Por Katarina Peixoto, no blog RS-Urgente:
O filme de Anna Muylaert não para de ser visto e comentado. É uma peça de realismo sem precedentes sobre a escravidão brasileira, em que o legado e a vigência dessa doença social são-nos apresentados num verdadeiro teatro de objetos, revelando a potência da sutileza, a ironia como sinalização, o cocô do cachorro como referencia. Nesse enredo objetual, caçambas de gelo vazias, no freezer, desvelam a maldade; ratos imaginados, como metáfora, esvaziam a piscina. O prédio de Niemeyer é cenário para o assédio do rentismo, sobre a grande novidade, do pais: uma geração de filhos de escravos hereditários que não se sente nem se vê como escrava. O problema não é quebrar a bandeja de prata da bisavó da Dona Barbara; o problema está no desrespeito à gramática muda, silenciada em dêiticos: “lá”, “cá”, “aqui”, “para fora”.
Somente uma geração sem a memória da escravidão pode chegar à terra prometida; isso quer dizer que somente pessoas livres podem querer a liberdade. Que horas ela volta é um filme redentor: é um signo da travessia, que parece seguir uma regra de dois aspectos: por um lado, na memória como jogo sobre os objetos, cujo teatro parece obedecer, no trabalho primoroso de Muylaert, à descrição do passado; por outro, no tratamento igualmente obediente, mas desta feita aos sujeitos, na descrição do presente e da promessa de futuro: Val e Jéssica.
O desamor, o abandono, a desagregação, a segregação, o racismo, o ressentimento, essas são coisas vividas sem palavras ou silenciadas. Como vividas pelos e através de objetos. A incapacidade de Val, na luminosa e inesquecível Regina Casé, usar palavras para enunciar sua alegria, e recorrer a gestos (hilários, comoventes), são motores da gigantesca máquina narrativa de Muylaert. Que coisa prazerosa, leve, eventualmente hilariante (como esquecer a cena da faxineira e da Val, tentando entender a Jéssica: “Tu finge que tá podano, que eu finjo que tô aguano”, o uso dos braços e do avental, como fosse, este também, ele mesmo um personagem, na linha objetual do elenco), que consegue tocar fundo na maior de nossas chagas, na metástase insistente que origina todos, absolutamente todos os males em nossa sociedade. A escravidão e o racismo dela derivado, como veículo de ódio e preservação das relações ilegítimas de poder, têm, ou tinham, na figura da empregada domestica, o último reduto impune da sua barbárie.
A empregada doméstica, “praticamente da família”, é o objeto: não fala, não mora, não pode ser mãe, senão de aluguel. A relação maternal, derivada e originária, é o princípio e o fim do filme. E constitui a mesma metáfora em que aparece o rato na piscina: ninguém nasce mãe, faz-se mãe. Seja pela necessidade, seja pela liberdade. Mas não dá para ser mãe pela ausência, pois esta desautoriza a confiança. Jéssica não é um rato, Fabinho só não é mais abandonado porque tem Val, o objeto familiar que é sujeito do afeto e do vinculo afetivo dinâmico possível naquela economia domestica: o que se come, como se dorme, onde se deve buscar o que, como cuidar do cão (que tampouco é digno de afeto por outra pessoa que não a Val).
É a empregada que possibilita a dinâmica elementar da vida econômica e afetiva, o elo afetivo, de cuidado, de subsistência e comunicação, naquele núcleo familiar. A empregada que, desde os tempos em que era usada como ama de leite, pouco teve o direito de ser mãe, de fazer-se mãe, enquanto criava, amamentava, educava, o filho das mães escravocratas, de uma economia dependente, em sua vida mais íntima, da desumanização de quem lhe serve alimento, de quem lava sua roupa. Barbara parece saber de tudo; desta feita, porém, só nas palavras. Sua ausência impossibilita sua maternidade e sua consciência de fazer algum uso do que parece fazer questão de saber, até Jéssica jogá-la num colapso epistêmico decisivo. E no ódio desavergonhado.
A filha da empregada, que chegou de Pernambuco para prestar vestibular na FAU-USP, anuncia e protocola a ruína de um mundo. O filme é sobre a separação de sujeitos e objetos, quando a terra prometida aparece no horizonte: a universidade, o estudo, a educação e a vida com o filho, neto de Val. A inexistência, em Jéssica, da carne da escravidão que habita a sua mãe, afinal, redimida, feita mãe e avó, renascida na piscina proibida, aos prantos, como sujeito. Vai demorar muito e talvez jamais seja superada em beleza, aliás, esta cena, este pequeno lembrete, de que ser mãe pode ser libertar-se, deve sê-lo.
O filme é imenso e poderoso. E é também muito bem acabado, leve, cuidadoso, tenro. Este pais está mudando, mesmo. Afinal, a democracia começa com o fim da travessia do deserto, com o fim da escravidão.
