Por Edgar Barrero Cuellar, no blog Viomundo:
Durante vários meses, dia a dia, sem descanso, a notícia central nas grandes cadeias informativas é proveniente da Venezuela. Muito além da conjuntura econômica que o país está vivendo e da disputa de poder que está em marcha, não faltam os qualificativos dos criadores de opinião. Guerra psicológica? Como funciona isto? Quais são suas características centrais e seus efeitos? Apresentamos aqui uma aproximação a esta realidade de tantas recordações ruins para a Humanidade.
Pouco se fala sobre as novas e sofisticadas armas de guerra dos Estados Unidos: estratégias de manipulação mental em grande escala, instalação do medo na cotidianidade dos habitantes escolhidos como alvos de suas operações, a implantação de sentimentos de ódio, racismo, segregação e vingança entre habitantes de um mesmo país; desestruturação intelectual mediante a inoculação de imagens que distorcem a realidade; a exacerbação de sentimentos justificadores da crueldade e até mesmo a manipulação atroz de crenças espirituais através de incitadores da morte física ou simbólica dos que são considerados inimigos da fé.
Um arsenal completo que conjuga diferentes técnicas e disciplinas do saber que, ao ser implementadas, recebem o nome genérico de guerra psicológica (gps).
Diante do ataque desestabilizador que o governo venezuelano está enfrentando, é oportuno e importante que nos aprofundemos nos aspectos psico-sócio-antropológicos deste tipo de guerra, tratando de localizar seus elementos estruturais quanto à forma de construção ideológica; assim como os aspectos potenciais para seu enfrentamento e desestruturação como parte do combate pela verdade histórica, a contra-manipulação e a resistência organizada contra as montagens pulsionais construídas para levar à obediência cega e à submissão.
A viúva negra
De acordo com a investigadora Eva Golinger (1), a fase mais recente das operações de gps contra a Venezuela remonta ao ano 2006, quando desde Washington e Bogotá foi lançada uma estratégia aberta de indicações sobre a suposta aliança de Hugo Chávez com as FARC. Na Colômbia, tal campanha foi cinicamente assumida pelo ex-presidente Álvaro Uribe, sobre quem pesa uma infinidade de acusações relativas a seus vínculos com a estrutura paramilitar que converteu a Colômbia numa imensa fossa comum(2).
Esta é apenas a cabeça visível do grande emaranhado de arapucas psicológicas que tratam de captar mentes e corações desprevenidos. Sobretudo, a aceitação das classes médias, que caem magicamente nas teias dessa viúva negra, a qual não terá nenhum prurido em sacrificá-las de imediato para dar sequência a seu cruel plano de pôr fim às tentativas que vêm sendo feitas na Venezuela para mudar as condições sociais e econômicas.
Um caso próximo a isso pode ser visto na tentativa de assassinato de Leopoldo López [líder da oposição venezuelana] por parte dos mesmos setores que o impulsaram a liderar as arruaças e a violência que tiveram lugar em algumas cidades durante os passados meses de fevereiro e março (3).
Primeiro seduzir para logo exterminar, este é um dos princípios do pensamento psicológico ali imposto, o que inclui o sacrifício necessário dos próprios aliados, tal como está demonstrado ao longo da história da Humanidade.
Vejamos a matriz da gps lançada contra a Venezuela em sua dupla perspectiva de ataque imperialista à maior reserva mundial de petróleo e, por sua vez, as possíveis respostas – à luz do direito universal – para a defesa da dignidade e da soberania dos povos. Isto pode ser graficamente esquematizado da seguinte forma:
Corpo físico. Na gps contra o corpo físico dos venezuelanos encontramos a geração maciça de terror através de operações de guerra suja que têm como intenção fundamental a construção de um clima de medo e total sensação de vulnerabilidade que conduza a um pedido de ajuda internacional, tal como fica demonstrado com as 41 pessoas assassinadas e os mais de seiscentos feridos desde fevereiro de 2014 até a presente data (4).
