Por Venício A. de Lima, na revista Teoria e Debate:
A censura do Estado à liberdade de expressão no Brasil é anterior à chegada da máquina impressora e sempre foi muito além dela. No século 17, padre Antônio Vieira já afirmava que “o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala” e Paulo Freire, três séculos depois, identificou na “cultura do silêncio” uma das características históricas da formação do povo brasileiro.
Em artigo publicado na Comunicação & Educação (Ano XVIII, nº 2, jul/dez 2013), a professora Cristina Costa, da USP, traça um panorama histórico da censura do Estado no Brasil. Afirma ela:
A censura chegou antes da imprensa, do teatro e das bibliotecas. Durante a colonização, a coroa portuguesa proibia que em terras brasileiras fossem publicados livros e jornais, que se fizessem apresentações públicas sem apoio, incentivo e consentimento das ordens religiosas (guardiãs da fé e da hegemonia metropolitana), bem como eram controlados os acervos de livros, até mesmo os particulares. (...) Não foram apenas a imprensa e a publicação de livros proibidas nos tempos coloniais. Controlavam-se crenças, opiniões, linguagens, assim como proibiam-se idiomas nativos, deuses ‘estrangeiros’, instrumentos musicais inconvenientes e danças consideradas indecentes. (...) Com a Independência e a Monarquia (...) livros e jornais (já havia imprensa no Brasil e ela proliferava) também estavam sujeitos à censura, se fossem defensores da República, do fim da escravidão, ou favoráveis à união entre as coroas portuguesa e brasileira. No século 20 (...) os meios de comunicação se desenvolvem – cinema, rádio e indústria fonográfica, além da imprensa escrita. (...) Uma extensa legislação regulamenta toda sorte de fiscalização à produção simbólica. Getúlio Vargas (...) instituiu formas de censura à imprensa e aos meios de comunicação que fariam inveja aos inquisidores medievais. (...) Até mesmo depois do Estado Novo e durante governos considerados democráticos como o de Juscelino Kubitscheck, utilizou-se a censura para conter o pensamento e a crítica política. (...) Durante a ditadura militar (...), completando quase cinco séculos de existência de controle, em diferentes épocas, o abuso do poder chega a colocar em risco a própria sobrevivência da arte e da cultura nacionais.
A Constituição de 1988, finalmente, determina a extinção da censura oficial e reconhece o direito à “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo”.
Pagamos até hoje um preço alto pelas consequências da presença histórica do Estado como censor na vida cultural do país. Não há nenhuma dúvida sobre isso. Seria, todavia, a censura do Estado a única forma de censura ou até mesmo a forma de censura mais atuante nos nossos dias?
Outra censura
Desde a década de 1970 do século passado há o reconhecimento formal de que a liberdade da imprensa está sujeita a um tipo de “censura” que decorre da própria estrutura do mercado das empresas de mídia.
O conceituado Pica-Index (Press Independence and Critical Ability), que registra a independência e a capacidade crítica da mídia, incluiu entre seus indicadores as "restrições econômicas" entendidas como consequências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas.
O Freedom of the Press, publicado anualmente pela ONG Freedom House, também trabalha com uma definição de liberdade da imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer, considera que restrições à liberdade da imprensa podem decorrer de fatores econômicos alheios à interferência do Estado (cf. Cristina Holtz-Bacha; “What is ‘good’ press freedom? – The difficulty of measuring freedom of the press worldwide”, 2004; http://www.kwpw.wiso.uni-erlangen.de/publikationen/docs/good_press_freed...).
Tim Wu, professor da Columbia Law School, afirma em seu premiado livro Impérios da Comunicação – Do Telefone à Internet, da AT&T ao Google (Zahar, 2012):
Nos Estados Unidos, é a estrutura industrial que determina o limite da liberdade de expressão. (...) A maior parte dos que estudam [as indústrias da informação do século 20] é obcecada pelo papel do governo na censura e na difusão de incentivos à inovação. Mas o papel do Estado, embora seja significativo, não pode ser comparado ao poder da indústria para censurar a expressão ou reprimir a criatividade.
Lembra ainda que a famosa Primeira Emenda (à Constituição dos EUA) pode proteger os americanos “de limitações à sua liberdade de expressão impostas pelo governo, mas nada diz sobre o que podemos fazer para nos limitar uns aos outros”.
