Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:
As “entrevistas” ao vivo com os quatro primeiros candidatos nas pesquisas de intenção de voto divulgadas para a Presidência da República (antes da trágica morte de Eduardo Campos), realizadas pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, tornam obrigatória uma reflexão sobre o exercício do poder político no Brasil [íntegras disponíveis aqui, aqui,aqui e aqui].
De um lado, candidatos ao mais elevado cargo público da democracia representativa brasileira, devidamente homologados por seus respectivos partidos/coligações, em conformidade com a legislação eleitoral e em início de campanha. Do outro, jornalistas da empresa comercial que é a maior concessionária do serviço público de radiodifusão do país e parte de um dos maiores oligopólios de mídia do mundo.
Não se pretende colocar em questão o papel fundamental que a comunicação tecnologicamente mediada exerce nos processos democráticos. Ao contrário. É exatamente em razão do reconhecimento desse papel (sem mencionar as graves distorções históricas que caracterizam esse setor no Brasil) que se fazem as reflexões a seguir.
Entrevistas?
Na primeira “entrevista”, o âncora do JN, William Bonner, advertiu a entrevistados e telespectadores que a série trataria de temas polêmicos e confrontaria (sic) os candidatos com o seu desempenho em cargos públicos.
Além do pressuposto básico de que deve haver respeito mútuo mínimo entre entrevistador e entrevistado, qualquer estudante de jornalismo sabe que o segredo para uma boa entrevista começa com o saber perguntar: as opiniões do entrevistador devem ficar fora das perguntas e não se deve argumentar com o entrevistado tentando convencê-lo de que a versão correta é aquela apresentada na pergunta. A entrevista ideal, portanto, deveria ser uma conversa e não uma contenda.
O que se viu, no entanto, foi outra coisa.
A postura imperial dos “entrevistadores” denotava a assimetria de poder expressa na arrogância investida de autoridade autoatribuída de fiadores do interesse público. A postura dos “entrevistados” implicava a aceitação da inevitabilidade de serem submetidos a uma inquisição pública em rede nacional de televisão, sem qualquer garantia sobre a forma como seriam “tratados” e/ou em relação à equidade do tempo concedido para resposta das “perguntas” feitas ao vivo.
Não houve jornalismo. Não houve conversa, mas um combate. Não houve perguntas, mas ataques. Os “entrevistados” foram fustigados e provocados pelos “entrevistadores” como se estivessem em um duelo público. Nenhuma das regras elementares para a condução de uma entrevista jornalística foi cumprida
A “entrevista” com a presidente da República, candidata à reeleição, foi particularmente exemplar. A indisfarçável diferença do tratamento dispensado a ela, comparativamente aos outros “entrevistados”, já foi registrada por Glauco Faria e Maíra Streit em “Desconstruindo Bonner – uma análise das entrevistas de Dilma, Aécio e Campos” (ver aqui). Recebidos em sua casa, isto é, na biblioteca da residência oficial do(a) presidente da República, o Palácio da Alvorada, os “entrevistadores” da Globo se portaram como se fossem eles os detentores do poder político institucionalizado e conduziram uma inquisição beligerante da maior autoridade pública do país, à qual não faltou sequer um dedo em riste contestando uma resposta.
Quero, todavia, chamar a atenção para outro aspecto.
Um poder que paira sobre todos os outros?
Para além da “cobertura adversária” que desqualifica permanentemente a política e os políticos, identificada pela socióloga Maria do Carmo Campello de Souza há quase trinta anos, a grande mídia brasileira historicamente atribui a si mesma o duplo papel de formadora e de representante da opinião pública. Ela reivindica a legitimidade que disfarçadamente não reconhece nas instituições políticas tradicionais da democracia representativa, vale dizer, políticos, partidos políticos, parlamentos nos seus diferentes níveis e, no limite, no presidente da República, eleito dentro das regras do Estado de Direito.
O exemplo emblemático desse comportamento foi a “rede da democracia”, movimento liderado pelo Globo, Diários Associados e Jornal do Brasil que antecedeu ao golpe de 1964 (cf. A Rede da Democracia, Aloysio Castelo de Carvalho, Editora da UFF/Nitpress, 2010). As “entrevistas” de 2014 parecem, todavia, indicar um passo adiante neste comportamento histórico.
Para além da “cobertura adversária” e de formadora/representante da opinião pública, a TV Globo se apresenta como um superpoder, que paira soberano acima dos poderes institucionalizados pelo processo eleitoral da democracia representativa. Poder soberano ao qual todos os outros poderes – institucionalizados ou não – devem, incondicionalmente, explicações públicas.
O que representa simbolicamente o enfrentamento público assimétrico de dois jornalistas com candidatos ao mais alto cargo da democracia brasileira, inclusive com a candidata/presidente da República?
Quais grupos se fortalecem com o enfraquecimento e o desafio público a candidatos à Presidência da República e a ocupantes das mais altas posições na hierarquia das instituições democráticas?
Se uma candidata, no exercício da Presidência da República, pode ser destratada de forma agressiva e descortês publicamente em uma rede de televisão, por que não pode fazer o mesmo um cidadão comum?
Outro país
Talvez a grande ironia das “entrevistas” do JN nas eleições de 2014 seja a constatação de que, apesar do imenso poder que as Organizações Globo ainda desfrutam, o Brasil de hoje é um país diferente daquele dos anos da ditadura.
Será que a maioria dos eventuais telespectadores do JN acreditará que os “entrevistadores” são jornalistas imparciais, independentes e buscam apenas a defesa do interesse público?