Para a aplicação desta técnica de manipulação e controle, é preciso ocasionar mortos e feridos, que devem ser atribuídos ao Governo e exibidos de forma espetacular nos meios de comunicação impressos, na televisão e nas redes sociais. Esta estratégia busca produzir dor física real naqueles que são vítimas dos franco-atiradores, dos arames que decapitam os motociclistas, da queima de pessoas vivas nos centros de saúde e da tortura mediante golpes a pessoas indefesas.
Corpo mental. Depois da dor física atribuída ao mandatário do país, é preciso vir a expressão de tristeza, fatalismo e raiva social que mobilize a população para a derrubada do governo legitimamente constituído. Primeiro dor física, tristeza social, a seguir, e finalmente raiva irracional são os aspectos potenciados desde a gps contra o governo venezuelano.
Um exemplo disso pode ser evidenciado na campanha internacional de Maria Corina Machado, mostrando imagens distorcidas da realidade, as quais chegaram mesmo a merecer rechaço em âmbitos tão importantes como o Congresso brasileiro, onde a senadora Vanessa Grazziotin qualificou seu vídeo de “uma montagem grotesca” (5).
Corpo inconsciente. Ao nível do corpo mental, as operações psicológicas buscam a instalação de imagens distorcidas da realidade na estrutura intelectual e afetiva das pessoas. Isto se consegue concretizar pela ação contínua e repetitiva dos grandes meios de desinformação, que constroem um universo visual-auditivo para a aceitação passiva da mentira.
Esta situação foi denunciada pela própria Defensora do Povo na ONU, como parte de uma campanha midiática internacional de desprestígio contra a Venezuela, através da qual buscam “difamar as instituições públicas venezuelanas e, assim, deixar transparecer que os direitos humanos de quem protesta violentamente estão sendo desrespeitados e, com isso, propiciar uma intervenção estrangeira nesse país” (6).
Desde a perspectiva da Psicologia da Libertação, este fenômeno pode ser denominado como uma espécie de esquizofrenia social induzida via ocultação sistemática da verdade e pela instalação de realidades paralelas, fantasiosas, por trás das quais habitam fantasmas, demônios e monstros assassinos.
A gps penetra a subjetividade por meio de imagens e discursos altamente ideologizados que conseguem instalar-se na psique e, uma vez ali, adquirem vida própria, se auto-reproduzem com o mais leve contato de novas imagens e/ou de novas mensagens provenientes da matriz mágica do encantamento fascista que infantiliza em grande escala.
Tal infantilização e embrutecimento fica claramente evidenciada nos fatos relacionados com o assédio e a agressão à embaixada de Cuba na Venezuela no ano 2002. Homens e mulheres são induzidos de forma cega a agredir os veículos da missão diplomática usando as partes mais frágeis de seu corpo – como as próprias mãos – para destruir a golpes objetos que são claramente indestrutíveis com um simples golpe.
A capacidade de raciocínio desaparece por completo para dar lugar ao desbordo emocional por meio da imitação e o contágio psicossocial. A habilidade humana para pensar utilizando ferramentas e antecipando consequências é substituída pelo instinto animal, que se mobiliza unicamente pela via da satisfação de necessidades primárias. É por isso que a massa é conduzida como ovelhas ao rebanho.
Corpo mágico. O que acabamos de ver fica articulado de maneira sincronizada com o campo do corpo mágico. Ali, a gps tem como função disparar uma série de dispositivos para a geração de um certo encantamento psico-sócio-antropológico por meio do qual apodera-se completamente da vontade de grandes grupos de seres humanos a nível nacional e internacional.
Como nas velhas épocas de fábulas e contos encantados, na fase atual da guerra contra a Venezuela recorrem a este antigo método de gps mediante o qual conseguem criar uma percepção social da realidade totalmente falsa e acomodada aos interesses dos poderosos grupos econômicos, políticos e militares. Na consciência mágica, o ser humano tem um certa noção do que realmente está ocorrendo, mas é tanta a efetividade do encantamento que perde-se por completo a capacidade de resposta crítica diante dos fatos reais.
Uma forma concreta de ver como opera este nível da gps contra o Governo Bolivariano pode ser observada na maneira como conduziram um grande número de pessoas a um enfrentamento com os simpatizantes chavistas que defendiam o legítimo mandato de Hugo Chávez quando da frustrada tentativa de golpe de Estado de abril de 2002, episódio conhecido como o massacre de Ponte Llaguno.
