quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Desconstruindo as “pedaladas fiscais”

Por Julio Adelaide, no site Brasil Debate:

O que significa mesmo o termo “pedaladas fiscais”? Até então vinha sendo utilizado “contabilidade criativa” pela mídia, com o intuito de criticar a política fiscal do governo federal. De “contabilidade criativa” evoluiu-se para “pedaladas fiscais”, configurando um rótulo mais contundente para designar uma manipulação da contabilidade fiscal.

O próprio termo manipulação é subjetivo, já que pode simplesmente indicar uma tentativa de induzir ou modificar a aparência de dados e informações até o extremo de sugerir fraude ou falsificação dos dados.

Ainda nos tempos da “contabilidade criativa”, a mídia e a patrulha ideológica do mercado financeiro criticaram, por exemplo, a venda, pelo Tesouro Nacional, das ações da Petrobrás do Fundo Soberano para o BNDES, que aumentou o superávit primário do governo federal. Claro, não houve grito quando, dois anos atrás, o TN comprou as mesmas ações para o FS, reduzindo o superávit primário.

Da mesma forma, houve gritaria quando, quatro anos atrás, o TN capitalizou a Petrobrás com reservas de petróleo do pré-sal: o problema é que parte das reservas foi vendida, aumentando assim o resultado primário. Todas essas manipulações foram catalogadas no reino da “contabilidade criativa”, que se inseria num conjunto de críticas sistemáticas à política fiscal.

Entretanto, do segundo semestre de 2014 para os tempos de agora, esse termo foi substituído por “pedaladas fiscais”, procurando indicar não apenas manipulação, mas ilegalidade da execução fiscal. Haveria dois tipos de ilegalidades. Um primeiro diria respeito ao atraso de pagamentos de alguns benefícios, subsídios e subvenções concedidos pelo governo, cujos agentes repassadores seriam o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES.

Paralelamente, uma segunda ilegalidade seria o adiantamento, por parte dessas referidas instituições financeiras, dos referidos benefícios, subsídios e subvenções, configurando um financiamento ao TN, o que contrariaria a Lei de Responsabilidade Fiscal. Na verdade, para evitar uma eventual ilegalidade, o atraso de pagamentos, ter-se-ia recorrido a um financiamento, configurando por este último aspecto o caráter ilegal e indevido das operações.

Uma eventual ilegalidade de Restos a Pagar

Quando lançada no final dos anos 90 do século passado, a LFR tentou estabelecer limites para a magnitude dos “restos a pagar” deixados de um mandatário para seu sucessor, em qualquer um dos níveis de governo. Sua intenção original era a de “zerar” os restos a pagar deixados de um governante para o outro, o que se tornou, desde logo, impraticável.

Atualmente, com base em pareceres de juristas, aceitam-se restos a pagar, desde que em valor menor do que o governante encontrou.

Mas há coisas mais graves, como despesas realizadas sem orçamento empenhado ou previsão orçamentária, o que contraria regra básica e anterior à própria LRF (lei 4320 de 1964).

Assim, atraso de pagamentos, ainda mais dentro das regras e reportando-se a um mesmo governante, é fato corriqueiro, com o qual o TCU nunca se preocupou anteriormente – pelo menos nos últimos 30 anos – manifestando-se como um factoide, com claros objetivos políticos, no sentido de rejeitar as contas do atual governo.

Os responsáveis pelo factoide, sentindo que a versão do atraso de pagamentos é muito fraca, desprovida de uma verdadeira base real, evoluíram para a segunda versão das pedaladas, a dos Bancos financiarem o TN.

Para começar: qual é mesmo a motivação original da LRF ao proibir que bancos estatais, de qualquer nível de governo, financiem seu ente federativo? Seguramente, a origem está na crise fiscal dos anos 80, que transbordou do nível federal para estados e municípios. Em alguns casos, os bancos estaduais foram utilizados para o financiamento de seus respectivos Tesouros. O caso mais grave foi o do Estado de São Paulo, justamente o ente mais rico da federação, que utilizou (e acabou quebrando) o Banespa para financiar o Tesouro paulista.

No nosso caso, o TN, como autoridade fiscal que é, detém a capacidade de emitir moeda – dívida- a qualquer momento, sem intermediários. Não é por acaso que o juro soberano, pago pelo TN ao mercado, é sempre menor que o custo de captação de seus Bancos controlados (BB, Caixa e BNDES, entre outros). E o principal: o TN é credor líquido, em geral em volumes robustos, dos seus Bancos, o que dirime definitivamente qualquer dúvida de “quem financia quem”.

O BNDES, por exemplo, deve liquidamente mais de R$500 bilhões para o TN, o que mostra de forma inequívoca que não houve (e não há), na forma legal e no seu espírito, contrariedade à LRF.

Qual é, então, exatamente o problema? Existe de fato um problema ou ele é tão e somente uma questiúncula – embora paraguaia, o que a tornaria séria – com o objetivo de acuar ou mesmo inviabilizar o governo?