Teria a forte presença do Estado impedido que se consolidassem no Brasil outros tipos igualmente ou mais poderosos de cerceamento à liberdade de expressão? Em circunstâncias históricas específicas, teria a censura oficial coincidido com o interesse privado de empresários da comunicação? Será que o Pica-Index seria um instrumento válido de avaliação da liberdade da imprensa entre nós? As afirmações de Tim Wu sobre os EUA se aplicariam também à Constituição Federal de 1988 e às normas legais brasileiras?
Um pouco de história
A transformação da imprensa em atividade empresarial, no Brasil, se inicia no Segundo Reinado. Da mesma forma, a radiodifusão – primeiro o rádio e depois a televisão – consolida-se na metade do século 20 dentro do trustsheep model americano, isto é, um serviço público explorado prioritariamente pela iniciativa privada e sustentado pela publicidade comercial. Esta, inicialmente permitida em até 10% da hora de programação em 1932, passa para 20% em 1952 e para 25% em 1962, chegando à situação atual, em que canais da TV paga transmitem “exclusivamente” comerciais.
Ao longo do tempo, foi se consolidando aqui um “sistema privado de mídia” oligopolizado, vinculado às elites políticas regionais e locais e regido por uma legislação assimétrica em relação a outros serviços públicos, desatualizada e omissa.
Apesar da introdução e utilização generalizada das TICs – as novas tecnologias de informação e comunicação –, a estrutura básica do “sistema privado de mídia” prevalente no país não sofreu alteração significativa nas últimas décadas.
O ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República Franklin Martins, falando em evento recente sobre o tema “Comunicação: o desafio do século”, afirmou:
O Brasil se tornou um país democrático nos últimos dez, doze anos, e não cabe mais no cercadinho dos grupos oligopolizados de comunicação. O rádio e a televisão não conseguem acompanhar as transformações no país. (...) Queiram ou não os grandes grupos, terá de haver uma nova pactuação. Seguramente, temos a legislação mais antiquada do mundo (http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2014/04/avanco-da-democracia-... ).
Nossas leis de radiodifusão têm historicamente protegido os interesses empresariais privados dos concessionários desse serviço público, independentemente de qual é o governo, quais são os partidos ou coligações partidárias no poder ou de qual é o regime político. Ademais, os concessionários do serviço público de radiodifusão têm sido capazes de fazer prevalecer seus interesses, tanto no Poder Executivo quanto na articulação de maiorias parlamentares no Congresso Nacional, que impedem a aprovação de modificações estruturais no “sistema privado de mídia” ou ocasionam a revogação de normas legais que poderiam levar a essas modificações.
Na verdade, uma estrutura oligopolista – em que poucos falam e todos escutam, consolidada e amparada por uma legislação antiquada – tem possibilitado a exclusão sistemática da voz (expressão, opinião) de boa parte da população brasileira no espaço público, dando origem a outro tipo de censura, diferente da censura do Estado, que não encontra proteção direta nas normas legais. Em outra ocasião chamei a essa censura de “censura disfarçada” [http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed715_a_censura_disfarca...].
Lições para 2014
Embora persista uma desconcertante confusão entre os conceitos de liberdade de expressão e liberdade da imprensa, é inegável que existe hoje uma ampla consciência coletiva sobre a importância crucial da ausência de censura, qualquer que seja, para o bom funcionamento das instituições democráticas. Organismos multilaterais e ONGs de todos os tipos – nacionais e globais – divulgam pesquisas, documentos, índices, rankings, recomendações e fazem lobby em Parlamentos e governos no sentido de assegurar que não exista censura.
Curiosamente, o conceito de censura com o qual trabalham é apenas o da censura oficial, aquela praticada pelo Estado. São raras, raríssimas, as pesquisas, documentos, índices, rankings ou recomendações que se refiram à censura cuja origem é a ação de entidades alheias ao Estado. Ou que se refiram à censura que decorre da estrutura oligopolizada de controle do “sistema privado de mídia”.
Já não seria hora de voltar os olhos também para essa outra censura e denunciá-la?