É preciso estar encantado para não se dar conta do perigo de morte a que foram conduzidos, pois nesse momento se falava de franco-atiradores disparando contra ambos lados da multidão. É necessário estar “abobado” para não se dar conta de que os que promoviam o massacre entre irmãos desapareceram dali ao mesmo tempo que propiciavam os enfrentamentos (7).
[Nota do Viomundo: O documentário A Revolução Não Será Televisionada descreve detalhadamente o episódio. De última hora, uma manifestação oposicionista foi transformada em marcha ao Palácio Miraflores, onde todos sabiam haver uma multidão de chavistas. O objetivo era criar as vítimas fatais posteriormente atribuídas à repressão do governo]
O corpo mágico da sociedade é um dos mais lesionados com a gps, técnicas com as quais capturam e enfeitiçam grandes grupos humanos, levando-os inclusive à morte, a qual pode ser física, mas também psicológica e espiritual. Ou seja, que não apenas se entrega a vontade física dos seres humanos para seu sacrifício, senão que também entregam a vontade psicológica e espiritual que estabelece os limites éticos e morais.
Um exemplo disso é a forma como parte da indústria midiática estabelecida em países como a Colômbia manipulam as notícias. Parece que meios como NTN, Caracol e RCN entendem que a distorção total da realidade é o único referencial ético para o que está acontecendo no país vizinho (8).
Corpo espiritual. Neste plano, pode-se constatar uma poderosa manipulação das dimensões mais sagradas do ser humano, até o ponto de levá-lo – sem que ele se dê conta – a situações de atrocidade, como o gosto ou o prazer por/com a barbárie, a morte, a tortura e a desaparição do outro (9).
A combinação estratégica de mitos espirituais e/ou religiosos com símbolos patrióticos pode levar a níveis de fanatismo nos quais o sentido formal das crenças chega a ser transformado, sutilmente substituído por outros carregados de conteúdos ideológicos imperceptíveis para a pessoa crente. Talvez seja duro aceitar isso, mas muitas vezes utilizam elementos tão sagrados como a eucaristia para incentivar a guerra e o sacrifício dos próprios irmãos.
O que acabamos de mencionar pode ser evidenciado nas missas oferecidas pelo sacerdote venezuelano Pedro Freites, em Bogotá.
No púlpito, ele coloca a bandeira da Venezuela, na qual aparecem apenas sete estrelas e não oito, como realmente está aprovada pela Constituição Bolivariana, posto que a oitava estrela foi uma iniciativa de Hugo Chávez ao retomar um decreto de 1817 do próprio Libertador Simón Bolívar, no qual decreta a incorporação da oitava estrela como um reconhecimento da independência da província da Guayana.
Um aspecto ainda mais importante tem a ver com a entoação do hino da Venezuela no momento da consagração.
Ali se materializa essa combinação perversa de simbologia religiosa e nacionalista com que se criam fantasmas diabólicos aos quais o dever cristão conclama a combater: “Nós precisamos estar claros que necessitamos uma estrutura democrática contra um regime ditatorial e não pudemos obter a luz [...] este evangelho de São Paulo cai como um anel no dedo, ao final nos diz, desperta tu que dormes, levanta-te e vê a luz e não obtivemos a luz” (10).
A luz aparece como símbolo messiânico da salvação e como dever moral a seguir.
Nas palavras de Hinkelammert, “O império só adverte maldades nos outros, ações diabólicas, e, por isso, entende sua própria política como um grande exorcismo” (11).
A manipulação da espiritualidade e da religiosidade dos povos é uma das formas mais certeiras das operações psicológicas.
É possível fazer algo contra esta matriz?
Quem sofre este tipo de ataques deve analisar criticamente a forma de desmascará-los: mostrar as verdadeiras imagens e repetir incessantemente a mensagem da verdade.
Não se trata de mostrar ou demonstrar razões, pois aqueles que caíram nesse estado de encantamento ideológico não são capazes de discernir argumentos, senão de deixarem-se levar por suas emoções e espiritualidades sutilmente manipuladas. Isto foi brilhantemente demonstrado por Wilhelm Reich emPsicologia das massas no fascismo.
