Por Bia Barbosa, na revista CartaCapital:
Não é à toa que democracias consolidadas possuem mecanismos de regulação do setor de comunicações para garantir o que os padrões internacionais definem como “discurso pluralista e democrático”. Quem preza pelo Estado de Direito sabe que uma esfera pública midiática dominada por uma única empresa e que um jornalismo que não respeita o mínimo equilíbrio de vozes podem ser destrutivos para qualquer nação.
Nesta sexta-feira 4, em que o País parou para acompanhar o desfecho da operação da Polícia Federal que levou o ex-presidente Lula coercivamente para depor, o Brasil, uma vez mais, presenciou uma aula de manipulação da opinião pública pela Rede Globo.
Não precisamos recuperar aqui a história das Organizações Globo neste campo. Ela é bastante conhecida. Mas, em momentos de crise política como o que vivemos, em que princípios constitucionais são ameaçados diariamente, mostra-se fundamental jogar luz em como tem se dado o processo de “informação” e formação da opinião dos brasileiros.
Não se trata aqui de defender o ex-presidente Lula e o PT, tampouco de negar a importância que um fato como este deve ter para os meios de comunicação. Mas o que se espera de uma concessionária do serviço público de radiodifusão, num momento como este, é objetividade – até porque a “isenção e imparcialidade” que Bonner afirma a Globo ter, não existem.
O que se viu, entretanto, ao longo de uma hora e vinte minutos no principal telejornal do país, está muito distante disso.
Não precisamos entrar na análise do discurso das matérias veiculadas nesta sexta peloJornal Nacional, aquele que se arvora o papel de fazer a síntese do dia, “para que o cidadão esteja sempre bem informado”. Vamos aos fatos, como a Globo gosta, e deixar cada um tirar suas conclusões.
1 - Primeiro bloco do JN: 21 minutos de matérias, e nada mais que cinquenta segundos (25 vezes menos) com a posição da defesa. Na matéria de seis minutos e dez segundos sobre os pagamentos que o Instituto Lula e a LILS receberam por palestras feitas pelo ex-presidente, somente a PF falou.
2 - Segundo bloco: mais 15 minutos de matérias. Vinte segundos com a posição do ex-presidente e 20 com uma fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula.
A defesa dos empresários acusados de envolvimento nas obras do sítio de Atibaia foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio.
Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e cinquenta segundos de reportagem.
3 - Quase quarenta minutos desde o início do JN tinham se passado quando foi ao ar aprimeira fala de Lula, na matéria sobre a declaração que ele fez à imprensa e à militância na sede do Diretório Nacional do PT. Lula teve voz por sete minutos e meio. Um minuto e quinze de Dilma criticando a operação vieram na sequência.
Rui Falcão, presidente do partido, teve direito a dezesseis segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, um minuto para a oposição e 30 segundos para o PT – e mais dois do repórter divulgando informações de como a direita pretende paralisar o Parlamento até o impeachment sair.
4 - Na matéria sobre os atos que aconteceram pelo País, o mesmo número de citações para os atos pró e contra Lula, independentemente da gritante diferença entre o número de pessoas que eles mobilizaram. Depois, mais um minuto só para mostrar as pessoas que, atendendo ao chamado da oposição, bateram panelas ou aplaudiram o início da transmissão do Jornal Nacional.
Do outro lado, mais de dois minutos mostrando militantes do PT hostilizando repórteres da Globo.
Durante a tarde, na GloboNews, a empresa já tinha batido várias vezes na tecla de que “o PT está inflando a militância para o confronto”, desconsiderando totalmente a legitimidade de quem está sendo atacado se defender também nas ruas.
Gerson Camarotti entrou pela internet do aeroporto de Congonhas para dizer: “O que estamos vendo em Congonhas é uma amostra do que o PT está deflagrando hoje”, numa absurda inversão dos fatos.
