muito errada na política de combate à violência.

Na segunda-feira (28/4), os jornais contam a história do jovem médico, que entrou no 2º Distrito de Santo André, com a namorada, para fazer um boletim de ocorrência por causa de um acidente banal de trânsito. Os danos no carro foram apenas superficiais, mas ele teve que ir à delegacia porque o sistema para registro via internet não funcionou. Era apenas uma dessas exigências burocráticas, e lhe custou a vida no lugar onde supostamente deveria estar protegido.

O roteiro apresentado pela imprensa é de causar espanto.

Um policial militar à paisana que fugia de supostos assaltantes caiu com sua motocicleta em frente à delegacia, no momento em que Assanome, a namorada e outro cidadão, Ricardo Mahlow, esperavam para serem atendidos. Mahlow fora chamado para retirar um carro que havia sido roubado e localizado pela polícia. O barulho feito pela motocicleta assustou o agente de telecomunicações André Bordwell da Silva, que saiu de sua sala atirando a esmo.

A descrição dos jornais conta que o investigador de plantão, ouvindo os disparos, também saiu para a recepção e, julgando precipitadamente que a delegacia estava sendo atacada por bandidos, passou a atirar contra o grupo.

Ricardo Assanome, que tentava proteger a namorada, levou um tiro na cabeça e morreu antes de chegar ao hospital. Ricardo Mahlow, que fora buscar seu carro, também foi atingido. E o agente que havia começado o tiroteio terminou baleado pelo próprio colega.

O que a imprensa nos apresenta, então, é uma tragédia escrita sobre o roteiro de uma “comédia de erros” tipicamente shakespeariana.

Morto ao chegar

No entanto, o que o incidente revela é um estado de desordem no sistema paulista de segurança pública. Em primeiro lugar, segundo especialista citado pela Folha de S.Paulo, o agente de telecomunicações André Bordwell da Silva não deveria estar portanto uma arma de fogo, mesmo dentro da delegacia. Suas funções não o qualificam para lidar com situações extremas, como o atentado que imaginou estar acontecendo. Ele não é preparado para fazer avaliações de risco, e, portanto, há aqui uma suposição de irresponsabilidade por parte de quem lhe forneceu uma arma.

Em segundo lugar, o investigador que somou suas habilidades ao tiroteio iniciado pelo agente de telecomunicações saiu disparando às cegas, tanto que acabou acertando o próprio colega com um tiro no peito.

Em terceiro lugar, registre-se que as autoridades superiores claramente se recusaram a fornecer mais informações aos repórteres que tentaram contar a história, e os jornais se conformam com informações parciais. O Estado de S. Paulo não informa nem mesmo os nomes dos agentes que se envolveram no crime.

Pode ser que as redações tenham sido prejudicadas pela precariedade da cobertura nos fins de semana, que Alberto Dines costuma chamar de “jornalismo de feriado”, ou “jornalismo plantoneiro”. Veremos, nos próximos dias, se existe interesse da imprensa em destrinchar o que há por trás desse episódio grotesco.

Em circunstâncias normais, é de se esperar que a Corregedoria de Polícia Civil tome a iniciativa de vir a público apresentar explicações aceitáveis para esse assassinato. No entanto, dado o contexto de conflagração político-eleitoral que se agrava com a proximidade das urnas, essa é uma possibilidade remota.

O mais provável é que o gabinete de crise do governo paulista esteja agora trabalhando os argumentos que deverão convencer os jornalistas de que os fatos ocorridos no interior do 2º Distrito Policial de Santo André foram uma aberração, uma conjunção negativa dos astros. Então, o cidadão que considera inútil registrar ocorrências de menor perda, seguirá evitando entrar nas delegacias, o que acaba distorcendo as estatísticas que deveriam informar a estratégia de segurança pública.

Vai concluir que, além da certeza de que nada será investigado, ainda corre o risco de ser morto pela própria polícia.

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