Os discursos nacional-socialistas de propaganda se caracterizavam por fazer hábeis chamadas aos sentimentos dos indivíduos integrados na massa, e pela renúncia, à medida do possível, a toda argumentação objetiva. Em sua obra Mein Kampf (Minha Luta), Hitler ressalta em repetidas ocasiões que a boa tática em matéria de psicologia de massas reside em renunciar a toda argumentação e em apresentar às massas somente “a grande meta final”.
Não se trata de renunciar ao nível da argumentação. O desafio é incorporar outros elementos estruturais do psicológico, como o emocional e o espiritual, pois sobre eles é que a guerra psicológica implementada contra a Venezuela se sustenta.
Isto implica criar melhores formas de comunicação social a nível interno e externo, com a presença de psicólogos especialistas no tratamento de montagens emocionais e espirituais, o que inclui edição impressa, presença constantes em canais públicos e privados de televisão, ofensivas comunicativas em redes sociais e, se possível, aquisição de canais próprios – como a Telesur – para a educação e conscientização política.
É um desafio urgente para este tipo de governo. Ao observar com atenção os discursos da chamada oposição na mesa de diálogo para a paz (10 de abril de 2014), pode-se ver que ali não havia um alto nível de argumentação, senão que, ao contrário, um desbordo emocional que passava do riso irônico e burlão aos olhares de ódio e desprezo para com os representantes legítimos do governo.
Inclui estratégias bem elaboradas, como chamar pelo nome o presidente Maduro, tal como fez Capriles, que buscam deixar uma imagem de bom homem, respeitoso e confiante, que não seria capaz de fazer mal a ninguém. Esse nível sutil da gps é o que penetra profundamente na estrutura ideoafetiva da massa.
É nesses momentos que a psicologia pode fazer suas verdadeiras apostas ético-políticas pela verdade histórica. O papel de psicólogos, psiquiatras e outros especialistas não pode permanecer funcional à guerra, à tortura e à polarização psicossocial.
Nosso proceder tem de servir à sociedade plenamente, sem submeter-se às pequenas elites que historicamente vem submetendo os povos a crueis condições de existência material, psicológica e espiritual. A grande missão dos Psicólogos pela Verdade pode ser uma forma de concretização deste ideal humanista.
* Edgar Barrero Cuellar é psicólogo social e mestre em filosofia. Tradução de Jair de Souza.
Notas:
1 – Disponível aqui.
2 – No livro Por las sendas del ubérrimo de Iván Cepeda e Alirio Uribe, estão documentadas as obscuras relações de Álvaro Uribe Vélez com a estrutura paramilitar colombiana, narcotraficantes e até a delinquência comum. Ali se fala de “276 denúncias radicadas perante a Comisisão de Investigação e Acusação da Câmara de Representantes que comprometem ao ex-presidente Álvaro Uribe” (p.196).
3 – Disponível aqui.
4 – Disponível aqui.
5 – Disponível aqui.
6 – Disponível aqui.
7 – Esta forma de proceder está suficientemente documentado no trabalho investigativo de Ángel Palacios denominado Puente Llaguno: claves de una masacre:
8 – Ver aqui.
9 – Se desejam se aprofundar neste aspecto da guerra psicológica, podem consultar o livro De los pájaros azules a las águilas negras: estética de lo atroz. Psicohistoria del conflicto armado en Colombia, de Edgar Barrero Cuellar, editado por Fondo Editorial Cátedra Libre en 2011, Bogotá-Colombia.
10 – Sacerdote Pedro Freites. Palavras pronunciadas na celebração da missa na Parróquia Santa Clara (Bogotá) em 30 de março de 2014. A esta missa compareceram o candidato uribista Oscar Iván Zuluaga e a senadora Tania Vega, esposa do Coronel Luis Alfonso Plazas Vega, condenado a 30 anos pelo delito de desaparição forçada no holocausto do Palacio de Justiça em 1985.
11 – Franz Hinkelammert. El asalto al poder mundial y la violencia sagrada del Imperio. San José de Costa Rica, Editorial Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), 2003.