5 - O JN trouxe ainda uma matéria sobre “os destaques negativos” na imprensa internacional, por mais dois minutos. E informou que o mercado reagiu positivamente aos fatos, com alta na Bolsa de São Paulo e queda no valor dólar. Totalizando, foram 64 minutos de matérias acusando Lula e publicizado os argumentos e informações da PF, dos quais menos de 13 com o outro lado.
6 - Um dos principais assuntos em discussão ao longo do dia, a legalidade da condução coercitiva de Lula e de mais dez investigados, não mereceu a atenção do Jornal Nacional. Nem mesmo a opinião dos quatro especialistas em direito penal que foram chamados pela GloboNews ao longo do dia e que, de forma unânime, falaram que tal condução não tinha fundamento legal convenceram o JN.
Alguma menção à declaração contundente de dois ministros do STF que consideraram a ação da PF arbitrária? Nada. À Folha de S.Paulo, Marco Aurelio Melo disse que “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes". E criticou o argumento utilizado pelo juiz Sergio Moro para embasar a condução coercitiva de Lula: "Será que ele queria essa proteção? Eu acredito que na verdade esse argumento foi dado para justificar um ato de força (…) Isso implica em retrocesso, e não em avanço."
Mas a Globo não achou importante ouvir o STF neste caso. Pelo contrário, colocou declarações da OAB e de associações de magistrados e procuradores que defenderam a ação da PF.
Para além da edição desta sexta do Jornal Nacional, a cobertura deste “dia histórico”, como afirmaram os comentaristas da Globo, contou com vários aspectos condenáveis. Um deles foi o discurso claro de que a economia só vai melhorar quando o governo mudar.
Outro, a acusação de que Lula está, “uma vez mais”, dividindo o país, fazendo um discurso de “perseguição e orquestração”. A comentarista política da Globo News, Cristiana Lobo, chegou a falar em “síndrome de perseguição”. Às 20h, o canal por assinatura da empresa fez um “resumo das declarações do dia”. Nenhuma foi crítica à operação.
Não é muito difícil, portanto, concordar com a definição de orquestração. Sobretudo quando se sabe que jornalistas de diferentes veículos tomaram conhecimento da operação Aletheia antes mesmo dos advogados dos acusados.
A associação Judiciário-Polícia Federal-meios de comunicação se mostrou essencial para os objetivos do dia serem alcançados: constranger ilegalmente o ex-presidente Lula, desmoralizar o PT, enfraquecer o governo e fortalecer os protestos pró-impeachment agendados para o dia 13 de março.
Não há coincidência nos acontecimentos do período recente. Da divulgação da delação de Delcídio aos vazamentos seletivos, passando pelo silenciamento da imprensa diante das denúncias de desvio dos recursos públicos pelo também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pela tentativa de censura contra os blogueiros que denunciaram o esquema da mansão dos Marinho em Paraty.
Reconhecer isso é forçoso, independentemente dos indícios apresentados pela PF contra Lula ou do que ficará efetivamente provado ao final das investigações.
Da mesma forma, é forçoso reconhecer que parte significativa desta crise é resultado direto da ausência de enfrentamento à vergonhosa concentração dos meios de comunicação no País, nos 13 anos de governo petista. Aqui, se está colhendo o que se deixou de plantar.
Mas quando as regras do jogo são rasgadas com tamanha facilidade; quando parcela das instituições que devem zelar pelo respeito às leis são guiadas por fatores políticos; quando a mídia nega o direito da população a uma informação plural, acusa e condena previamente; e quando se vê a maioria da população comprando esta narrativa e aplaudindo a espetacularização do justiçamento a todo custo, não é a biografia do Lula, os feitos de seu governo ou o projeto do PT que estão em risco. É a nossa democracia.
* Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e integrante da coordenação do Intervozes.