O que vamos sugerir, a seguir, é que de fato existe uma questiúncula paraguaia, a qual tem, sim, por trás, um problema importante da nossa metodologia fiscal, que vem sendo solenemente ignorado no debate atual.

Inconsistências e incoerências

É emblemático que a LRF, quando editada em 2000, previsse no seu artigo n. 30, parágrafo § 1°, inciso IV, que caberia ao Senado Federal definir a metodologia do resultado primário e nominal, reconhecendo, implicitamente, o caráter provisório da metodologia improvisada baseada no Crédito Líquido para o setor Público (CLSP) – o Banco Central veio aos poucos desenvolvendo e consolidando a estatística referente ao CLSP para o conjunto dos entes federativos. E é sintomático que, 15 anos depois, essa metodologia ainda não tenha sido criada!

Por basear-se desde sempre numa metodologia improvisada, as estatísticas fiscais do Brasil são incompletas, não tendo como referência a execução orçamentária da União, Estados, Municípios e Empresas Estatais.

Para a gestão fiscal, essa metodologia é um instrumento importante e insubstituível de acompanhamento conjuntural, dada a sua disponibilidade temporal (mensal) propiciado pelo fato de basear-se em acompanhamento de estoques monetários e de dívida financeira. Porém, como estatística das contas fiscais tem graves deficiências.

Uma primeira é que, ao ser adaptada para utilização como estatística fiscal, passa a misturar Competência com Caixa, ficando o primeiro para as receitas e despesas financeiras (consideradas acima da linha e lançadas no resultado nominal) e o segundo para as demais receitas e despesas pagas (consideradas abaixo da linha e lançadas no resultado primário).

Essa incongruência pode gerar até mesmo situações paradoxais e bizarras, como aquelas que envolvem as relações do TN com os Bancos Federais. Uma segunda deficiência é que, ao calcular por diferenças o gasto primário, ela deixa de lado as despesas não pagas, como se elas fossem irrelevantes para a análise do resultado fiscal.

Uma terceira deficiência é que, como mecanismo de indução à boa gestão fiscal, ela cria, por exemplo, o viés de que a despesa boa é despesa não paga; e quando aplicada às empresas estatais, apresenta um grave viés anti-investimento (para as não-financeiras) e anti-capitalização (para os bancos estatais) induzindo à sua destruição no longo prazo.

Uma quarta deficiência é que se optou por considerar, no contexto da metodologia, o resultado primário como a meta fiscal, deturpando esse conceito enquanto importante submeta e instrumento de gestão fiscal. Mais particularmente, a possibilidade de arbitrar, subjetivamente, o lançamento de despesas e receitas acima ou abaixo da linha ajuda a deturpar o conceito, o que recomendaria a sua substituição pelo resultado nominal, seguindo o padrão internacional predominante.

Uma quinta e talvez mais importante deficiência: a estatística, com base nessa metodologia, não é fiscalizável, já que não se baseia na execução orçamentária, apenas tangenciando-a. No caso da União, são consideradas apenas as despesas (pagas) e receitas (recebidas); todo o fluxo financeiro considerado acima da linha está fora do orçamento e, portanto, da execução orçamentária.

Como corolário, uma sexta deficiência é que as metas fiscais, propostas em todas as LDOs, são metas fantasia, já que não fiscalizáveis, estando dependendo, para valerem em execuções orçamentárias futuras, da regulamentação, pelo Senado Federal, da metodologia do resultado fiscal, prevista no artigo 30 da LFR.

Como corolário final, deve-se concluir que o TCU não tem alçada para julgar uma eventual manipulação do resultado fiscal por parte do Executivo; para realizar tal tarefa, ele deveria: a) reconhecer tal impossibilidade junto ao órgão ao qual é subordinado, o Congresso Nacional; b) solicitar que as chamadas receitas e despesas acima da linha passem a integrar o orçamento e a execução orçamentária e c) solicitar ao Senado que regulamente a metodologia do resultado fiscal primário e nominal, conforme previsto na LRF.

Dada a virtual missão que se atribuiu, de julgar e rejeitar (por manipulação) as contas do governo de 2014, o TCU tem tido um comportamento errático, burlando em muito o seu papel legal e constitucional.

Como ele já vem exorbitando claramente em suas funções constitucionais, investigando e fiscalizando eventos que estão fora da alçada que o Congresso atribuiu-lhe, o TCU veio, através do relator das contas de 2014, Sr. Augusto Nardes, dar ordens ao Congresso, solicitando que esse analise agora as contas de 2014, deixando para depois as contas dos 13 anos anteriores!

E a razão principal para essa falta grosseira não é questão de timing para a conclusão da missão que o TCU se atribuiu, mas sim que, ao evitar que as contas anteriores sejam analisadas agora, impede-se a comparação dos critérios utilizados nas contas de 2014 e todas as demais. Vai saltar aos olhos a aberração legal e jurídica dos procedimentos de 2014, ficando claro o intuito de utilização do TCU para inconfessáveis fins políticos.

Esse texto é um resumo do artigo original, disponível em Sobre Pedaladas fiscais.

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