Durante vários meses, dia a dia, sem descanso, a notícia central nas grandes cadeias informativas é proveniente da Venezuela. Muito além da conjuntura econômica que o país está vivendo e da disputa de poder que está em marcha, não faltam os qualificativos dos criadores de opinião. Guerra psicológica? Como funciona isto? Quais são suas características centrais e seus efeitos? Apresentamos aqui uma aproximação a esta realidade de tantas recordações ruins para a Humanidade.
Pouco se fala sobre as novas e sofisticadas armas de guerra dos Estados Unidos: estratégias de manipulação mental em grande escala, instalação do medo na cotidianidade dos habitantes escolhidos como alvos de suas operações, a implantação de sentimentos de ódio, racismo, segregação e vingança entre habitantes de um mesmo país; desestruturação intelectual mediante a inoculação de imagens que distorcem a realidade; a exacerbação de sentimentos justificadores da crueldade e até mesmo a manipulação atroz de crenças espirituais através de incitadores da morte física ou simbólica dos que são considerados inimigos da fé.
Um arsenal completo que conjuga diferentes técnicas e disciplinas do saber que, ao ser implementadas, recebem o nome genérico de guerra psicológica (gps).
Diante do ataque desestabilizador que o governo venezuelano está enfrentando, é oportuno e importante que nos aprofundemos nos aspectos psico-sócio-antropológicos deste tipo de guerra, tratando de localizar seus elementos estruturais quanto à forma de construção ideológica; assim como os aspectos potenciais para seu enfrentamento e desestruturação como parte do combate pela verdade histórica, a contra-manipulação e a resistência organizada contra as montagens pulsionais construídas para levar à obediência cega e à submissão.
A viúva negra
De acordo com a investigadora Eva Golinger (1), a fase mais recente das operações de gps contra a Venezuela remonta ao ano 2006, quando desde Washington e Bogotá foi lançada uma estratégia aberta de indicações sobre a suposta aliança de Hugo Chávez com as FARC. Na Colômbia, tal campanha foi cinicamente assumida pelo ex-presidente Álvaro Uribe, sobre quem pesa uma infinidade de acusações relativas a seus vínculos com a estrutura paramilitar que converteu a Colômbia numa imensa fossa comum(2).
Esta é apenas a cabeça visível do grande emaranhado de arapucas psicológicas que tratam de captar mentes e corações desprevenidos. Sobretudo, a aceitação das classes médias, que caem magicamente nas teias dessa viúva negra, a qual não terá nenhum prurido em sacrificá-las de imediato para dar sequência a seu cruel plano de pôr fim às tentativas que vêm sendo feitas na Venezuela para mudar as condições sociais e econômicas.
Um caso próximo a isso pode ser visto na tentativa de assassinato de Leopoldo López [líder da oposição venezuelana] por parte dos mesmos setores que o impulsaram a liderar as arruaças e a violência que tiveram lugar em algumas cidades durante os passados meses de fevereiro e março (3).
Primeiro seduzir para logo exterminar, este é um dos princípios do pensamento psicológico ali imposto, o que inclui o sacrifício necessário dos próprios aliados, tal como está demonstrado ao longo da história da Humanidade.
Vejamos a matriz da gps lançada contra a Venezuela em sua dupla perspectiva de ataque imperialista à maior reserva mundial de petróleo e, por sua vez, as possíveis respostas – à luz do direito universal – para a defesa da dignidade e da soberania dos povos. Isto pode ser graficamente esquematizado da seguinte forma:
Corpo físico. Na gps contra o corpo físico dos venezuelanos encontramos a geração maciça de terror através de operações de guerra suja que têm como intenção fundamental a construção de um clima de medo e total sensação de vulnerabilidade que conduza a um pedido de ajuda internacional, tal como fica demonstrado com as 41 pessoas assassinadas e os mais de seiscentos feridos desde fevereiro de 2014 até a presente data (4).
