Do site Página 12 |
“Sinto cheiro de retrocesso em toda a América do Sul”, disse o ex-presidente Lula na semana passada. A vitória da direita na Argentina foi a primeira confirmação de seu pressentimento e reforça o temor da esquerda do continente de que prenuncie a queda de outros governos do ciclo progressistas iniciado em 1998 com a eleição de Hugo Chávez na Venezuela. Depois veio a era Lula/PT no Brasil, o kirchnerismo na Argentina, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador. A conjuntura varia de país para país mas em todos eles verifica-se o desgaste dos governos longevos, as acusações de má gestão e corrupção, a recessão e a enganosa convicção das camadas mais pobres de que as mudanças e conquistas das duas últimas décadas não serão afetadas pela mudança de governo.
Na Argentina, o presidente eleito Maurício Macri pode até ser gradualista na mudança, mas elegeu-se prometendo ser a antítese dos governos peronistas dos últimos 12 anos. Macri para os argentinos é mais que a ruptura com o peronismo. Pela primeira vez, eles serão governados por um presidente que não vem do peronismo nem do radicalismo, as duas forças polares do sistema político do país desde a redemocratização. Macri construiu nos últimos anos um partido alternativo conservador, claramente comprometido com valores de direita e com políticas neoliberais. A realização de seu discurso de campanha forçosamente passará pelo desmonte das políticas sociais dos governos Kirchner-Cristina. O grau e a velocidade do retrocesso é que só serão conhecidos com o tempo.
A presidente Cristina Kirchner certamente cometeu erros que levaram à derrota do peronismo mas é enganosa a crença dos argentinos de que Macri trará mudanças sem comprometer as conquistas. Scioli, o candidato peronista, turbinou inutilmente o “discurso do medo”, advertindo para os riscos do retrocesso nas políticas sociais, na geração de empregos e na defesa dos direitos humanos.
Assim como no Brasil os mais favorecidos pelas políticas da era petista engrossaram manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, na Argentina boa parte dos eleitores das camadas médias que ascenderam econômica e socialmente sob o kirchnerismo votaram em Macri.
“El País” noticiou que em uma das nove universidades públicas criadas pelo kirchnerismo, e frequentadas por muitos alunos que são a primeira geração de universitários de suas famílias, logo depois do segundo turno um professor fez uma enquete com os alunos, pedindo que repetissem, sem se identificar, o voto que haviam dado para presidente. Deu Macri, embora quase empatado com Scioli.
Jogo jogado, agora é esperar pelo governo Macri e pelos reflexos que a mudança na Argentina terá sobre o continente. Já se sabe que, sob Macri, haverá uma reviravolta nas relações com a Venezuela e outros países governados por presidentes de esquerda. Guido Nejamkis, correspondente do 247 em Buenos Aires, colheu de pessoas próximas do presidente eleito a informação de que sua primeira viagem internacional será ao Brasil e que ele pretende aprofundar a cooperação com os ministros “pragmáticos” de Dilma, como Levy e Katia Abreu.
Nem por isso, o Brasil deixará de ter problemas com o novo governo de nosso principal vizinho. E isso começará pelo Mercosul, que não conta com a menor simpatia de Macri.
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