Não é à toa que democracias consolidadas possuem mecanismos de regulação do setor de comunicações para garantir o que os padrões internacionais definem como “discurso pluralista e democrático”. Quem preza pelo Estado de Direito sabe que uma esfera pública midiática dominada por uma única empresa e que um jornalismo que não respeita o mínimo equilíbrio de vozes podem ser destrutivos para qualquer nação.
Nesta sexta-feira 4, em que o País parou para acompanhar o desfecho da operação da Polícia Federal que levou o ex-presidente Lula coercivamente para depor, o Brasil, uma vez mais, presenciou uma aula de manipulação da opinião pública pela Rede Globo.
Não precisamos recuperar aqui a história das Organizações Globo neste campo. Ela é bastante conhecida. Mas, em momentos de crise política como o que vivemos, em que princípios constitucionais são ameaçados diariamente, mostra-se fundamental jogar luz em como tem se dado o processo de “informação” e formação da opinião dos brasileiros.
Não se trata aqui de defender o ex-presidente Lula e o PT, tampouco de negar a importância que um fato como este deve ter para os meios de comunicação. Mas o que se espera de uma concessionária do serviço público de radiodifusão, num momento como este, é objetividade – até porque a “isenção e imparcialidade” que Bonner afirma a Globo ter, não existem.
O que se viu, entretanto, ao longo de uma hora e vinte minutos no principal telejornal do país, está muito distante disso.
Não precisamos entrar na análise do discurso das matérias veiculadas nesta sexta peloJornal Nacional, aquele que se arvora o papel de fazer a síntese do dia, “para que o cidadão esteja sempre bem informado”. Vamos aos fatos, como a Globo gosta, e deixar cada um tirar suas conclusões.
1 - Primeiro bloco do JN: 21 minutos de matérias, e nada mais que cinquenta segundos (25 vezes menos) com a posição da defesa. Na matéria de seis minutos e dez segundos sobre os pagamentos que o Instituto Lula e a LILS receberam por palestras feitas pelo ex-presidente, somente a PF falou.
2 - Segundo bloco: mais 15 minutos de matérias. Vinte segundos com a posição do ex-presidente e 20 com uma fala de Paulo Okamotto, presidente do Instituto Lula.
A defesa dos empresários acusados de envolvimento nas obras do sítio de Atibaia foi lida pelos apresentadores na bancada, totalizando pouco mais de um minuto e meio.
Na matéria sobre o tríplex do Guarujá, sete segundos para citar a nota do Instituto Lula em 2 minutos e cinquenta segundos de reportagem.
3 - Quase quarenta minutos desde o início do JN tinham se passado quando foi ao ar aprimeira fala de Lula, na matéria sobre a declaração que ele fez à imprensa e à militância na sede do Diretório Nacional do PT. Lula teve voz por sete minutos e meio. Um minuto e quinze de Dilma criticando a operação vieram na sequência.
Rui Falcão, presidente do partido, teve direito a dezesseis segundos. Na matéria sobre as repercussões no Congresso, um minuto para a oposição e 30 segundos para o PT – e mais dois do repórter divulgando informações de como a direita pretende paralisar o Parlamento até o impeachment sair.
4 - Na matéria sobre os atos que aconteceram pelo País, o mesmo número de citações para os atos pró e contra Lula, independentemente da gritante diferença entre o número de pessoas que eles mobilizaram. Depois, mais um minuto só para mostrar as pessoas que, atendendo ao chamado da oposição, bateram panelas ou aplaudiram o início da transmissão do Jornal Nacional.
Do outro lado, mais de dois minutos mostrando militantes do PT hostilizando repórteres da Globo.
Durante a tarde, na GloboNews, a empresa já tinha batido várias vezes na tecla de que “o PT está inflando a militância para o confronto”, desconsiderando totalmente a legitimidade de quem está sendo atacado se defender também nas ruas.
Gerson Camarotti entrou pela internet do aeroporto de Congonhas para dizer: “O que estamos vendo em Congonhas é uma amostra do que o PT está deflagrando hoje”, numa absurda inversão dos fatos.