Para a aplicação desta técnica de manipulação e controle, é preciso ocasionar mortos e feridos, que devem ser atribuídos ao Governo e exibidos de forma espetacular nos meios de comunicação impressos, na televisão e nas redes sociais. Esta estratégia busca produzir dor física real naqueles que são vítimas dos franco-atiradores, dos arames que decapitam os motociclistas, da queima de pessoas vivas nos centros de saúde e da tortura mediante golpes a pessoas indefesas.
Corpo mental. Depois da dor física atribuída ao mandatário do país, é preciso vir a expressão de tristeza, fatalismo e raiva social que mobilize a população para a derrubada do governo legitimamente constituído. Primeiro dor física, tristeza social, a seguir, e finalmente raiva irracional são os aspectos potenciados desde a gps contra o governo venezuelano.
Um exemplo disso pode ser evidenciado na campanha internacional de Maria Corina Machado, mostrando imagens distorcidas da realidade, as quais chegaram mesmo a merecer rechaço em âmbitos tão importantes como o Congresso brasileiro, onde a senadora Vanessa Grazziotin qualificou seu vídeo de “uma montagem grotesca” (5).
Corpo inconsciente. Ao nível do corpo mental, as operações psicológicas buscam a instalação de imagens distorcidas da realidade na estrutura intelectual e afetiva das pessoas. Isto se consegue concretizar pela ação contínua e repetitiva dos grandes meios de desinformação, que constroem um universo visual-auditivo para a aceitação passiva da mentira.
Esta situação foi denunciada pela própria Defensora do Povo na ONU, como parte de uma campanha midiática internacional de desprestígio contra a Venezuela, através da qual buscam “difamar as instituições públicas venezuelanas e, assim, deixar transparecer que os direitos humanos de quem protesta violentamente estão sendo desrespeitados e, com isso, propiciar uma intervenção estrangeira nesse país” (6).
Desde a perspectiva da Psicologia da Libertação, este fenômeno pode ser denominado como uma espécie de esquizofrenia social induzida via ocultação sistemática da verdade e pela instalação de realidades paralelas, fantasiosas, por trás das quais habitam fantasmas, demônios e monstros assassinos.
A gps penetra a subjetividade por meio de imagens e discursos altamente ideologizados que conseguem instalar-se na psique e, uma vez ali, adquirem vida própria, se auto-reproduzem com o mais leve contato de novas imagens e/ou de novas mensagens provenientes da matriz mágica do encantamento fascista que infantiliza em grande escala.
Tal infantilização e embrutecimento fica claramente evidenciada nos fatos relacionados com o assédio e a agressão à embaixada de Cuba na Venezuela no ano 2002. Homens e mulheres são induzidos de forma cega a agredir os veículos da missão diplomática usando as partes mais frágeis de seu corpo – como as próprias mãos – para destruir a golpes objetos que são claramente indestrutíveis com um simples golpe.
A capacidade de raciocínio desaparece por completo para dar lugar ao desbordo emocional por meio da imitação e o contágio psicossocial. A habilidade humana para pensar utilizando ferramentas e antecipando consequências é substituída pelo instinto animal, que se mobiliza unicamente pela via da satisfação de necessidades primárias. É por isso que a massa é conduzida como ovelhas ao rebanho.
Corpo mágico. O que acabamos de ver fica articulado de maneira sincronizada com o campo do corpo mágico. Ali, a gps tem como função disparar uma série de dispositivos para a geração de um certo encantamento psico-sócio-antropológico por meio do qual apodera-se completamente da vontade de grandes grupos de seres humanos a nível nacional e internacional.
Como nas velhas épocas de fábulas e contos encantados, na fase atual da guerra contra a Venezuela recorrem a este antigo método de gps mediante o qual conseguem criar uma percepção social da realidade totalmente falsa e acomodada aos interesses dos poderosos grupos econômicos, políticos e militares. Na consciência mágica, o ser humano tem um certa noção do que realmente está ocorrendo, mas é tanta a efetividade do encantamento que perde-se por completo a capacidade de resposta crítica diante dos fatos reais.
Uma forma concreta de ver como opera este nível da gps contra o Governo Bolivariano pode ser observada na maneira como conduziram um grande número de pessoas a um enfrentamento com os simpatizantes chavistas que defendiam o legítimo mandato de Hugo Chávez quando da frustrada tentativa de golpe de Estado de abril de 2002, episódio conhecido como o massacre de Ponte Llaguno.