Será que, em tempos de mudanças radicais no setor de comunicações, a aposta da Rede Globo não estaria equivocada e o seu imenso poder não estaria melhor servido se exercido nos limites mínimos de respeito aos políticos, à política e às instituições políticas da democracia representativa dentro da qual opera e sobrevive como oligopólio midiático?
A ver.
De um lado, candidatos ao mais elevado cargo público da democracia representativa brasileira, devidamente homologados por seus respectivos partidos/coligações, em conformidade com a legislação eleitoral e em início de campanha. Do outro, jornalistas da empresa comercial que é a maior concessionária do serviço público de radiodifusão do país e parte de um dos maiores oligopólios de mídia do mundo.
Não se pretende colocar em questão o papel fundamental que a comunicação tecnologicamente mediada exerce nos processos democráticos. Ao contrário. É exatamente em razão do reconhecimento desse papel (sem mencionar as graves distorções históricas que caracterizam esse setor no Brasil) que se fazem as reflexões a seguir.
Entrevistas?
Na primeira “entrevista”, o âncora do JN, William Bonner, advertiu a entrevistados e telespectadores que a série trataria de temas polêmicos e confrontaria (sic) os candidatos com o seu desempenho em cargos públicos.
Além do pressuposto básico de que deve haver respeito mútuo mínimo entre entrevistador e entrevistado, qualquer estudante de jornalismo sabe que o segredo para uma boa entrevista começa com o saber perguntar: as opiniões do entrevistador devem ficar fora das perguntas e não se deve argumentar com o entrevistado tentando convencê-lo de que a versão correta é aquela apresentada na pergunta. A entrevista ideal, portanto, deveria ser uma conversa e não uma contenda.
O que se viu, no entanto, foi outra coisa.
A postura imperial dos “entrevistadores” denotava a assimetria de poder expressa na arrogância investida de autoridade autoatribuída de fiadores do interesse público. A postura dos “entrevistados” implicava a aceitação da inevitabilidade de serem submetidos a uma inquisição pública em rede nacional de televisão, sem qualquer garantia sobre a forma como seriam “tratados” e/ou em relação à equidade do tempo concedido para resposta das “perguntas” feitas ao vivo.
Não houve jornalismo. Não houve conversa, mas um combate. Não houve perguntas, mas ataques. Os “entrevistados” foram fustigados e provocados pelos “entrevistadores” como se estivessem em um duelo público. Nenhuma das regras elementares para a condução de uma entrevista jornalística foi cumprida
A “entrevista” com a presidente da República, candidata à reeleição, foi particularmente exemplar. A indisfarçável diferença do tratamento dispensado a ela, comparativamente aos outros “entrevistados”, já foi registrada por Glauco Faria e Maíra Streit em “Desconstruindo Bonner – uma análise das entrevistas de Dilma, Aécio e Campos” (ver aqui). Recebidos em sua casa, isto é, na biblioteca da residência oficial do(a) presidente da República, o Palácio da Alvorada, os “entrevistadores” da Globo se portaram como se fossem eles os detentores do poder político institucionalizado e conduziram uma inquisição beligerante da maior autoridade pública do país, à qual não faltou sequer um dedo em riste contestando uma resposta.
Quero, todavia, chamar a atenção para outro aspecto.
Um poder que paira sobre todos os outros?
Para além da “cobertura adversária” que desqualifica permanentemente a política e os políticos, identificada pela socióloga Maria do Carmo Campello de Souza há quase trinta anos, a grande mídia brasileira historicamente atribui a si mesma o duplo papel de formadora e de representante da opinião pública. Ela reivindica a legitimidade que disfarçadamente não reconhece nas instituições políticas tradicionais da democracia representativa, vale dizer, políticos, partidos políticos, parlamentos nos seus diferentes níveis e, no limite, no presidente da República, eleito dentro das regras do Estado de Direito.
O exemplo emblemático desse comportamento foi a “rede da democracia”, movimento liderado pelo Globo, Diários Associados e Jornal do Brasil que antecedeu ao golpe de 1964 (cf. A Rede da Democracia, Aloysio Castelo de Carvalho, Editora da UFF/Nitpress, 2010). As “entrevistas” de 2014 parecem, todavia, indicar um passo adiante neste comportamento histórico.
Para além da “cobertura adversária” e de formadora/representante da opinião pública, a TV Globo se apresenta como um superpoder, que paira soberano acima dos poderes institucionalizados pelo processo eleitoral da democracia representativa. Poder soberano ao qual todos os outros poderes – institucionalizados ou não – devem, incondicionalmente, explicações públicas.
O que representa simbolicamente o enfrentamento público assimétrico de dois jornalistas com candidatos ao mais alto cargo da democracia brasileira, inclusive com a candidata/presidente da República?
Quais grupos se fortalecem com o enfraquecimento e o desafio público a candidatos à Presidência da República e a ocupantes das mais altas posições na hierarquia das instituições democráticas?
Se uma candidata, no exercício da Presidência da República, pode ser destratada de forma agressiva e descortês publicamente em uma rede de televisão, por que não pode fazer o mesmo um cidadão comum?
Outro país
Talvez a grande ironia das “entrevistas” do JN nas eleições de 2014 seja a constatação de que, apesar do imenso poder que as Organizações Globo ainda desfrutam, o Brasil de hoje é um país diferente daquele dos anos da ditadura.
Será que a maioria dos eventuais telespectadores do JN acreditará que os “entrevistadores” são jornalistas imparciais, independentes e buscam apenas a defesa do interesse público?
Será que, em tempos de mudanças radicais no setor de comunicações, a aposta da Rede Globo não estaria equivocada e o seu imenso poder não estaria melhor servido se exercido nos limites mínimos de respeito aos políticos, à política e às instituições políticas da democracia representativa dentro da qual opera e sobrevive como oligopólio midiático?
A ver.
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