A censura do Estado à liberdade de expressão no Brasil é anterior à chegada da máquina impressora e sempre foi muito além dela. No século 17, padre Antônio Vieira já afirmava que “o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala” e Paulo Freire, três séculos depois, identificou na “cultura do silêncio” uma das características históricas da formação do povo brasileiro.
Em artigo publicado na Comunicação & Educação (Ano XVIII, nº 2, jul/dez 2013), a professora Cristina Costa, da USP, traça um panorama histórico da censura do Estado no Brasil. Afirma ela:
A censura chegou antes da imprensa, do teatro e das bibliotecas. Durante a colonização, a coroa portuguesa proibia que em terras brasileiras fossem publicados livros e jornais, que se fizessem apresentações públicas sem apoio, incentivo e consentimento das ordens religiosas (guardiãs da fé e da hegemonia metropolitana), bem como eram controlados os acervos de livros, até mesmo os particulares. (...) Não foram apenas a imprensa e a publicação de livros proibidas nos tempos coloniais. Controlavam-se crenças, opiniões, linguagens, assim como proibiam-se idiomas nativos, deuses ‘estrangeiros’, instrumentos musicais inconvenientes e danças consideradas indecentes. (...) Com a Independência e a Monarquia (...) livros e jornais (já havia imprensa no Brasil e ela proliferava) também estavam sujeitos à censura, se fossem defensores da República, do fim da escravidão, ou favoráveis à união entre as coroas portuguesa e brasileira. No século 20 (...) os meios de comunicação se desenvolvem – cinema, rádio e indústria fonográfica, além da imprensa escrita. (...) Uma extensa legislação regulamenta toda sorte de fiscalização à produção simbólica. Getúlio Vargas (...) instituiu formas de censura à imprensa e aos meios de comunicação que fariam inveja aos inquisidores medievais. (...) Até mesmo depois do Estado Novo e durante governos considerados democráticos como o de Juscelino Kubitscheck, utilizou-se a censura para conter o pensamento e a crítica política. (...) Durante a ditadura militar (...), completando quase cinco séculos de existência de controle, em diferentes épocas, o abuso do poder chega a colocar em risco a própria sobrevivência da arte e da cultura nacionais.
A Constituição de 1988, finalmente, determina a extinção da censura oficial e reconhece o direito à “manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo”.
Pagamos até hoje um preço alto pelas consequências da presença histórica do Estado como censor na vida cultural do país. Não há nenhuma dúvida sobre isso. Seria, todavia, a censura do Estado a única forma de censura ou até mesmo a forma de censura mais atuante nos nossos dias?
Outra censura
Desde a década de 1970 do século passado há o reconhecimento formal de que a liberdade da imprensa está sujeita a um tipo de “censura” que decorre da própria estrutura do mercado das empresas de mídia.
O conceituado Pica-Index (Press Independence and Critical Ability), que registra a independência e a capacidade crítica da mídia, incluiu entre seus indicadores as "restrições econômicas" entendidas como consequências da concentração da propriedade ou de problemas que decorram da instabilidade econômica das empresas jornalísticas.
O Freedom of the Press, publicado anualmente pela ONG Freedom House, também trabalha com uma definição de liberdade da imprensa que inclui variáveis econômicas. Vale dizer, considera que restrições à liberdade da imprensa podem decorrer de fatores econômicos alheios à interferência do Estado (cf. Cristina Holtz-Bacha; “What is ‘good’ press freedom? – The difficulty of measuring freedom of the press worldwide”, 2004; http://www.kwpw.wiso.uni-erlangen.de/publikationen/docs/good_press_freed...).
Tim Wu, professor da Columbia Law School, afirma em seu premiado livro Impérios da Comunicação – Do Telefone à Internet, da AT&T ao Google (Zahar, 2012):
Nos Estados Unidos, é a estrutura industrial que determina o limite da liberdade de expressão. (...) A maior parte dos que estudam [as indústrias da informação do século 20] é obcecada pelo papel do governo na censura e na difusão de incentivos à inovação. Mas o papel do Estado, embora seja significativo, não pode ser comparado ao poder da indústria para censurar a expressão ou reprimir a criatividade.