É preciso estar encantado para não se dar conta do perigo de morte a que foram conduzidos, pois nesse momento se falava de franco-atiradores disparando contra ambos lados da multidão. É necessário estar “abobado” para não se dar conta de que os que promoviam o massacre entre irmãos desapareceram dali ao mesmo tempo que propiciavam os enfrentamentos (7).
[Nota do Viomundo: O documentário A Revolução Não Será Televisionada descreve detalhadamente o episódio. De última hora, uma manifestação oposicionista foi transformada em marcha ao Palácio Miraflores, onde todos sabiam haver uma multidão de chavistas. O objetivo era criar as vítimas fatais posteriormente atribuídas à repressão do governo]
O corpo mágico da sociedade é um dos mais lesionados com a gps, técnicas com as quais capturam e enfeitiçam grandes grupos humanos, levando-os inclusive à morte, a qual pode ser física, mas também psicológica e espiritual. Ou seja, que não apenas se entrega a vontade física dos seres humanos para seu sacrifício, senão que também entregam a vontade psicológica e espiritual que estabelece os limites éticos e morais.
Um exemplo disso é a forma como parte da indústria midiática estabelecida em países como a Colômbia manipulam as notícias. Parece que meios como NTN, Caracol e RCN entendem que a distorção total da realidade é o único referencial ético para o que está acontecendo no país vizinho (8).
Corpo espiritual. Neste plano, pode-se constatar uma poderosa manipulação das dimensões mais sagradas do ser humano, até o ponto de levá-lo – sem que ele se dê conta – a situações de atrocidade, como o gosto ou o prazer por/com a barbárie, a morte, a tortura e a desaparição do outro (9).
A combinação estratégica de mitos espirituais e/ou religiosos com símbolos patrióticos pode levar a níveis de fanatismo nos quais o sentido formal das crenças chega a ser transformado, sutilmente substituído por outros carregados de conteúdos ideológicos imperceptíveis para a pessoa crente. Talvez seja duro aceitar isso, mas muitas vezes utilizam elementos tão sagrados como a eucaristia para incentivar a guerra e o sacrifício dos próprios irmãos.
O que acabamos de mencionar pode ser evidenciado nas missas oferecidas pelo sacerdote venezuelano Pedro Freites, em Bogotá.
No púlpito, ele coloca a bandeira da Venezuela, na qual aparecem apenas sete estrelas e não oito, como realmente está aprovada pela Constituição Bolivariana, posto que a oitava estrela foi uma iniciativa de Hugo Chávez ao retomar um decreto de 1817 do próprio Libertador Simón Bolívar, no qual decreta a incorporação da oitava estrela como um reconhecimento da independência da província da Guayana.
Um aspecto ainda mais importante tem a ver com a entoação do hino da Venezuela no momento da consagração.
Ali se materializa essa combinação perversa de simbologia religiosa e nacionalista com que se criam fantasmas diabólicos aos quais o dever cristão conclama a combater: “Nós precisamos estar claros que necessitamos uma estrutura democrática contra um regime ditatorial e não pudemos obter a luz [...] este evangelho de São Paulo cai como um anel no dedo, ao final nos diz, desperta tu que dormes, levanta-te e vê a luz e não obtivemos a luz” (10).
A luz aparece como símbolo messiânico da salvação e como dever moral a seguir.
Nas palavras de Hinkelammert, “O império só adverte maldades nos outros, ações diabólicas, e, por isso, entende sua própria política como um grande exorcismo” (11).
A manipulação da espiritualidade e da religiosidade dos povos é uma das formas mais certeiras das operações psicológicas.
É possível fazer algo contra esta matriz?
Quem sofre este tipo de ataques deve analisar criticamente a forma de desmascará-los: mostrar as verdadeiras imagens e repetir incessantemente a mensagem da verdade.
Não se trata de mostrar ou demonstrar razões, pois aqueles que caíram nesse estado de encantamento ideológico não são capazes de discernir argumentos, senão de deixarem-se levar por suas emoções e espiritualidades sutilmente manipuladas. Isto foi brilhantemente demonstrado por Wilhelm Reich emPsicologia das massas no fascismo.