5 - O JN trouxe ainda uma matéria sobre “os destaques negativos” na imprensa internacional, por mais dois minutos. E informou que o mercado reagiu positivamente aos fatos, com alta na Bolsa de São Paulo e queda no valor dólar. Totalizando, foram 64 minutos de matérias acusando Lula e publicizado os argumentos e informações da PF, dos quais menos de 13 com o outro lado.
6 - Um dos principais assuntos em discussão ao longo do dia, a legalidade da condução coercitiva de Lula e de mais dez investigados, não mereceu a atenção do Jornal Nacional. Nem mesmo a opinião dos quatro especialistas em direito penal que foram chamados pela GloboNews ao longo do dia e que, de forma unânime, falaram que tal condução não tinha fundamento legal convenceram o JN.
Alguma menção à declaração contundente de dois ministros do STF que consideraram a ação da PF arbitrária? Nada. À Folha de S.Paulo, Marco Aurelio Melo disse que “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes". E criticou o argumento utilizado pelo juiz Sergio Moro para embasar a condução coercitiva de Lula: "Será que ele queria essa proteção? Eu acredito que na verdade esse argumento foi dado para justificar um ato de força (…) Isso implica em retrocesso, e não em avanço."
Mas a Globo não achou importante ouvir o STF neste caso. Pelo contrário, colocou declarações da OAB e de associações de magistrados e procuradores que defenderam a ação da PF.
Para além da edição desta sexta do Jornal Nacional, a cobertura deste “dia histórico”, como afirmaram os comentaristas da Globo, contou com vários aspectos condenáveis. Um deles foi o discurso claro de que a economia só vai melhorar quando o governo mudar.
Outro, a acusação de que Lula está, “uma vez mais”, dividindo o país, fazendo um discurso de “perseguição e orquestração”. A comentarista política da Globo News, Cristiana Lobo, chegou a falar em “síndrome de perseguição”. Às 20h, o canal por assinatura da empresa fez um “resumo das declarações do dia”. Nenhuma foi crítica à operação.
Não é muito difícil, portanto, concordar com a definição de orquestração. Sobretudo quando se sabe que jornalistas de diferentes veículos tomaram conhecimento da operação Aletheia antes mesmo dos advogados dos acusados.
A associação Judiciário-Polícia Federal-meios de comunicação se mostrou essencial para os objetivos do dia serem alcançados: constranger ilegalmente o ex-presidente Lula, desmoralizar o PT, enfraquecer o governo e fortalecer os protestos pró-impeachment agendados para o dia 13 de março.
Não há coincidência nos acontecimentos do período recente. Da divulgação da delação de Delcídio aos vazamentos seletivos, passando pelo silenciamento da imprensa diante das denúncias de desvio dos recursos públicos pelo também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e pela tentativa de censura contra os blogueiros que denunciaram o esquema da mansão dos Marinho em Paraty.
Reconhecer isso é forçoso, independentemente dos indícios apresentados pela PF contra Lula ou do que ficará efetivamente provado ao final das investigações.
Da mesma forma, é forçoso reconhecer que parte significativa desta crise é resultado direto da ausência de enfrentamento à vergonhosa concentração dos meios de comunicação no País, nos 13 anos de governo petista. Aqui, se está colhendo o que se deixou de plantar.
Mas quando as regras do jogo são rasgadas com tamanha facilidade; quando parcela das instituições que devem zelar pelo respeito às leis são guiadas por fatores políticos; quando a mídia nega o direito da população a uma informação plural, acusa e condena previamente; e quando se vê a maioria da população comprando esta narrativa e aplaudindo a espetacularização do justiçamento a todo custo, não é a biografia do Lula, os feitos de seu governo ou o projeto do PT que estão em risco. É a nossa democracia.
* Bia Barbosa é jornalista, especialista em direitos humanos e integrante da coordenação do Intervozes.
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