Lembra ainda que a famosa Primeira Emenda (à Constituição dos EUA) pode proteger os americanos “de limitações à sua liberdade de expressão impostas pelo governo, mas nada diz sobre o que podemos fazer para nos limitar uns aos outros”.
Teria a forte presença do Estado impedido que se consolidassem no Brasil outros tipos igualmente ou mais poderosos de cerceamento à liberdade de expressão? Em circunstâncias históricas específicas, teria a censura oficial coincidido com o interesse privado de empresários da comunicação? Será que o Pica-Index seria um instrumento válido de avaliação da liberdade da imprensa entre nós? As afirmações de Tim Wu sobre os EUA se aplicariam também à Constituição Federal de 1988 e às normas legais brasileiras?
Um pouco de história
A transformação da imprensa em atividade empresarial, no Brasil, se inicia no Segundo Reinado. Da mesma forma, a radiodifusão – primeiro o rádio e depois a televisão – consolida-se na metade do século 20 dentro do trustsheep model americano, isto é, um serviço público explorado prioritariamente pela iniciativa privada e sustentado pela publicidade comercial. Esta, inicialmente permitida em até 10% da hora de programação em 1932, passa para 20% em 1952 e para 25% em 1962, chegando à situação atual, em que canais da TV paga transmitem “exclusivamente” comerciais.
Ao longo do tempo, foi se consolidando aqui um “sistema privado de mídia” oligopolizado, vinculado às elites políticas regionais e locais e regido por uma legislação assimétrica em relação a outros serviços públicos, desatualizada e omissa.
Apesar da introdução e utilização generalizada das TICs – as novas tecnologias de informação e comunicação –, a estrutura básica do “sistema privado de mídia” prevalente no país não sofreu alteração significativa nas últimas décadas.
O ex-ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República Franklin Martins, falando em evento recente sobre o tema “Comunicação: o desafio do século”, afirmou:
O Brasil se tornou um país democrático nos últimos dez, doze anos, e não cabe mais no cercadinho dos grupos oligopolizados de comunicação. O rádio e a televisão não conseguem acompanhar as transformações no país. (...) Queiram ou não os grandes grupos, terá de haver uma nova pactuação. Seguramente, temos a legislação mais antiquada do mundo (http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2014/04/avanco-da-democracia-... ).
Nossas leis de radiodifusão têm historicamente protegido os interesses empresariais privados dos concessionários desse serviço público, independentemente de qual é o governo, quais são os partidos ou coligações partidárias no poder ou de qual é o regime político. Ademais, os concessionários do serviço público de radiodifusão têm sido capazes de fazer prevalecer seus interesses, tanto no Poder Executivo quanto na articulação de maiorias parlamentares no Congresso Nacional, que impedem a aprovação de modificações estruturais no “sistema privado de mídia” ou ocasionam a revogação de normas legais que poderiam levar a essas modificações.
Na verdade, uma estrutura oligopolista – em que poucos falam e todos escutam, consolidada e amparada por uma legislação antiquada – tem possibilitado a exclusão sistemática da voz (expressão, opinião) de boa parte da população brasileira no espaço público, dando origem a outro tipo de censura, diferente da censura do Estado, que não encontra proteção direta nas normas legais. Em outra ocasião chamei a essa censura de “censura disfarçada” [http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed715_a_censura_disfarca...].
Lições para 2014
Embora persista uma desconcertante confusão entre os conceitos de liberdade de expressão e liberdade da imprensa, é inegável que existe hoje uma ampla consciência coletiva sobre a importância crucial da ausência de censura, qualquer que seja, para o bom funcionamento das instituições democráticas. Organismos multilaterais e ONGs de todos os tipos – nacionais e globais – divulgam pesquisas, documentos, índices, rankings, recomendações e fazem lobby em Parlamentos e governos no sentido de assegurar que não exista censura.
Curiosamente, o conceito de censura com o qual trabalham é apenas o da censura oficial, aquela praticada pelo Estado. São raras, raríssimas, as pesquisas, documentos, índices, rankings ou recomendações que se refiram à censura cuja origem é a ação de entidades alheias ao Estado. Ou que se refiram à censura que decorre da estrutura oligopolizada de controle do “sistema privado de mídia”.
Já não seria hora de voltar os olhos também para essa outra censura e denunciá-la?
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