Os discursos nacional-socialistas de propaganda se caracterizavam por fazer hábeis chamadas aos sentimentos dos indivíduos integrados na massa, e pela renúncia, à medida do possível, a toda argumentação objetiva. Em sua obra Mein Kampf (Minha Luta), Hitler ressalta em repetidas ocasiões que a boa tática em matéria de psicologia de massas reside em renunciar a toda argumentação e em apresentar às massas somente “a grande meta final”.
Não se trata de renunciar ao nível da argumentação. O desafio é incorporar outros elementos estruturais do psicológico, como o emocional e o espiritual, pois sobre eles é que a guerra psicológica implementada contra a Venezuela se sustenta.
Isto implica criar melhores formas de comunicação social a nível interno e externo, com a presença de psicólogos especialistas no tratamento de montagens emocionais e espirituais, o que inclui edição impressa, presença constantes em canais públicos e privados de televisão, ofensivas comunicativas em redes sociais e, se possível, aquisição de canais próprios – como a Telesur – para a educação e conscientização política.
É um desafio urgente para este tipo de governo. Ao observar com atenção os discursos da chamada oposição na mesa de diálogo para a paz (10 de abril de 2014), pode-se ver que ali não havia um alto nível de argumentação, senão que, ao contrário, um desbordo emocional que passava do riso irônico e burlão aos olhares de ódio e desprezo para com os representantes legítimos do governo.
Inclui estratégias bem elaboradas, como chamar pelo nome o presidente Maduro, tal como fez Capriles, que buscam deixar uma imagem de bom homem, respeitoso e confiante, que não seria capaz de fazer mal a ninguém. Esse nível sutil da gps é o que penetra profundamente na estrutura ideoafetiva da massa.
É nesses momentos que a psicologia pode fazer suas verdadeiras apostas ético-políticas pela verdade histórica. O papel de psicólogos, psiquiatras e outros especialistas não pode permanecer funcional à guerra, à tortura e à polarização psicossocial.
Nosso proceder tem de servir à sociedade plenamente, sem submeter-se às pequenas elites que historicamente vem submetendo os povos a crueis condições de existência material, psicológica e espiritual. A grande missão dos Psicólogos pela Verdade pode ser uma forma de concretização deste ideal humanista.
* Edgar Barrero Cuellar é psicólogo social e mestre em filosofia. Tradução de Jair de Souza.
Notas:
1 – Disponível aqui.
2 – No livro Por las sendas del ubérrimo de Iván Cepeda e Alirio Uribe, estão documentadas as obscuras relações de Álvaro Uribe Vélez com a estrutura paramilitar colombiana, narcotraficantes e até a delinquência comum. Ali se fala de “276 denúncias radicadas perante a Comisisão de Investigação e Acusação da Câmara de Representantes que comprometem ao ex-presidente Álvaro Uribe” (p.196).
3 – Disponível aqui.
4 – Disponível aqui.
5 – Disponível aqui.
6 – Disponível aqui.
7 – Esta forma de proceder está suficientemente documentado no trabalho investigativo de Ángel Palacios denominado Puente Llaguno: claves de una masacre:
8 – Ver aqui.
9 – Se desejam se aprofundar neste aspecto da guerra psicológica, podem consultar o livro De los pájaros azules a las águilas negras: estética de lo atroz. Psicohistoria del conflicto armado en Colombia, de Edgar Barrero Cuellar, editado por Fondo Editorial Cátedra Libre en 2011, Bogotá-Colombia.
10 – Sacerdote Pedro Freites. Palavras pronunciadas na celebração da missa na Parróquia Santa Clara (Bogotá) em 30 de março de 2014. A esta missa compareceram o candidato uribista Oscar Iván Zuluaga e a senadora Tania Vega, esposa do Coronel Luis Alfonso Plazas Vega, condenado a 30 anos pelo delito de desaparição forçada no holocausto do Palacio de Justiça em 1985.
11 – Franz Hinkelammert. El asalto al poder mundial y la violencia sagrada del Imperio. San José de Costa Rica, Editorial Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), 2003.
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