O filme de Anna Muylaert não para de ser visto e comentado. É uma peça de realismo sem precedentes sobre a escravidão brasileira, em que o legado e a vigência dessa doença social são-nos apresentados num verdadeiro teatro de objetos, revelando a potência da sutileza, a ironia como sinalização, o cocô do cachorro como referencia. Nesse enredo objetual, caçambas de gelo vazias, no freezer, desvelam a maldade; ratos imaginados, como metáfora, esvaziam a piscina. O prédio de Niemeyer é cenário para o assédio do rentismo, sobre a grande novidade, do pais: uma geração de filhos de escravos hereditários que não se sente nem se vê como escrava. O problema não é quebrar a bandeja de prata da bisavó da Dona Barbara; o problema está no desrespeito à gramática muda, silenciada em dêiticos: “lá”, “cá”, “aqui”, “para fora”.
Somente uma geração sem a memória da escravidão pode chegar à terra prometida; isso quer dizer que somente pessoas livres podem querer a liberdade. Que horas ela volta é um filme redentor: é um signo da travessia, que parece seguir uma regra de dois aspectos: por um lado, na memória como jogo sobre os objetos, cujo teatro parece obedecer, no trabalho primoroso de Muylaert, à descrição do passado; por outro, no tratamento igualmente obediente, mas desta feita aos sujeitos, na descrição do presente e da promessa de futuro: Val e Jéssica.
O desamor, o abandono, a desagregação, a segregação, o racismo, o ressentimento, essas são coisas vividas sem palavras ou silenciadas. Como vividas pelos e através de objetos. A incapacidade de Val, na luminosa e inesquecível Regina Casé, usar palavras para enunciar sua alegria, e recorrer a gestos (hilários, comoventes), são motores da gigantesca máquina narrativa de Muylaert. Que coisa prazerosa, leve, eventualmente hilariante (como esquecer a cena da faxineira e da Val, tentando entender a Jéssica: “Tu finge que tá podano, que eu finjo que tô aguano”, o uso dos braços e do avental, como fosse, este também, ele mesmo um personagem, na linha objetual do elenco), que consegue tocar fundo na maior de nossas chagas, na metástase insistente que origina todos, absolutamente todos os males em nossa sociedade. A escravidão e o racismo dela derivado, como veículo de ódio e preservação das relações ilegítimas de poder, têm, ou tinham, na figura da empregada domestica, o último reduto impune da sua barbárie.
A empregada doméstica, “praticamente da família”, é o objeto: não fala, não mora, não pode ser mãe, senão de aluguel. A relação maternal, derivada e originária, é o princípio e o fim do filme. E constitui a mesma metáfora em que aparece o rato na piscina: ninguém nasce mãe, faz-se mãe. Seja pela necessidade, seja pela liberdade. Mas não dá para ser mãe pela ausência, pois esta desautoriza a confiança. Jéssica não é um rato, Fabinho só não é mais abandonado porque tem Val, o objeto familiar que é sujeito do afeto e do vinculo afetivo dinâmico possível naquela economia domestica: o que se come, como se dorme, onde se deve buscar o que, como cuidar do cão (que tampouco é digno de afeto por outra pessoa que não a Val).
É a empregada que possibilita a dinâmica elementar da vida econômica e afetiva, o elo afetivo, de cuidado, de subsistência e comunicação, naquele núcleo familiar. A empregada que, desde os tempos em que era usada como ama de leite, pouco teve o direito de ser mãe, de fazer-se mãe, enquanto criava, amamentava, educava, o filho das mães escravocratas, de uma economia dependente, em sua vida mais íntima, da desumanização de quem lhe serve alimento, de quem lava sua roupa. Barbara parece saber de tudo; desta feita, porém, só nas palavras. Sua ausência impossibilita sua maternidade e sua consciência de fazer algum uso do que parece fazer questão de saber, até Jéssica jogá-la num colapso epistêmico decisivo. E no ódio desavergonhado.
A filha da empregada, que chegou de Pernambuco para prestar vestibular na FAU-USP, anuncia e protocola a ruína de um mundo. O filme é sobre a separação de sujeitos e objetos, quando a terra prometida aparece no horizonte: a universidade, o estudo, a educação e a vida com o filho, neto de Val. A inexistência, em Jéssica, da carne da escravidão que habita a sua mãe, afinal, redimida, feita mãe e avó, renascida na piscina proibida, aos prantos, como sujeito. Vai demorar muito e talvez jamais seja superada em beleza, aliás, esta cena, este pequeno lembrete, de que ser mãe pode ser libertar-se, deve sê-lo.
O filme é imenso e poderoso. E é também muito bem acabado, leve, cuidadoso, tenro. Este pais está mudando, mesmo. Afinal, a democracia começa com o fim da travessia do deserto, com o fim da escravidão.
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